Não sou propriamente um devoto da revolução russa cuja etapa fundacional
faz hoje, dia 7 de novembro, cem anos. Porém, se é verdade o que José Milhazes
verteu para a Comunicação Social, fico perplexo. Diz o pretenso russófilo que a
Rússia se admira pela relevância que o mundo ocidental dá ao centenário –
muitos volumes de livros editados e múltiplas peças jornalísticas – quando
internamente a revolução como que fica esquecida, com Putin a pugnar por uma
união nacional. E, pelos vistos, as comemorações, que até foram militarmente
vistosas, ficaram fora da agenda do Presidente – uma hipocrisia eficiente e
talvez eficaz!
Em primeiro lugar, há que assentar na importância que a revolução teve para
a federação russa e para os países que, sobretudo por força da II Guerra
Mundial, se tornaram alegadamente satélites da URSS (a cortina de
ferro) e alinhados com ela no COMECOM,
contraposto economicamente ao Mercado Comum europeu, e no Pacto de Varsóvia,
contraposto militarmente à NATO, criação do Ocidente. A federação russa sofreu
valente reviravolta com a queda do czarismo, com a instalação do bolchevismo
com Lenine, que deixou pelo caminho o trotskismo, e, mais tarde, com a era de
Estaline, em que o regime se agudizou ditatoriando-se em excesso.
Em segundo lugar, o centenário releva pelo impacto que infligiu ao mundo,
quer na linha dos erros do totalitarismo estatal, quer na linha do despertar do
adormecimento em que o liberalismo económico sepultou as classes trabalhadoras,
a que se sucederam as ditaduras de direita e as democracias políticas do ponto
de vista formal, mas servidas por um capitalismo económico asfixiante, agora
travestido de capitalismo financeiro sem rosto, ancorado na perspetiva da
inevitabilidade, que sufoca países induzidos a elevar a chamada dívida
soberana, que têm que arrostar com a redenção de bancos postos na falência o
sistema, que levou Estados à bancarrota técnica, apenas se sustentando mediante
esquemas artificiosos e com a sobrecarga das classes médias, ao passo que os
nababos e os chico-espertos escapam entre as pingas de chuva grossa.
É óbvio que o regime soviético, estribado teoricamente na ditadura do
proletariado, redundou no capitalismo de Estado, abatendo física ou moralmente quem
desdizia do status quo. E, mais do
que o materialismo dialético, instrumento de análise do mundo, útil para a sua
transformação – no pressuposto marxista, embora não exclusivo do filosofo
alemão, de que incumbe aos filósofos interpretar o mundo e aos político
transformá-lo – evidenciou-se o materialismo histórico, que, para lá do ateísmo
confesso, professa o antiteísmo militante na forjada convicção de que a
religião era o ópio do povo. Porém, a Igreja ortodoxa russa habituou-se à
convivência com o culto da personalidade fomentado pelo Estado em torno dos
heróis da revolução.
Porém, não pode negar-se o esmero atlético-desportivo, o afinamento
cultural e artístico, o progresso científico e a poderosa logística militar que
emolduraram o estatolátrico regime soviético, o qual, frontalmente contraposto
ao imperialismo económico, científico, militar e hipocritamente religioso e
beneficiente da América, sustentou durante décadas o que se convencionou
designar por período da guerra fria. Os dois empórios militares equilibravam-se
num sistema balanceado de medo recíproco, à espera de que algum doido
carregasse no botão do disparo nuclear. No entanto, travaram graves conflitos
regionais, com elevado custo de vidas, integridades e bens materiais – sem
falar de armamento e munições, como outro material de guerra sofisticado – e disputaram
aguerridamente a conquista do espaço. E não podemos esquecer que, só depois da
revolução soviética, se operou a revolução chinesa que instaurou o regime
socialcomunista de partido único, que está para durar, embora com progressiva
abertura económica; se operou a revolução cubana, ainda de vento em popa, e
outras na América Latina; eclodiu a guerra no Vietname e a revolução coreana,
que, após a guerra interna, apoiada por soviéticos e norte-americanos,
desembocou, na Coreia, na divisão da península, restando o regime da Coreia do
Norte sob um governo Juche autodeclarado
com um acentuado e exacerbado culto de personalidade organizado
em volta de Kim II-Sung (o fundador da
Coreia do Norte e primeiro presidente do país), sendo hoje Kim Jong-un o líder; e ganharam muitos países africanos a
independência após conflitos armados apoiados a leste e a oeste, geralmente com
líderes de partido único no poder a enriquecer pessoal e familiarmente e os
povos a empobrecer.
***
O centenário da revolução russa marca a data em que a ideologia dos
filósofos políticos Karl Marx e Friedrich Engels ganhou uma oportunidade de
concretização. O ano de 1917 exibia, pela primeira vez, ao mundo um governo dito
socialista, sem se saber o que esperar dele, duvidando muitos de que fosse
possível o chamado “socialismo utópico” de Proudhon. Só que o socialismo que
emoldurou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas era o de Marx, muito
distante do anarquismo e utopia de Proudhon. A Revolução de Outubro, segundo o calendário
gregoriano, mas de novembro, segundo o calendário juliano, seguido pelo império
czariano, pôs termo definitivo à dinastia Romanov e ao regime que ela
representava. O primeiro toque aconteceu a 23 de fevereiro ou de março,
consoante o calendário por que se meça o tempo.
***
A 23 de
fevereiro de 1917 em Petrogrado, o inverno frio e severo e a aguda carência de
alimentos levaram ao desespero as pessoas, que partiam janelas das lojas para
conseguirem pão e outros víveres. Nas ruas, apareceram bandeiras vermelhas e as
multidões cantavam: “Abaixo a mulher alemã! Abaixo Protopopov! Abaixo a
guerra!”. A polícia
começou a carregar sobre a população que das janelas e dos telhados incitava ao
tumulto. As tropas na capital estavam pobremente motivadas e os oficiais não
tinham razão para lealdade ao regime. Estavam irritados e cheios de fervor
revolucionário, pelo que apoiaram a população. O gabinete do czar pediu a
Nicolau para retornar à capital e oferecer a renúncia. Distante a 500 milhas e mal-informado
por Protopopov, o czar, crendo que a situação estava sob controlo, ordenou medidas
firmes contra os manifestantes, para o que a guarnição de Petrogrado era
inadequada. A nata do exército leal estava enterrada em sepulturas na Polónia e
na Galícia. Em Petrogrado, 170.000 recrutas, rapazes do interior ou homens
idosos dos subúrbios, continuaram a manter o controlo sob o comando de oficiais
feridos e inválidos e cadetes das academias militares. Muitas unidades, carecendo
de oficiais e rifles, não passaram por treinamento formal. O general Khabalov
tentou cumprir as instruções do czar na manhã do domingo, 11 de março. A
despeito de enormes cartazes intimando o povo a afastar-se das ruas, vastas multidões
agruparam-se e dispersaram após serem 200 fuzilados, apesar de uma companhia do
Regimento Volinsky atirar para o ar em vez de atirar para a multidão e uma
companhia dos Guardas de Pavlovsky atirar sobre o oficial que deu a
ordem de abrir fogo. Nicolau, informado da situação por Rodzianko, ordenou
reforços para a capital e a suspensão da Duma (Parlamento). A 12 de março, o Regimento Volinsky amotinou-se e
foi rapidamente sucedido pelo Semonovsky, o Ismailovsky e até pela lendária
Guarda Preobrajensky, o regimento mais antigo e leal fundado por Pedro, o
Grande. Foi pilhado o arsenal e foram queimados o Ministério do Interior, o
prédio do Governo Militar, o quartel-general da polícia, a Corte Judicial e um
grupo de prédios policiais. À tarde, a Fortaleza de Pedro e Paulo, com
a sua pesada artilharia, estava nas mãos dos insurgentes. Ao anoitecer, 60.000
soldados haviam-se juntado à revolução. A ordem quebrou e membros da Duma formaram
o Governo Provisório para tentar restaurar a ordem, mas foi impossível alterar
o curso da tendência revolucionária. A Duma e o Soviete já
tinham formado os núcleos do Governo Provisório e decidiram que Nicolau II deveria
abdicar. Encarando tal decisão, ecoada por seus generais, privado das tropas
leais, com sua família firmemente nas mãos do Governo Provisório e temeroso de
causar uma guerra civil e abertura do caminho a uma conquista alemã,
Nicolau submeteu-se. No final da Revolução de Fevereiro (Menchevique), a 15 de março (2 de março de acordo com o calendário
gregoriano), Nicolau II foi forçado a abdicar.
Abdicou inicialmente a favor do czarevich Alexei, mas rapidamente mudou de
ideia depois do conselho dos médicos de que o herdeiro não viveria muito tempo
longe dos pais, que seriam forçados ao exílio. Nicolau redigiu novo manifesto,
nomeando o irmão, o grão-duque Miguel, como o próximo Imperador de Todas
as Rússias.
Tudo indica
que Nicolau abdicou por motivo patriótico, convicto de que tal atitude era
indispensável para manter a Rússia na guerra e garantir a vitória. Se a grande
preocupação tivesse sido a manutenção do poder, teria firmado a paz com a
Alemanha, como Lenine, um ano depois, e lançado as tropas contra os
amotinados em Petrogrado e Moscou. E o grão-duque Miguel negou aceitar o trono
até o povo votar através duma assembleia constituinte para a
continuação da monarquia ou instauração da república. A abdicação de Nicolau II
e a subsequente revolução bolchevique levou ao fim três séculos do
governo da dinastia Romanov e abriu caminho à massiva destruição da ancestral
cultura da Rússia, com o fecho e demolição de várias igrejas e mosteiros,
confisco de objetos valiosos e bens da antiga aristocracia e classes ricas e a
supressão de formas de arte religiosas e folclóricas. A queda da autocracia
czarista causou alegria aos liberais e socialistas na Grã-Bretanha e
na França e tornou possível aos EUA, o primeiro governo estrangeiro a
reconhecer o Governo Provisório, a entrar na guerra em abril, lutando pela aliança
de democracias contra a aliança de impérios. Na Rússia, a abdicação do czar foi
recebida com múltiplas emoções: alegria, alívio, medo, raiva e confusão. A 3 de
abril de 1917, Alexander Kerensky, o recém-nomeado Ministro da Guerra decidiu
visitar a família imperial, que estava presa em Tsarskoye. À medida que o
tempo passava, Kerensky continuou a visitar a família; e o relacionamento entre
o ministro socialista e o soberano deposto e sua mulher melhorara nitidamente.
Tudo isto
sucedeu mercê da prostração económica e social e pelo facto de o Czar não ser
capaz de abertura às solicitações do movimento operário e campesino desde 1905,
mantendo o status.
***
Com a tomada do poder pelos bolcheviques, tornou-se possível o surgimento
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Com ela, nasceu uma potência suficientemente forte para se tornar
crucial no derrube do nazismo de Adolf Hitler, em 1945, e se opor aos Estados
Unidos durante quase 50 anos. Liderada por Lenine, a mudança que culminou irreversivelmente
no fim do Império Russo e da sua última dinastia, abriu as portas a novas
perspetivas que influenciaram, como se disse, Cuba, Coreia, China e Vietname,
que seguiram vias similares.
Inspirada na obra de Marx e Engels, a reforma agrária em certo grau
procedeu à redistribuição de terras entre campesinos. Os sindicatos assumiram o
controlo de fábricas e muitas fazendas passaram a produzir para a comunidade. O
governo tentou igualar as classes sociais. Ainda hoje, os vestígios da época,
que foi evoluindo no bom e no mau sentido (cessaram muitas vítimas da fome, mas
surgiram vítimas de opinião e do poderio de guerra), se espelham na arquitetura do Leste Europeu, entre
quadros de elevada sumptuosidade, quadros de extrema singeleza e quadros de
extremo rigor planificante e exigente. As casas pré-fabricadas e os blocos de
arranha-céus em série, as estátuas de Lenine, Marx e até as do menos admirado,
Estaline, continuam espalhados por cidades russas. Novas personalidades e
ícones passaram a fazer parte da nova cultura russa.
Ainda são populares entre os jovens de vários países as camisas do
argentino Che Guevara, líder da Revolução Socialista Cubana; são cultuadas ou
odiadas várias figuras da revolução; são repetidas para o bem e para o mal muitas
frases e chavões revolucionários; ainda empolgam as massas muitas canções de
intervenção e de combate. A biografia das personagens soviéticas é motivo de
polémica com passagens sombrias, violentas e partes que se consideram como
verdadeiros atos heroicos. Os russos saíram de um regime autoritário, do Czar,
que perseguia os seus inimigos, para outro não menos fero nalguns aspetos. Um
novo ciclo de sangue e repressão começou sobretudo com Estaline, segundo
membros do próprio PCUS, o partido comunista da União Soviética. Esta parte da
história fez com que as gerações seguintes, pós-União Soviética, sentissem mais
incerteza que orgulho daquele momento da história que influenciou pessoas e
povos de todo o mundo. Os relatos de prisões arbitrárias e de assassinatos no
governo estalinista tiram o brilho da prosperidade da época. Apesar de
apresentar um novo sistema ao mundo, o regime serviu-se de armas velhas, já
conhecidas na sua forma de governo com os vícios da sua némesis, o capitalismo.
Foi preciso aparecer Mikail Gorvathev e outros para o regime abrir!
“Sem a Rússia, não teria havido a
China comunista”, afirmou à emissora alemã DW, Gerd Koenen, historiador e especialista em origens do
comunismo, que participou numa série de debates e mostras na Alemanha sobre a
influência do comunismo na sociedade atual. A cultura deixada pelo comunismo
tem sido debatida, neste ano centenário, com mais lucidez e afinco.
Na Rússia, no entanto, a efeméride passa quase despercebida. O facto
histórico tem perdido importância no calendário russo. O Presidente Vladimir
Putin faz questão de deixar de lado o período que evidenciou o país como
potência, mas que foi marcado pela violência e ainda causa polarização por todo
o mundo.
Mas que autoridade moral e política tem Putin para anular ou eclipsar a
História? O governo de Putin tem marcado a lembrança do período com o grande
silêncio oficial. Mas a liberdade celebrativa, outra forma de expressão pública,
fica ofuscada e restringida em nome da antiviolência. Deus lhe perdoe, que tem
muito por onde. Nenhum grande ato foi programado por Moscovo e, ao contrário, a
tentativa de protesto contra o Presidente terminou com o registo de cerca de
200 prisões. É que ato não fora autorizado pelo Kremlin. Assim funciona a
Rússia dos dias atuais. Ora, se a Rússia não respeita os seus anais, devia
respeitar o mundo que os celebra. E, sem história, não há futuro que o presente
possa preparar. A História não se apaga!
2017.11.07 –
Louro de Carvalho
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