quarta-feira, 25 de setembro de 2019

O Presidente da República não é referido no processo de Tancos


A poucos dias das eleições legislativas e quando o Presidente da República participa na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, foi finalizado hoje, dia 25 de setembro, o despacho da acusação do caso de Tancos, que deverá seguir por correio para os arguidos, como adianta o Correio da Manhã, sendo que alegadamente o prazo para deduzir a acusação terminava no próximo dia 27 (curiosa coincidência: as eleições e a Assembleia-Geral do ONU estão agendadas de há muito). E, ao invés do que a TVI veiculara, Marcelo não é referido no processo, como refere o Diário de Notícias.
Segundo a estação de Queluz de Baixo, os procuradores terão em sua posse uma escuta telefónica na qual o major Vasco Brazão, da PJM (Polícia Judiciária Militar), alegadamente envolvido no esquema, refere que o “papagaio-mor do Reino” sabia de tudo. De acordo com a TVI, a investigação acredita que Vasco Brazão se referia ao Presidente da República. Porém, a defesa de Vasco Brazão veio a terreiro dizer que a expressão “papagaio-mor do Reino” não dizia respeito ao Presidente da Republica. E o DN sabe que a expressão “papagaio-mor do Reino” não consta no processo.
O ex-chefe da Casa Militar foi investigado pelo MP (Ministério Público) mas, segundo o DN, não foram reunidas provas de que João Cordeiro saberia dos pormenores que tornaram o caso num crime da PJM. E, quanto ao Presidente, sabe-se que numa visita aos paióis ouviu as queixas do diretor da PJM sobre a investigação lhe ter sido retirada, tendo-se resumido a isso o seu papel. 
O que fez chegar a Belém o caso de Tancos foi uma escuta ao major Vasco Brazão, em abril de 2019, escuta que envolveu João Cordeiro. Porém, em todo o processo não há qualquer referência ao Presidente nem a qualquer conhecimento sobre a encenação que levou à apreensão do material furtado de Tancos, caso que constitui crime. A única informação que chegou claramente a Marcelo foi a da indignação que a PJM estava a sentir por ter sido afastada da investigação do assalto a Tancos. Foi o próprio Coronel Luís Vieira, diretor da PJM, que lho transmitiu numa reunião que tiveram em Tancos depois do furto.
Como consta no processo, nessa reunião participaram Marcelo, Azeredo Lopes, o então chefe de gabinete Martins Pereira, o Secretário de Estado da Defesa Nacional Marcos Perestrello e o CEMGFA Pina Monteiro. Ante os presentes, o coronel Luís Vieira terá desabafado a sua revolta sobre a titularidade do inquérito. Pelos vistos, para explicar porque é que a PJ não era de confiança, Luís Vieira terá revelado que a PJ teria tido conhecimento da denúncia dum assalto a um alvo não determinado e que não teria avisado a PJM – o que, já então, era falso, pois a informação fora passada a Pinto da Costa, elemento da PJM também arguido no processo. E, para tentar saber o impacto que a sua conversa teria tido em Marcelo, Vieira terá feito diversas chamadas para o chefe da Casa Militar, que o processo regista.
Na tarde do dia 24, marcando presença numa conferência em Nova Iorque, ao saber destas notícias, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a negar ter tido algum tipo de conhecimento privilegiado em torno da operação. Disse, citado pela TSF:
Nem através do Governo, nem através de ninguém no Parlamento, nem através das chefias militares, nem através de quaisquer entidades de investigação criminal, civil ou militar, nem através de elementos da minha equipa, da Casa Civil ou da Casa Militar, nem através de terceiros, não tive”.
O Presidente da República não só nega ter tido conhecimento privilegiado da investigação paralela que levou à encenação da recuperação das armas de Tancos pela PJM como quer que não haja o mínimo de dúvidas acerca do seu envolvimento no Caso Tancos. Declarou-o, naquele dia, depois de uma alegada escuta divulgada pela TVI parecer implicar o Presidente.
O Chefe de Estado foi ainda mais longe:
Para que não restem dúvidas, por uma questão, não só de honra pessoal, mas porque estou aqui [nos Estados Unidos] a defender a posição de Portugal, é bom que não esteja a defender a posição de Portugal na Assembleia-geral das Nações Unidas ao mesmo tempo que surge uma vaga dúvida sobre se o Presidente é criminoso. É bom que fique claro que o Presidente não é criminoso..
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O ex-Ministro da Defesa Nacional José Alberto Azeredo Lopes é um dos 25 acusados no processo de Tancos e vai responder perante a Justiça. Segundo o Correio da Manhã, o despacho da acusação do processo, que foi finalizado hoje, dia 25 de setembro, deverá seguir por correio para os arguidos ainda esta semana.
No início da semana, a Renascença já avançara que o MP está convencido de que Azeredo teve um papel central na recuperação do armamento roubado dos Paióis Nacionais e criticou o ex-governante pelo “exercício perverso” de funções públicas, dificultando o apuramento da verdade. O antigo Ministro da Defesa Nacional é acusado de participação ativa na encenação da PJM para recuperar as granadas, explosivos e munições furtadas. Azeredo terá então usado a encenação da PJM para benefício político próprio e do Governo em geral, num momento em que o Executivo estava debaixo de críticas devido aos trágicos incêndios de outubro de 2017.
De acordo com a tese dos procuradores, a participação na encenação terá sido feita também através de declarações aos órgãos de comunicação social, para convencer a opinião pública das capacidades da PJM.
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O caso de Tancos divide-se em dois: o furto, propriamente dito, que já era grave; e a encenação da descoberta das armas pela PJM em conluio com a GNR e com a conivência dos assaltantes, que a PJ e o MP, pelos vistos, consideram mais grave que o furto, quando o mais importante, a meu ver, era a punição do furto e a recuperação do material furtado. 
Numa primeira fase, a PJM estava a investigar o caso, mas, a partir do momento em que o processo foi considerado de especial gravidade – com ligações possíveis a terrorismo (tese que veio a ser desmentida e abandonada) – foi passado pela Procuradora Geral da República, na altura Joana Marques Vidal, para a tutela da PJ. Foi com isto que os militares nunca se conformaram e dizem alguns que terá sido essa frustração que esteve na base da “encenação” da descoberta do material, em conluio com os assaltantes e à revelia da PJ e do MP. Para entender todo este processo tem de se passar por este pormenor que é, alegadamente, psicológico e que foi algo complexo de investigar. Recorde-se que o nome que a PJ deu a esta investigação foi “Hýbris”, a que atribuem o significado de “perigosa autoconfiança”.
Além de ser duvidoso saber onde está a dita autoconfiança, deve considerar-se excessivo o designativo da operação. No grego, o nome hýbris significa: excesso, orgulho, insolência, impetuosidade, fogosidade, desenfreio, desespero, ultraje, insulto, violência, violação (de mulher ou criança). O nome “hybristês” significa: violento, impetuoso, insultante, malfeitor. O nome “hybrisma” significa: ultraje, violência. O verbo “hybrízô” significa: (intransitivo) – abandonar-se a excessos, ser presunçoso ou insolente, se sensual ou desenfreados; (transitivo) – tratar com insolência, maltratar, ultrajar, desonrar; (na voz passiva grega) – ser desonrado, ser maltratado, cobrir-se de infâmia; (na voz média grega) – ser orgulhoso, ser fastuoso. Os adjetivos “hybristikós” e “hybristós” significam: arrogante, lascivo, desenfreado, criminoso, burlão, satírico.  E o advérbio “hybristikôs” significa insolentemente. Ora, se não é excessivo atribuir o designativo Hýbris” à investigação do caso de Tancos, em razão do crime e desafio às autoridades, então esse designativo bem poderia ser dado a qualquer processo investigatório mediático. Recorde-se que o elemento “Hýbris” na tragédia grega era o desafio do protagonista aos deuses, ao destino ou às autoridades.
Ora, na vontade férrea de tentar reverter a situação, o coronel Luís Vieira e o major Vasco Brazão tentaram pressionar quem fazia parte da sua rede de conhecimentos, entre os quais o chefe da Casa Militar do Presidente da República. Foi isso que levou Brazão a dizer ao telefone, numa chamada que ficou escutada: 
Nós temos provas concretas em que a Casa Militar foi informada. A Casa do Presidente, temos provas concretas, há e-mails (...) Portanto, não há que fugir a isso. (...) Agora não sei se ele quer falar já ou se só em julgamento. Portanto, vamos ver.”.
Quando leu a transcrição desta escuta o major Brazão confirmou que Luís Vieira lhe tinha reencaminhado um e-mail que enviara a Cordeiro. Mas, nos e-mails que constam no processo, de 2017, Luís Vieira falava apenas da questão da titularidade da investigação. Num texto relativamente longo, o coronel vinca a oposição à decisão da PGR e, em outro, pedia que o chefe da Casa Militar voltasse a intervir no sentido de Marcelo sensibilizar a PGR a devolver a investigação à PJM. Não se conhecem as respostas de Cordeiro, mas estas são as únicas informações concretas sobre o conteúdo da troca de mensagens entre Vieira e ele. E, para o MP, não reúnem provas suficientes para saber se o ex-chefe da Casa Militar teria mais informações, nomeadamente do que constitui o crime da encenação de roubo.
No entanto, foram registadas diversas chamadas e mensagens entre Vieira e Cordeiro, uma delas no dia do ‘achamento’, antes do comunicado oficial. Em nenhuma o conteúdo é concretizado. O major Brazão também fez referência no seu depoimento a telefonemas do chefe da casa militar e do CEMGFA para o diretor da PJM para falar sobre Tancos.
Brazão terá dito que o ex-chefe da Casa Militar sabia que a PJM trabalhava com um informador e que, desde o assalto, Vieira falava regularmente com Cordeiro sobre o que faziam para recuperar o material. Mas a investigação não conseguiu provar nenhuma destas informações.
Quando João Cordeiro prestou depoimento fê-lo por escrito e negou que tivesse conhecimento do que se estava a passar; e negou que tivesse recebido e-mails da PJM – algo em que estava a faltar à verdade, segundo as provas reunidas no processo. Confirmou que, no 2.º semestre de 2017, Vieira lhe foi telefonando a dar conta da investigação e de algumas suspeitas que tinha em relação a suspeitos do Algarve e da possível localização do armamento, mas negou que alguma vez lhe tivesse sido dito que estava em curso um acordo com os assaltantes para devolverem o armamento. Ou seja, trata-se de um pormenor que faz toda a diferença num caso rocambolesco que envolveu várias esferas da sociedade e da política e que chegou a Belém, através do chefe da Casa Militar, que esteve na mira do DCIAP, mas não atingiu o Presidente da República.
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A ser verdade que o Presidente da República não sabia de nada, é na notícia de TVI que reside a “Hýbris” da tragédia grega! E com alguma razão, pois, se se diz que o chefe da Casa Militar faltou à verdade, é porque sabia do caso; e, sabendo, é muito estranho que não tenha falado sobre isso com o Presidente ou então a comunicação em Belém segue a lógica da batata.
O certo é que, a haver suspeitas do conhecimento do Presidente da República, a investigação tinha de correr sob autorização do STJ (Supremo Tribunal de Justiça) e pelo MP que trabalha junto dessa instituição. E, como é óbvio, muito dificilmente se chegaria a conclusões úteis, a menos que o processo fosse desmembrado e os arguidos respondessem em processo autónomos.
Que o Presidente não é criminoso todos o sabemos, mas manda a prudência dizer que os ora acusados também só podem ser considerados criminosos depois de decisão judicial condenatória transitada em julgado. E veremos se e quando isso acontecerá.
É óbvio que os partidos políticos não querem – e fazem muito bem – afrontar o Presidente, pois não aceitam que um despacho de acusação do MP, ora proferido, possa interferir na campanha eleitoral. Por outro lado, em termos simbólicos uma acusação a Marcelo significaria a decapitação das forças armadas e do próprio Estado.
Por fim, se realmente o Presidente da República soube da encenação, que poderia ter realmente feito, a não ser exigir que tudo fosse investigado até às últimas consequências, custe o que custar, dia a quem doer? E isso fê-lo. Penso não competir ao Presidente o pedido à PGR de instauração de um processo-crime. Não faz parte das suas competências constitucionais…
2019.09.25 – Louro de Carvalho

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