quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Foi a sepultar o dono de um grande empório empresarial

Muitas pessoas do mundo empresarial e político foram despedir-se à igreja de Cristo Rei, no Porto, de Belmiro de Azevedo, que se finou ontem, dia 29 de novembro, aos 79 anos de idade.
Assim passa a glória do mundo, dirão as pessoas realistas; deixou um grande legado, dizem os admiradores; não foi tanto assim, dirão os detratores.
As preocupações, as intuições e a multifacetada obra empresarial, cultural e social do finado são conhecidas da grande maioria dos portugueses que tenha opinião.
Pessoalmente, gostei dos comentários desapaixonados que tentaram ler a biografia do homem segundo os parâmetros da contenção e da justiça apreciativa. Louvá-lo como empresário, grande empregador e de obra multifacetada – desde a indústria transformadora, à engenharia financeira e das comunicações até às preocupações culturais e sociais – é de inteira justiça. Espera-se que o grupo Sonae não venha a desdizer da intuição e dos esforços do seu patriarca empresarial.
Porém, esquecer que a relação com os sues trabalhadores não terá sido a melhor em termos do conforto, da equidade de tratamento e da valorização salarial não é realista, embora a culpa possa não ser da pessoa do empresário, mas porventura do estado-maior que o circundava e adulava, sobretudo em termos da inevitabilidade ou do determinismo fatalista que impende sobre os trabalhadores e sobre os pobres.
Obviamente que o mecenatismo cultural e a própria beneficência social, para lá dos efeitos benéficos sobre quem vêm recaindo, configuram também uma desresponsabilização fiscal, assim como a deslocação da sede do grupo para um dos países do Norte da Europa.
Por isso, não gostei dos comentários de Marcelo Rebelo de Sousa, totalmente encomiásticos e a incorporar afirmações que escondem o que acabei de enunciar ou os de Lobo Xavier, quando diz que até se sentia com vergonha de junto dele ter a noção da superioridade de conforto material. Não era preciso tanto! Se calhar nem Belmiro queria ou esperava esse tipo de loas.
Porém, Carvalho da Silva disse o que era preciso: um grande empresário, de grande visão e um dos grandes empregadores, bem como a sua capacidade de argumentação e de luta aguerrida, mas apontou a pequenez no âmbito das remunerações salariais. Acho que era preciso dizer isto tudo, para não passarmos do homem ao mito. Admiro o homem e recuso o mito.
No entanto, admirei uma suposta citação do empresário na 1.ª página do JN de hoje “Nunca estive zangado com a vida”. Presumo que tenha vivido com essa sensação e o tenha dito com sinceridade. Não obstante, se é verdade o que disse, não se compreende que tenha dito tão mal da política e dos políticos – não valendo dizer que só não gostava daqueles que dizem uma coisa e fazem outra, pois isso também acontece nas empresas: dizemos facilmente e queremos uma coisa, com sinceridade ou sem ela, e fazemos outra – ou que tenha cortado relações com A ou B por causa da derrota em certas tentativas de negócio sem êxito.   
***
Como diz o Eco, são muitos os êxitos do empresário, tendo um percurso empreendedor de sucesso como poucos, mas também colecionou alguns insucessos, que é justo não olvidar.
Um dos empresários portugueses mais bem-sucedidos tem, apesar de tudo, um currículo negocial não imune ao insucesso. Desde a má experiência no Brasil ao falhanço da OPA (oferta pública de aquisição) sobre a PT, passando pelo corte de relações com o antigo ministro da Economia Carlos Tavares, o antigo presidente da Sonae colecionou um conjunto de “flops” que até redundaram num engordamento da sua carteira empresarial e pessoal.
Belmiro de Azevedo apresentou, a 6 de fevereiro de 2006, uma oferta de 11,8 mil milhões de euros para comprar a PT (Portugal Telecom) em 2007. Mas tal não chegou para convencer os acionistas, entre os quais estava o Estado (através da golden share). Perante o inêxito, confidenciou que chegaria a viver tempo suficiente para perceber as razões que levaram a OPA ao falhanço. E de algum modo topou as respostas às suas dúvidas.
Apercebendo-se de que teria de acenar com mais dinheiro para chamar a atenção de mais acionistas, um ano depois, engrossou a oferta com mais 700 milhões de euros.
Porém, o que seria o maior negócio de sempre em Portugal acabou por não chegar a ser. Mesmo assim, a magnitude da operação requereu operações diplomáticas junto do Governo. Lembrou o empresário, pouco tempo depois de a OPA da Sonaecom ter falhado em definitivo com o chumbo numa assembleia geral da PT, realizada em março de 2007:
Foi a única vez que, com o meu filho Paulo, e pela dimensão do projeto, decidi ir falar com o Primeiro-Ministro, por uma razão simples: era uma OPA hostil e um dos acionistas era o Estado, com uma golden share. Se o Governo nos tivesse dito nessa altura que não, que seria contra a venda da PT, nós não teríamos lançado a operação. [Sócrates] ficou muito espantado e elogiou imenso a ousadia da Sonae. Por isso, avançámos”.
E acusou o antigo Primeiro-Ministro de ter dado ordens à CGD (Caixa Geral de Depósitos) para votar contra a milionária proposta da Sonae. Dizia o empresário:
Perguntei a cinco antigos presidentes da CGD quem mandava em situações como aquela e todos me disseram o mesmo: a independência da administração é total, exceto relativamente à EDP, Galp e PT. Não tenho, pois, dúvidas de que o voto contra da Caixa, na Assembleia Geral que chumbou a OPA, foi ditado pelo Governo. Todos os sabem. E estou convencido de que ainda vou ter vida suficiente para saber exatamente como tudo se passou nos bastidores.”.
Foi a partir daqui que o Público arrancou com a celeuma da licenciatura de Sócrates, cujo dossiê já estava preparado há dois anos, como chegou a revelar o então diretor do jornal, só que ainda não tinha sido encontrado o tempo próprio para a publicação.
De alguma forma, o tempo deu-lhe razão. Em 2015, os investigadores do Ministério Público iniciaram a investigação o falhanço desta OPA. Este ano, quando foi conhecida a acusação da Operação Marquês, soube-se que Sócrates é suspeito de ter recebido, de Ricardo Salgado, seis milhões de euros para travar a OPA à PT. Vamos ver se a acusação tem consistência e se prova.
Carlos Tavares travou a compra da Portucel em 2002. Este foi outro dos grandes confrontos de Belmiro com o poder político. O Governo pretendia privatizar a papeleira Portucel, onde detinha uma posição de 56%. Entre os interessados estava a Sonae, o segundo maior acionista da papeleira portuguesa com 25% do capital. Belmiro queria ter o controlo absoluto, ter o poder de decidir o futuro da empresa que trabalhava num setor que a Sonae bem conhecia. Mas essa não era a intenção do Ministro da Economia, Carlos Tavares, que definiu através do modelo de privatização que a Portucel “não deverá ser dominada por um único acionista”, tendo os acionistas que habituar-se a partilhar o poder.
A postura ministerial foi encarada pelo empresário como uma clara orientação política numa privatização que deveria seguir as regras do mercado ou que, pelo menos, favorecesse um grupo português. Por isso, o então presidente da Sonae cortou relações com Carlos Tavares, acusando-o de revelar frustração por nunca ter gerido uma empresa. Numa entrevista ao Semanário Económico publicada na altura, Belmiro declarava:
O Governo poderia fazer o que é normal, que é proteger um grupo português (…). Houvesse uma grande empresa portuguesa para privatizar que fosse para portugueses.”.
Fora da corrida pela Portucel, a Sonae vendeu a sua posição em 2004 por cerca de 300 milhões de euros, depois de aceitar a proposta de aquisição da Semapa, de Pedro Queiroz Pereira. Anos mais tarde, Paulo Azevedo reconhecia em declarações ao Jornal de Negócios que “felizmente não ficou mal entregue”. É a Navigator atual, uma das maiores papeleiras do mundo.
O samba no Brasil também correu mal. Poucos anos após se ter iniciado no setor do retalho e distribuição em Portugal, a Sonae tentava internacionalizar-se neste segmento. Foi no Brasil que comprou parte da CDR em 1989 e, embora tenha adquirido depois a totalidade deste grupo, a operação brasileira nunca trouxe o retorno desejado para o empreendedor.
Sendo verdade que os grandes grupos de retalho nacionais raramente singraram no Brasil, por várias vezes, o próprio Belmiro disse não recusar uma proposta pelo seu negócio de distribuição que fosse suficientemente atrativa, a qual apareceu. Através da Modelo Investimentos Brasil, o grupo português vendeu todas as lojas que detinha naquele mercado por 635 milhões de euros ao grupo americano Wal-Mart, tendo garantido não investir ali tão cedo.
Se agora se insurgia contra a compra da Media Capital pela Altice, há uns anos era a Sonae que procurava alargar os seus interesses nos conteúdos televisivos. Mais concretamente em 1998, tinha a TVI cinco anos de vida, quando Belmiro assumiu posição de destaque dentro da estação de Queluz. Em junho desse ano, a Sonae associou-se à Cisneros e à Lusomundo para ficar com a gestão daquele canal. E foi por indicação de Belmiro que José Eduardo Moniz assumiu funções como diretor-geral da estação. Mesmo assim, a aventura da Sonae na TVI acabaria por não durar muito tempo. A Media Capital de Pais do Amaral açambarcou as posições de referência daquelas três empresas e passou a deter mais de 90% do capital da TVI.
A história da OPA do BCP ao BPA é mais um capítulo em que as coisas não correram ao gosto de Belmiro de Azevedo. Em 1992, na sequência do processo de privatização do BPA (Banco Português do Atlântico), a Sonae vislumbrou a oportunidade de controlar um banco português. E, durante algum tempo, manteve tal expectativa, pois contava com aliados poderosos, entre eles grupo Mota, a Riopele, a RAR, Ilídio Pinho, a Soares da Costa, a Valongo, a Maconde, a Quintas e a Salvador Caetano. Magalhães Pinto, quadro do BPA, recorda no livro que conta os 50 anos da história da Sonae:
Quando a Sonae entra no BPA, a sua intenção era ser uma acionista de referência do maior banco português e, se possível, controlar. Estes eram os objetivos fundamentais. Ainda que fosse importante a alavanca poderosíssima que seria esse controlo para o resto dos negócios da Sonae.”.
Mas a administração do banco liderado por João Oliveira queria que fossem os quadros a mandar, como acontecia no alemão Deutsche Bank. E a perfeita distribuição do controlo do capital do BPA pelos vários acionistas permitiu tal gestão independente durante algum tempo, até que o BCP lançou uma primeira OPA em 1995, sem grandes resultados.
Tentaram blindar os estatutos do banco para evitar uma nova OPA no futuro. Administração e acionistas estavam de acordo, com exceção da Sonae, o maior acionista com 9% do BPA, que queria controlar totalmente a instituição.
Terá sido o Ministro das Finanças da altura, Eduardo Catroga, a convidar o BCP para lançar um novo ataque ao BPA. E O BCP respondeu afirmativamente deixando quase todos os acionistas aliviados. Só a Sonae ficou descontente, batalhando até ao último momento para evitar o sucesso da OPA, agindo de modo próprio, quase sem aproximação à administração do banco e, a certa altura, contando com o apoio do BPI. Belmiro só se deu por vencido quando o BPI foi informado de que o governo não autorizava a operação. Mas o BPA foi mais tarde absorvido pelo BCP/Milennium.
***
É um homem emoldurado por êxitos e fracassos que vale a pena apreciar. Caso contrário, estaríamos perante o santo ou o mito. O santo venera-se; o mito não existe, a não ser para animar a alma dos povos. De resto a economia não vive de mitos e é pena se a política se alimenta deles.
E a nossa história regista uma plêiade de homens corajosos, mas que, às vezes, conheceram o fracasso e a derrota e não foram menos portugueses e menos humanos por isso.

2017.11.30 – Louro de Carvalho

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