A transferência da sede do Infarmed de Lisboa para o Porto
está a gerar polémica pelo facto de ter sido anunciada de forma súbita após o
conhecimento da perda da corrida do Porto à EMA, embora tendo ficado numa 7.ª
posição na 1.ª ronda de votações, e pelo facto de colocar em causa, que não em
risco, a situação dos trabalhadores cuja especialização é inquestionável, dado
o conteúdo funcional do Instituto.
Obviamente, a dança de candidaturas – Lisboa/Porto –
mostrou-se inócua, tendo o Governo cedido ao Porto o protagonismo da candidatura
pelas pressões advindas ao tempo e por se haver precipitado na indicação da
capital, alegadamente sem auscultação de qualquer outra edilidade. Porém, hoje
crê-se que a candidatura mais não serviu que para marcar terreno e agenda
política de Portugal e do Porto numa batalha antecipadamente dada como perdida.
De resto, nem Lisboa nem Porto – com um tecido urbano a rebentar pelas costuras
e uma rede de transportes e vias de comunicação anquilosadas – têm capacidade
física para alojar cerca de mil habitações de alta qualidade e umas dezenas de
escolas para aquela população de alta sociedade.
Depois, a transferência da sede do Infarmed de Lisboa para
uma outra cidade não significa qualquer passo de descentralização. Descentralizar
não é distribuir as Secretarias de Estado, as Direções-Gerais ou os Institutos pelas
cidades do país nem pôr o Conselho de Ministros a reunir aqui e acolá. Isso, quando
mundo será uma forma de desconcentração. Outra forma de desconcentração é
espalhar por diversas cidades com área geográfica de influência de grande dimensão
delegações de serviços sediados numa cidade de referência política, económica social
ou cultural.
Nada me espantava se todos os entes políticos estivessem
sediados em Lisboa, e as estruturas económicas no Porto, na Covilhã e em Setúbal,
estruturas culturais em Coimbra, Évora e Braga, estruturas sociais em Aveiro,
Beja e Faro. Mas, para haver descentralização, estes entes e estruturas
deveriam ter direções regionais em Lisboa, Porto, Coimbra, Évora e Faro – com pessoal
e serviços próprios, órgãos de poder decisório próprios, ficando as sedes com
um mínimo de pessoal, um órgão definidor dos critérios de decisão e que tomasse
decisões em matérias essenciais (muito poucas) e um órgão coordenador de todas as direções regionais. Se apenas
houvesse delegações para receção e entrega de expediente, prestação de
informações e serviços de proximidade, só teríamos desconcentração.
***
E o que tem o Porto de momento? Tem apenas a sede de seis organismos
públicos e alguns são praticamente “fictícios”. A ida do Infarmed para o Porto deixou
o presidente da autarquia satisfeito, mas os festejos resumem-se apenas à
Câmara. A descrença do avanço da medida – vista como simples moeda de troca
pelo facto de o Porto ter perdido a sede da EMA para Amesterdão – e da sua
índole de verdadeira descentralização está sobrepor-se ao regozijo que seria natural
nos portuenses. Assim, temos, a sul, a polémica com os trabalhadores, que se
dizem surpreendidos, temerosos pela perda ou diminuição dos seus direitos e
regalias ou obrigados a mudar; a norte, o ceticismo, pois, é legítimo perguntar
que vem fazer para o Porto uma sede sem o escol dos trabalhadores que dão
conteúdo ao Instituto. Por outro lado, o ceticismo explica-se pelo pequeno
número de instituições públicas com sede no Porto, algumas meramente simbólicas
e outras porque o líder é portuense. Ora, são apenas seis as entidades
nacionais com sede a norte: o IAPMEI, a Instituição
Financeira de Desenvolvimento (IFD, vulgo banco de fomento), a Agência Nacional de Inovação (ANI), a Entidade Reguladora da Saúde (ERS), a Aicep e a Portugal Ventures (PV). Mas destes 6 organismos nem todos são efetivos no Porto.
A AICEP resulta da fusão entre o ICEP e a API (entidade que chegou a ser liderada
pelo portuense Miguel Cadilhe, ex-ministro das Finanças), tem a sede na Cidade Invicta, mas a maior parte dos serviços e a própria administração estão na
capital. O mesmo sucede com o IAPMEI há anos.
A PV, a capital de risco do Estado português, tem a sede
na Cidade da Virgem, mas tal como o IAPMEI, a ANI e a IFD têm a sede no Porto
por causa da elegibilidade dos fundos comunitários, porque o Porto está numa
zona de coesão ao contrário de Lisboa”. Mais: as delegações desses organismos,
com exceção da IFD, são maiores do que a própria sede.
A ANI, presidida por José Carlos Caldeira,
com os principais serviços no Porto, tem uma delegação em Lisboa, mas só com a atual
presidência a ANI se voltou para a cidade do Porto.
A IFD tem
a sua atividade concentrada a norte. Liderada pelo economista Alberto Castro,
também ele portuense, a instituição foi criada de raiz na Invicta. Emprega
cerca de 37 pessoas. Para o presidente da IFD, “um eventual exercício de
descentralização não pode estar apenas dependente da criação de novos
organismos, caso contrário não acontece”. A respeito do Infarmed, Alberto de
Casto diz:
“Não
precisamos da sede do Infarmed. A sede pode continuar em Lisboa, desde que os
serviços sejam, de facto, descentralizados, ao contrário do que que acontece no
Porto com as sedes do IAPMEI e a AICEP, por exemplo.”.
E acrescenta
com ironia mordaz:
“Obviamente
que as entidades da administração pública que precisam de ser relocalizadas são
processos que acarretam algum ruído, mas a verdade é que esse ruído nunca é tão
grande quando se trata de mudar organismos para a capital”.
Também
o Porto tem a sede da ERS, que opera apenas no Porto
e emprega 70 a 80 pessoas. Eurico Castro Alves, ex-presidente do Infarmed e um
dos coordenadores da candidatura do Porto à EMA (Agência Europeia do Medicamento) sustenta que “a ERS deve ser a única
entidade que tem sede e verdadeiramente atua a partir do Porto”.
Para Castro Alves, a transferência deste regulador para o Porto é muito
importante na medida em que implica uma descentralização, mas “é preciso assegurar que não se estraga a
vida a ninguém, sobretudo aos funcionários do Infarmed”. Essa transferência
deve ser implantada com tempo, sem pressas, pois “o Infarmed precisa de novos
serviços e podem ser esses a vir para o Porto”. E Castro Alves exemplifica:
“É
preciso regular os suplementos alimentares, porque não começar por aí?”.
***
Uma
coisa parece certa, mas mostra a precariedade das tomadas de decisão quanto à
sede de organismos: as grandes instituições públicas que foram ou são lideradas por homens do norte estão mais vocacionadas para
olharem para a cidade do Porto e até para aí se localizarem.
Foi assim com a criação da API, liderada por Miguel Cadilhe, no início; é assim
com a ANI; e, mesmo no caso da CMVM, que anunciou o fecho da delegação do
Porto, é uma realidade que se aplica. Carlos Alves, ex-membro do conselho de administração
da CMVM, é do Porto e durante anos “segurou” a delegação daquele organismo no
norte.
Mas isto
não acontece apenas com os organismos públicos. As entidades privadas fazem
coisa similar. A Euronext saiu de Belfast para o Porto, onde
instalou o seu centro tecnológico. Manuel Ferreira da Silva,
ex-administrador do BPI e administrador não executivo da Euronext frisa:
“Obviamente,
que é importante ter pessoas do Porto, porque assim quando se fala de Portugal
não se pensa apenas em Lisboa, mas também no Porto”.
Foi
por isso que a cidade do Porto terá sido escolhida para ter mais de 140 postos
de trabalho. E, sem querer entrar no conflito do Infarmed, o ex-administrador
do BPI opina:
“O Porto entrou tarde na
corrida à EMA e, mesmo assim, apresentou uma candidatura em tempo recorde e
conseguiu colocar a cidade no mapa dos investidores, porque demonstrou as suas
reais capacidades, que poderão agora ser canalizadas para o Infarmed”.
Para Luís
Aguiar Conraria, professor da Universidade do Minho, a transferência do
Infarmed de Lisboa para o Porto
pode ter duas leituras. Diz a respeito disso:
“Por
um lado, concordo com a medida da deslocalização e, se for bem feita, não penso
que traga grandes problemas. São cerca de 300 que, caso não queiram ir
para o Porto, podem ser absorvidas pelos inúmeros institutos e faculdades que
existem em Lisboa. Mas, por outro lado, também penso que se fosse funcionário
do Infarmed e soubesse da notícia pelos jornais não ia gostar”.
Segundo
Conraria, “se a
medida for bem feita é perfeitamente concretizável e é uma boa medida de
desenvolvimento regional”.
O
economista aduz o exemplo de outros países: o Tribunal Constitucional está em Lisboa,
na Holanda fica em Haia; o Supremo Tribunal está em Lisboa, na Alemanha está em
Karlsruhe; o Banco de Portugal está na capital, o banco central alemão fica em
Frankfurt e não em Berlim. E, segundo ele, a lista podia continuar, desde a
ERSE, à ASAE, ao LNEC passando pela Companhia Nacional de Bailado…
O Porto, conhecido como a capital do trabalho, foi
em tempos o reduto principal da banca nacional. O BCP já teve a sua sede
oficial na Invicta. Hoje continua na Praça João I, mas a administração está
concentrada em Lisboa e já nem as assembleias gerais são feitas no Porto.
A entrada
do CaixaBank no BPI pode alterar a configuração. Mas para já a sede do banco é
no Porto, se bem que a administração esteja cada vez mais longe da Rua Tenente
Valadim. Em tempos idos, também o BPA, que veio a ser absorvido pelo BCP, tinha
a sede a norte. A Sonae continua a ser
o grande bastião a norte, logo seguida pelo grupo
Amorim, Mota-Engil, Efacec, BA Vidro, Salvador Caetano, Cin, Super Bock Group, entre
outras.
No
mundo associativo, a AEP tem
sede em Matosinhos e as principais associações setoriais estão
sediadas a norte. A associação do têxtil está em Famalicão,
onde se situa grande parte da indústria. No caso do calçado, a APICCAPS, tem sede
no Porto, o mesmo sucedendo com o setor metalúrgico (AIMMAP) e
com a construção civil (AICCOPN). Já a cortiça tem sede em Santa
Maria de Lamas, paredes meias com a maior empresa do setor, a Corticeira
Amorim.
***
Apesar de tudo, as entidades privadas privilegiam
mais o Porto e arredores que o Estado. Recordo que o GETAP (gabinete do
ensino técnico, artístico e profissional) esteve no Porto dirigido por
Joaquim Azevedo e deu origem a que o DES (Departamento do Ensino Secundário) chegasse
a estar no Porto. No entanto, os atos oficiais eram celebrados em Lisboa e o Porto
passou a ter um diretor adjunto. O Porto manteve por muito tempo o NEP (núcleo do
ensino profissional), mas Lisboa tinha o NAP (núcleo de
apoio a projetos), com o gabinete de gestão financeira, e o NAT (núcleo de
apoio técnico). Havia o DES-Porto e o DES-Liboa. Progressivamente, o NEP também
funcionou em parte em Lisboa, até que as competências do NEP passaram para as direções
regionais de educação e o Porto perdeu o DES.
***
O porto
vai perder a delegação da CMVM (Comissão do Mercado de Valores Mobiliários). E o PSD alega a violação de estatutos no
encerramento da CMVM no Porto, levantando a questão da ilegalidade, e Rui
Moreira já escreveu ao Ministério das Finanças.
O PSD
questionou o Governo sobre o encerramento da delegação do Porto, alertando que
a decisão “viola fortemente os estatutos” da instituição. A interpelação ao
Governo foi feita através de requerimento e de pergunta dirigidos ao ministro das
Finanças, em que uma lista 14 deputados socialdemocratas, encabeçada por Paulo
Rios, destaca que os estatutos da CMVM determinam que a
entidade “tem a sua sede em Lisboa e uma delegação no Porto”. Também o vereador do PSD na
Câmara do Porto, Álvaro Almeida, enviou carta à presidente da CMVM para saber “qual o ganho de eficiência resultante da
concentração em Lisboa de todos os serviços” daquele organismo. Na carta,
Álvaro Almeida questiona a presidente da CMVM sobre o motivo de optar por não
concentrar “parte dos serviços na delegação do Porto, beneficiando assim da
elevada qualificação dos recursos humanos com disponibilidade” para aí
trabalhar, “com custos operacionais inferiores”. O vereador pede ainda à
presidente que esclareça “qual a base jurídica” que permite que um artigo dos
estatutos da entidade “não esteja a ser respeitado”.
Quanto
ao requerimento e pergunta apresentados pelo PSD na Assembleia da República, os
deputados consideram que “importa saber
quais as razões objetivas que motivaram a decisão e qual o impacto que a mesma
vai ter para a região e para as empresas aí sediadas, sobretudo relevando o
discurso descentralista que o atual Governo tem vindo a apregoar”. Os
deputados querem ainda saber se Mário Centeno “foi previamente informado” da
deliberação, “qual a posição manifestada” e se “está prevista uma alteração dos
estatutos” da CMVM.
O
presidente da autarquia, o independente Rui Moreira, disse estar a par do
encerramento, admitindo desconhecer a “dimensão da legalidade ou ilegalidade”
da decisão. E afirmou:
“Esta
situação deve merecer a maior das nossas preocupações. Somos sempre confrontados
com factos consumados. Por isso, temos um país inclinado. Há um discurso pela
descentralização, mas o que querem é muito mais livrar-se de maçadas do que
descentralizar.”.
A CMVM encerrou a delegação no Porto por “já não haver razões” para a sua
existência e por alegadamente
haver a necessidade gestão eficiente de recursos, tendo chegado
a acordo de rescisão com três dos quatro funcionários. A mesma fonte recordou
que, no Porto, “existia uma bolsa de valores e vários emitentes e intermediários
financeiros que ali tinham sede, como bancos e fundos de investimento”, o
que deixou de acontecer, estando tudo centrado na sede, em
Lisboa. Acresce que a “evolução tecnológica” tornou mais fácil aceder à
instituição.
Quanto
aos funcionários do Porto, informou que foi oferecida a possibilidade
de passarem a
exercer funções na sede suportando a CMVM os encargos
dessa deslocação, decorrentes da alteração do local de
trabalho. Contudo, três não aceitaram estas condições e “deixaram de colaborar
com a CMVM, recebendo a remuneração a que tinham direito”.
***
Enfim,
contradições no discurso da descentralização quanto a factos e quanto a
conceito. Confunde-se sede com instalação-sede, sem que as decisões essenciais
e a coordenação se tomem ali; confunde-se descentralização com desconcentração e
distribuição. E muda-se de sede, de delegação ou de serviço como quem muda de camisa.
Dar um instituto a uma cidade em troca da perda duma candidatura internacional é
ridículo e responde atabalhoada e ridiculamente a um bairrismo que até seria legítimo (mas aqui foi patego) e suscita a polémica irracional, só porque uma sede sai da capital. E, em
termos de descentralização, é uma medida demagógica e populista, podendo
representar uma dos piores ziguezagues do Governo.
2017.11.26 –
Louro de Carvalho
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