Com 21 deputados
tories expulsos por darem primeira derrota parlamentar ao novo Primeiro-Ministro
(PM) Boris Johnson, o primeiro
de três dias na Câmara dos Comuns deixou o reino à beira de eleições e Boris
satisfeito.
No termo da
manhã do dia 3, vários deputados conservadores “rebeldes” – incluindo
ex-ministros (Philip
Hammond ou David Gauke),
o deputado mais antigo da Câmara (Kenneth Clark) e o neto de Winston Churchill (Nicholas Soames) – reuniram-se com o PM no n.º 10 de Downing Street e
declararam votar contra o Governo à tarde, no Parlamento. Por conseguinte, à
noite, já tinham sido expulsos do partido.
Boris
Johnson dizia não tolerar “uma proposta de lei que entrega o poder às mãos de
Corbyn”, enquanto Philip Hammond declarava estarem “a entregar o poder ao
Parlamento” e ao que
Johnson retorquia que estavam “a entregar o poder a uma junta que inclui Jeremy Corbyn”.
Johnson retorquia que estavam “a entregar o poder a uma junta que inclui Jeremy Corbyn”.
E cada um
reforçava a sua posição. Os rebeldes apoiaram uma moção parlamentar, aprovada
com 328 votos contra 301, para que se discutisse hoje, dia 4, uma proposta de
lei que trava um no deal e obriga o Governo a pedir um
adiamento do Brexit se não houver acordo. Porém, o PM garantia que avançaria a
pedir eleições caso a proposta fosse aprovada.
A planeada
intervenção do PM sobre a reunião do G7 rapidamente evoluiu para o debate sobre
o Brexit, com o Chefe do Governo a prometer não se render a Bruxelas. Isto no
meio de gritos, vaias e todo o tipo de comoção na Câmara
dos Comuns. E o PM acrescentou:
“Querem
minar-nos, querem forçar-nos a implorar por outro adiamento inútil. Se isso
acontecer, todo o progresso que fizemos não vale nada.”.
A resposta do
líder da oposição teve nota para a “linguagem” de Boris, ao dizer que “não é uma rendição, porque não estamos em
guerra com a UE”, e constituiu espaço para acusações:
“Este
Governo está a esconder-se do escrutínio do povo e está a esconder-nos as suas
verdadeiras intenções. Este não é apenas um Governo do caos, é um Governo da
cobardia.”.
Durante a
prestação do líder dos trabalhistas, o deputado conservador Philip Lee
atravessou a Câmara e sentou-se na bancada do lado oposto à que era usual
ocupar, junto dos Liberais-Democratas, consolidando-se assim a sua demissão do
partido. Foi uma das estratégias utilizadas pelos tories rebeldes,
com muitos outros a anunciar que não se recandidatarão, assumindo que esta
votação ditará a sua despedida da Câmara dos Comuns.
A sessão
ficou ainda marcada pela prestação do novo Ministro dos Assuntos Parlamentares
Jacob Rees-Mogg, que deu nas vistas pela sua postura relaxada e a ser
fotografado praticamente deitado sobre as bancadas do Governo. A oposição falou
em “desrespeito” pela Câmara dos Comuns, mas a troca de mimos entre o Ministro
e o Presidente da Câmara, John Bercow, deixou mais clara a guerra entre o Governo
e o Parlamento.
Rees-Mogg
destacou princípios processuais que Bercow respeitou no passado, o que não
estaria a fazer desta feita, acusando o presidente de errar ao aceitar que a
moção fosse debatida:
“Seria errado da minha parte
questionar a sua imparcialidade, mas reconhecer a imparcialidade de alguém não
significa reconhecer a sua infalibilidade”.
Bercow, por
sua vez, apontando exemplos de precedente que justificariam a sua decisão,
disse:
“Procurei
exercer o meu julgamento em função de facilitar a Câmara dos Comuns, facilitar
a legislatura. Fi-lo, continuo a fazê-lo e irei fazê-lo – citando alguém,
aconteça o que acontecer, dê por onde der.”.
A alfinetada
era obviamente para Boris Johnson, que havia usado exatamente essas expressões
horas antes, naquela mesma Câmara.
***
Um porta-voz
do PM já tinha feito drama ao longo do dia, numa última tentativa de convencer
os tories rebeldes, definindo a votação como “uma moção de
confiança” ao Governo. Com a saída de Philip Lee para os Liberais-Democratas, o
Governo sabia que perdera a maioria efetiva na Câmara e, com a sangria prevista
para a noite, arriscava-se a pô-la ainda mais a jogo, já que tinha prometido
expulsar todos os que fugissem da linha partidária. Consolidava-se o cenário de
eleições antecipadas, com fontes governamentais a soprarem aos jornalistas a
data de 14 de outubro, entretanto, alterada para dia 15, para não coincidir com
o feriado judaico do Sucot.
Todavia,
pouco depois do bater das 22 horas, os rebeldes tories ajudaram
a aprovar a moção por uma maioria ainda maior do que o esperado (328 votos ao todo, dos quais 21 de
conservadores) e Boris
respondeu com a ameaça de eleições, como tanto tinham anunciado as “fontes
governamentais”:
“Vamos
ter de fazer uma escolha. Não quero eleições, ninguém quer
eleições, mas, se a Câmara aprovar esta proposta de lei amanhã, o país terá de
decidir quem vai a Bruxelas.”.
Assim, se os
deputados mantivessem este sentido de voto no dia 4, como aconteceu, o
Primeiro-Ministro apresentaria uma moção para convocar eleições. Mas restava a
dúvida se o Partido Trabalhista aprovaria esse cenário. Segundo as regras
parlamentares, para um Governo convocar eleições antecipadas (exceto em caso de moção de censura) tem o Parlamento de aprovar a
proposta por maioria de dois terços.
À primeira
vista, o PM saiu derrotado daquela noite noite, com a sua primeira votação
parlamentar a derrubá-lo à custa de deputados revoltosos do próprio partido.
Não obstante, por uma leitura mais aprofundada, vê-se que este era o desejo do
Chefe do Governo, desagradado com uma maioria tão curta no Parlamento. À saída
da Câmara dos Comuns, o chefe de gabinete de Boris e estratega da campanha pela
saída no referendo atirou um desafio a Jeremy Corbyn, gritando-lhe: “Vá lá, Jeremy, vamos lá fazer esta eleição,
não tenhas medo”.
De facto, segundo
as sondagens e a manterem-se as intenções de voto, Boris Johnson será o
vencedor – 35% de acordo com o YouGov, contra 25% para os trabalhistas. Com a
estratégia de radicalização em prol duma saída sem acordo, com o dito “custe o que custar” e com a estratégia
de alienar o Parlamento que tem travado a saída, o PM vai absorvendo eleitorado
ao Partido do Brexit de Nigel Farage e consolida a sua posição como líder
político dos que querem o Brexit. O preço pode ser a guerra entre Parlamento e
Governo e um Partido Conservador esfrangalhado. Mas, na hipótese de voltar às
urnas, Boris Johnson parte para eleições com mais vantagem do que nunca.
***
Boris Johnson voltou, na noite deste dia 4, à Câmara dos Comuns para
apresentar uma moção a solicitar que os deputados votem a favor da convocação
de eleições legislativas antecipadas. Saiu derrotado. 298 deputados votaram
contra a sua moção, 56 votaram a favor. Boris não obteve a maioria necessária
de 424 deputados (os dois terços dos eleitos da
câmara dos Comuns). O PM disse:
“Só há uma forma de levar este país para a
frente. A câmara votou, repetidamente, para sair da UE, mas também votou para
atrasar essa saída. Hoje, receio, votou para arruinar quaisquer hipóteses de
negociação séria.”.
A chamada lei Benn (do nome do cabeça dos
proponentes Hillary Benn), que agora sobe à Câmara dos Lordes, visa travar um No Deal Brexit a 31
de outubro.
O PM defendia a moção nestes termos:
“O país deve decidir se vou eu ou o líder da
oposição a Bruxelas para resolver isto. Se for eu o Primeiro-Ministro, tentarei
ter um acordo. E acredito que posso consegui-lo. No entender deste Governo,
deve agora haver eleições a 15 de outubro.”.
Essa data é o dia a seguir ao regresso do Parlamento – após a suspensão – e
ao discurso da Rainha Isabel II; e dois antes do Conselho Europeu, previsto
para os dias 17 e 18 de outubro.”.
Respondendo ao desafio do Chefe do Governo conservador, o líder do Labour,
Jeremy Corbyn, reiterou o que já dissera antes: primeiro; assegura-se que a lei
Benn entra em vigor antes da suspensão do Parlamento; só depois, eleições
antecipadas. Isto para evitar que haja eleições agora e, mesmo assim, um No
Deal Brexit a 31 de outubro. E declarou:
“Este Primeiro-Ministro diz que tem uma
estratégia, mas não é capaz de nos dizer, nem a nós nem à UE, qual é ela. Não
há nada. Nada. Se tem um plano para o Brexit, deve pô-lo perante o público, seja
num [segundo] referendo, seja em eleições legislativas. (…) A verdade é que
esta moção deste Primeiro-Ministro serve para jogar um jogo que é indigno desse
cargo. É uma jogada cínica que vem de um Primeiro-Ministro cínico.”.
A moção do PM surgiu depois de os deputados britânicos terem aprovado, na
tarde deste dia 4, em segunda e em terceira leitura, a proposta de lei Benn no
sentido de legislar para travar um No Deal Brexit a 31 de outubro, forçando o
governo, se preciso for, a pedir um novo adiamento do Brexit à UE27. Na segunda
leitura, 329 deputados votaram a favor, 300 votaram contra. Na terceira
leitura, 327 votaram a favor e 299 contra. Esta votação acontece um dia
depois de a Câmara dos Comuns ter arrebatado ao Governo o controlo da agenda
parlamentar, por 328 votos a favor e 301 contra.
Os deputados anti-No Deal Brexit e o PM estão numa luta contrarrelógio
antes da suspensão do Parlamento, que foi solicitada por Boris Johnson e
aprovada pela Rainha Isabel II. Deverá começar entre 9 e 12 de setembro e
terminar a 14 de outubro com o tradicional discurso da monarca perante o Parlamento
de Westminster, a marcar o início de nova legislatura.
Os críticos do Chefe do Governo sofreram hoje um duro revés ao ver o
Tribunal de Edimburgo, na Escócia, decidir que a ação do Governo “não viola a
lei”, porque o poder de suspender a Câmara dos Comuns “é um poder reservado ao
Executivo”. E, no dia 5, será apreciada, em Londres, outra ação legal,
submetida por Gina Miller (que em 2017 recorreu aos tribunais
para forçar o Governo a consultar o Parlamento para ativar o Artigo 50.º do
Tratado de Lisboa).
A aprovação da proposta de lei Benn foi feita em segunda e terceira
leitura, depois de votadas também emendas. A lei para travar um No Deal Brexit
sobe agora à câmara dos Lordes para a próxima fase. Aí, segue-se uma nova luta. Os
Lordes conservadores apresentaram 92 emendas e estabeleceram como prazo para
debatê-las o dia 5. Fontes do Governo, citadas pelo “Politico.eu”, indicaram que os lordes tentarão forçar dois votos
por cada emenda. O processo está longe de terminado. Segundo a BBC, pode ir até
domingo, dia 8, véspera da suspensão do Parlamento.
Assim, tendo Boris dito, no dia 2, no Parlamento que vai cumprir a lei Benn
se ela for aprovada, se a sua moção fosse chumbada esta noite e se a oposição
também não apresentasse uma moção de censura para fazer cair o Governo, o PM ficaria
com três opções:
- Conseguir de facto uma alternativa
ao backstop, aceitável para britânicos, irlandeses e UE27, tendo um novo
acordo sobre o Brexit para submeter a votação no Parlamento quando este
regressar da suspensão a 14 de outubro; pedir nova extensão do Artigo 50.º do Tratado de Lisboa à UE27, até 31 de
janeiro de 2020, no Conselho Europeu de 17 e 18 de outubro, organizando depois
eleições antecipadas, como defende o Labour; ou demitir-se do cargo de Primeiro-Ministro, dando lugar a outro líder
conservador ou a um governo de unidade nacional, para não sofrer a humilhação
de pedir um adiamento do Brexit à U27.
A primeira opção está sujeita ao teor duma emenda apresentada por Stephen
Kinnock – e aprovada neste dia 4, à noite, no meio do caos – se o PM tiver que
pedir uma extensão do Artigo 50.º, pode fazê-lo para que uma nova versão do
acordo negociado entre Theresa May e a UE27 seja votado. Porém o acordo já foi
rejeitado três vezes por causa do backstop. Quanto à 2.ª opção, Boris disse que
nunca o fará, muito menos obrigado pelo Parlamento. Na UE27 alguns países
poderão não estar disponíveis para viabilizar mais um adiamento – o terceiro –
do Brexit. E, no atinente à terceira opção, é de assentar em que essa poderia
passar por uma extensão do Artigo 50.º, com o objetivo de se realizarem novas
eleições ou de se realizar um segundo referendo sobre o Brexit. No limite, o
Reino Unido pode sempre desativar o Artigo 50.º, cancelando o Brexit. Mas isso
iria contra o resultado do referendo de 2016 e seria, tal como a suspensão do
Parlamento, classificado como medida antidemocrática.
É claro que, se a lei Benn não conseguir passar por todos os procedimentos
necessários antes de o Parlamento ser suspenso, ficará sem efeito. E tudo
voltará à estaca zero. Inclusivamente, regressará, como hipótese, o cenário de
No Deal Brexit a 31 de outubro.
***
Enfim, o Reino Unido – tão esfrangalhado politicamente e famoso pela tradicional
democracia parlamentar, em que o poder reside por excelência no Parlamento – dá
ao mundo o espetáculo da guerra entre executivo e eleitos. Quando a postura e as
decisões do Parlamento não agradam ao executivo, este, com o aval da Rainha (que acaba por fazer o que o Governo quer), suspende ou dissolve o Parlamento: a força
de quem deve obedecer e a fraqueza de quem manda. E os tribunais tanto
confirmam o poder do Parlamento como as prerrogativas do Governo. Mas a democracia
britânica também e deficitária.
2019.09.04 –
Louro de Carvalho
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