Muitas pessoas do mundo empresarial e político foram
despedir-se à igreja de Cristo Rei, no Porto, de Belmiro de Azevedo, que se finou
ontem, dia 29 de novembro, aos 79 anos de idade.
Assim passa a glória do mundo, dirão as pessoas
realistas; deixou um grande legado, dizem os admiradores; não foi tanto assim,
dirão os detratores.
As preocupações, as intuições e a multifacetada
obra empresarial, cultural e social do finado são conhecidas da grande maioria
dos portugueses que tenha opinião.
Pessoalmente, gostei dos comentários desapaixonados
que tentaram ler a biografia do homem segundo os parâmetros da contenção e da
justiça apreciativa. Louvá-lo como empresário, grande empregador e de obra
multifacetada – desde a indústria transformadora, à engenharia financeira e das
comunicações até às preocupações culturais e sociais – é de inteira justiça. Espera-se
que o grupo Sonae não venha a desdizer da intuição e dos esforços do seu patriarca
empresarial.
Porém, esquecer que a relação com os sues
trabalhadores não terá sido a melhor em termos do conforto, da equidade de
tratamento e da valorização salarial não é realista, embora a culpa possa não
ser da pessoa do empresário, mas porventura do estado-maior que o circundava e
adulava, sobretudo em termos da inevitabilidade ou do determinismo fatalista
que impende sobre os trabalhadores e sobre os pobres.
Obviamente que o mecenatismo cultural e a própria
beneficência social, para lá dos efeitos benéficos sobre quem vêm recaindo,
configuram também uma desresponsabilização fiscal, assim como a deslocação da
sede do grupo para um dos países do Norte da Europa.
Por isso, não gostei dos comentários de Marcelo
Rebelo de Sousa, totalmente encomiásticos e a incorporar afirmações que
escondem o que acabei de enunciar ou os de Lobo Xavier, quando diz que até se
sentia com vergonha de junto dele ter a noção da superioridade de conforto
material. Não era preciso tanto! Se calhar nem Belmiro queria ou esperava esse
tipo de loas.
Porém, Carvalho da Silva disse o que era
preciso: um grande empresário, de grande visão e um dos grandes empregadores, bem
como a sua capacidade de argumentação e de luta aguerrida, mas apontou a pequenez
no âmbito das remunerações salariais. Acho que era preciso dizer isto tudo,
para não passarmos do homem ao mito. Admiro o homem e recuso o mito.
No entanto, admirei uma suposta citação do empresário
na 1.ª página do JN de hoje “Nunca estive
zangado com a vida”. Presumo que tenha vivido com essa sensação e o tenha
dito com sinceridade. Não obstante, se é verdade o que disse, não se compreende
que tenha dito tão mal da política e dos políticos – não valendo dizer que só
não gostava daqueles que dizem uma coisa e fazem outra, pois isso também
acontece nas empresas: dizemos facilmente e queremos uma coisa, com sinceridade
ou sem ela, e fazemos outra – ou que tenha cortado relações com A ou B por
causa da derrota em certas tentativas de negócio sem êxito.
***
Como diz o Eco,
são muitos os êxitos do empresário, tendo um percurso empreendedor de sucesso como
poucos, mas também colecionou alguns insucessos, que é justo não olvidar.
Um dos empresários portugueses mais bem-sucedidos tem, apesar de tudo, um currículo
negocial não imune ao insucesso. Desde a má experiência no Brasil ao falhanço
da OPA (oferta
pública de aquisição) sobre a
PT, passando pelo corte de relações com o antigo ministro da Economia Carlos
Tavares, o antigo presidente da Sonae colecionou um conjunto de “flops” que até
redundaram num engordamento da sua carteira empresarial e pessoal.
Belmiro de Azevedo apresentou, a 6 de fevereiro de 2006, uma oferta de 11,8
mil milhões de euros para comprar a PT (Portugal
Telecom) em
2007. Mas tal não chegou para convencer os acionistas, entre os quais estava o
Estado (através
da golden share). Perante o
inêxito, confidenciou que chegaria a viver tempo suficiente para perceber as razões
que levaram a OPA ao falhanço. E de algum modo topou as respostas às suas
dúvidas.
Apercebendo-se de que teria de acenar com mais dinheiro para chamar a
atenção de mais acionistas, um ano depois, engrossou a oferta com mais 700
milhões de euros.
Porém, o que seria o maior negócio de sempre em Portugal
acabou por não chegar a ser. Mesmo assim, a magnitude da operação requereu
operações diplomáticas junto do Governo. Lembrou o empresário, pouco tempo
depois de a OPA da Sonaecom ter falhado em definitivo com o chumbo numa
assembleia geral da PT, realizada em março de 2007:
“Foi a única vez que, com o meu filho Paulo,
e pela dimensão do projeto, decidi ir falar com o Primeiro-Ministro, por uma
razão simples: era uma OPA hostil e um dos acionistas era o Estado, com uma golden share. Se o Governo nos tivesse dito nessa
altura que não, que seria contra a venda da PT, nós não teríamos lançado a
operação. [Sócrates] ficou muito espantado e elogiou imenso a ousadia da Sonae.
Por isso, avançámos”.
E acusou o antigo Primeiro-Ministro de ter dado ordens à CGD (Caixa Geral
de Depósitos) para votar
contra a milionária proposta da Sonae. Dizia o empresário:
“Perguntei a cinco antigos presidentes da
CGD quem mandava em situações como aquela e todos me disseram o mesmo: a
independência da administração é total, exceto relativamente à EDP, Galp e PT.
Não tenho, pois, dúvidas de que o voto contra da Caixa, na Assembleia Geral que
chumbou a OPA, foi ditado pelo Governo. Todos os sabem. E
estou convencido de que ainda vou ter vida suficiente para saber exatamente
como tudo se passou nos bastidores.”.
Foi a partir daqui que o Público
arrancou com a celeuma da licenciatura de Sócrates, cujo dossiê já estava
preparado há dois anos, como chegou a revelar o então diretor do jornal, só que
ainda não tinha sido encontrado o tempo próprio para a publicação.
De alguma forma, o tempo deu-lhe razão. Em 2015, os investigadores do
Ministério Público iniciaram a investigação o falhanço desta OPA. Este ano,
quando foi conhecida a acusação da Operação Marquês, soube-se que Sócrates é
suspeito de ter recebido, de Ricardo Salgado, seis milhões de euros para travar
a OPA à PT. Vamos ver se a acusação tem consistência e se prova.
Carlos
Tavares travou a compra da Portucel em 2002. Este foi outro dos
grandes confrontos de Belmiro com o poder político. O Governo pretendia
privatizar a papeleira Portucel, onde detinha
uma posição de 56%. Entre os interessados
estava a Sonae, o segundo maior acionista da papeleira portuguesa com 25% do
capital. Belmiro queria ter o controlo absoluto, ter o poder de
decidir o futuro da empresa que trabalhava num setor que a Sonae bem conhecia. Mas
essa não era a intenção do Ministro da Economia, Carlos Tavares, que
definiu através do modelo de privatização que a Portucel “não deverá ser dominada por um único acionista”, tendo os acionistas
que habituar-se a partilhar o poder.
A postura ministerial foi encarada pelo empresário como uma clara
orientação política numa privatização que deveria seguir as regras do mercado
ou que, pelo menos, favorecesse um grupo português. Por isso, o então presidente da Sonae cortou relações com Carlos Tavares,
acusando-o de revelar frustração por nunca ter gerido uma empresa. Numa entrevista
ao Semanário Económico publicada na
altura, Belmiro declarava:
“O Governo poderia fazer o que é normal, que
é proteger um grupo português (…). Houvesse uma grande empresa portuguesa para
privatizar que fosse para portugueses.”.
Fora da corrida pela Portucel, a Sonae vendeu a sua posição em 2004 por
cerca de 300 milhões de euros, depois de aceitar a proposta de aquisição da
Semapa, de Pedro Queiroz Pereira. Anos mais tarde, Paulo Azevedo reconhecia em
declarações ao Jornal de Negócios que
“felizmente não ficou mal entregue”. É a Navigator
atual, uma das maiores papeleiras do mundo.
O samba no
Brasil também correu mal. Poucos anos após se ter iniciado no
setor do retalho e distribuição em Portugal, a Sonae tentava internacionalizar-se
neste segmento. Foi no Brasil que comprou parte da CDR em 1989 e, embora tenha
adquirido depois a totalidade deste grupo, a operação brasileira nunca trouxe o
retorno desejado para o empreendedor.
Sendo verdade que os grandes grupos de retalho nacionais raramente
singraram no Brasil, por várias vezes, o próprio Belmiro disse não recusar uma
proposta pelo seu negócio de distribuição que fosse suficientemente atrativa, a
qual apareceu. Através da Modelo Investimentos Brasil, o grupo português vendeu
todas as lojas que detinha naquele mercado por 635 milhões de euros ao grupo
americano Wal-Mart, tendo garantido não investir ali tão cedo.
Se agora se insurgia contra a compra da Media Capital pela Altice, há uns anos
era a Sonae que procurava alargar os seus interesses nos conteúdos televisivos.
Mais concretamente em 1998, tinha a TVI cinco anos de vida, quando Belmiro assumiu
posição de destaque dentro da estação de Queluz. Em
junho desse ano, a Sonae associou-se à Cisneros e
à Lusomundo para ficar com a gestão daquele canal. E foi
por indicação de Belmiro que José Eduardo Moniz assumiu funções como
diretor-geral da estação. Mesmo assim, a aventura da Sonae na TVI acabaria por
não durar muito tempo. A Media Capital de
Pais do Amaral açambarcou as posições de referência daquelas três empresas e
passou a deter mais de 90% do capital da TVI.
A história da OPA do BCP ao BPA é mais um capítulo em que as coisas não
correram ao gosto de Belmiro de Azevedo. Em 1992, na sequência do processo de privatização do BPA (Banco
Português do Atlântico), a Sonae vislumbrou a oportunidade de controlar um banco português.
E, durante algum tempo, manteve tal expectativa, pois contava com aliados
poderosos, entre eles grupo Mota, a Riopele, a RAR, Ilídio Pinho, a Soares da
Costa, a Valongo, a Maconde, a Quintas e a Salvador Caetano. Magalhães Pinto,
quadro do BPA, recorda no livro que conta os 50 anos da história da Sonae:
“Quando a Sonae entra no BPA, a sua intenção
era ser uma acionista de referência do maior banco português e, se possível,
controlar. Estes eram os objetivos fundamentais. Ainda que fosse importante a
alavanca poderosíssima que seria esse controlo para o resto dos negócios da
Sonae.”.
Mas a administração do banco liderado por João Oliveira queria que fossem os
quadros a mandar, como acontecia no alemão Deutsche Bank. E a perfeita
distribuição do controlo do capital do BPA pelos vários acionistas permitiu tal
gestão independente durante algum tempo, até que o BCP lançou uma primeira
OPA em 1995, sem grandes resultados.
Tentaram blindar os estatutos do banco para evitar uma nova OPA no futuro.
Administração e acionistas estavam de acordo, com exceção da Sonae, o maior
acionista com 9% do BPA, que queria controlar totalmente a instituição.
Terá sido o Ministro das Finanças da altura, Eduardo Catroga, a convidar o
BCP para lançar um novo ataque ao BPA. E O BCP respondeu afirmativamente deixando
quase todos os acionistas aliviados. Só a Sonae ficou descontente, batalhando
até ao último momento para evitar o sucesso da OPA, agindo de modo próprio,
quase sem aproximação à administração do banco e, a certa altura, contando com
o apoio do BPI. Belmiro só se deu por vencido quando o BPI foi
informado de que o governo não autorizava a operação. Mas o BPA foi mais
tarde absorvido pelo BCP/Milennium.
***
É um homem emoldurado por êxitos e fracassos que vale a pena apreciar. Caso
contrário, estaríamos perante o santo ou o mito. O santo venera-se; o mito não
existe, a não ser para animar a alma dos povos. De resto a economia não vive de
mitos e é pena se a política se alimenta deles.
E a nossa história regista uma plêiade de homens corajosos, mas que, às
vezes, conheceram o fracasso e a derrota e não foram menos portugueses e menos humanos
por isso.
2017.11.30 –
Louro de Carvalho
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