A poucos
dias das eleições legislativas e quando o Presidente da República participa na
Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, foi finalizado hoje, dia 25 de
setembro, o despacho da acusação do caso de Tancos, que deverá seguir por
correio para os arguidos, como adianta o Correio da Manhã, sendo que alegadamente o prazo para deduzir a
acusação terminava no próximo dia 27 (curiosa coincidência: as eleições e
a Assembleia-Geral do ONU estão agendadas de há muito). E, ao invés do que a TVI veiculara, Marcelo não é referido no processo, como refere o Diário de Notícias.
Segundo a
estação de Queluz de Baixo, os procuradores terão em sua
posse uma escuta telefónica na qual o major Vasco Brazão, da PJM (Polícia Judiciária
Militar), alegadamente envolvido no
esquema, refere que o “papagaio-mor do Reino” sabia de tudo. De
acordo com a TVI, a investigação acredita que
Vasco Brazão se referia ao Presidente da República. Porém, a defesa de Vasco Brazão veio a terreiro dizer que a expressão “papagaio-mor
do Reino” não dizia respeito ao Presidente da Republica. E o DN sabe que a expressão “papagaio-mor do
Reino” não consta no processo.
O ex-chefe
da Casa Militar foi investigado pelo MP (Ministério Público) mas, segundo o DN,
não foram reunidas provas de que João Cordeiro saberia dos pormenores que
tornaram o caso num crime da PJM. E, quanto ao Presidente, sabe-se que numa
visita aos paióis ouviu as queixas do diretor da PJM sobre a investigação lhe
ter sido retirada, tendo-se resumido a isso o seu papel.
O que fez
chegar a Belém o caso de Tancos foi uma escuta ao major Vasco Brazão, em abril
de 2019, escuta que envolveu João Cordeiro. Porém, em todo o processo não há
qualquer referência ao Presidente nem a qualquer conhecimento sobre a encenação
que levou à apreensão do material furtado de Tancos, caso que constitui
crime. A única informação que chegou claramente a Marcelo foi a da indignação
que a PJM estava a sentir por ter sido afastada da investigação do assalto a
Tancos. Foi o próprio Coronel Luís Vieira, diretor da PJM, que lho transmitiu numa
reunião que tiveram em Tancos depois do furto.
Como consta
no processo, nessa reunião participaram Marcelo, Azeredo Lopes, o então chefe
de gabinete Martins Pereira, o Secretário de Estado da Defesa Nacional Marcos
Perestrello e o CEMGFA Pina Monteiro. Ante os presentes, o coronel Luís Vieira terá desabafado a sua revolta
sobre a titularidade do inquérito. Pelos vistos, para explicar porque é
que a PJ não era de confiança, Luís Vieira terá revelado que a PJ teria tido
conhecimento da denúncia dum assalto a um alvo não determinado e que não teria
avisado a PJM – o que, já então, era falso, pois a informação fora passada a Pinto
da Costa, elemento da PJM também arguido no processo. E, para tentar saber o impacto
que a sua conversa teria tido em Marcelo, Vieira terá feito diversas chamadas
para o chefe da Casa Militar, que o processo regista.
Na tarde do dia 24, marcando presença numa conferência em Nova Iorque, ao
saber destas notícias, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a negar ter tido
algum tipo de conhecimento privilegiado em torno da operação. Disse, citado pela TSF:
“Nem através do Governo, nem através de
ninguém no Parlamento, nem através das chefias militares, nem através de
quaisquer entidades de investigação criminal, civil ou militar, nem através de
elementos da minha equipa, da Casa Civil ou da Casa Militar, nem através de
terceiros, não tive”.
O Presidente da República não só nega ter tido
conhecimento privilegiado da investigação paralela que levou à encenação da
recuperação das armas de Tancos pela PJM como quer que não haja o mínimo de dúvidas acerca do seu envolvimento
no Caso Tancos. Declarou-o, naquele dia, depois de uma alegada
escuta divulgada pela TVI parecer
implicar o Presidente.
O Chefe de Estado foi ainda mais longe:
“Para que não restem dúvidas, por uma
questão, não só de honra pessoal, mas porque estou aqui [nos Estados Unidos] a
defender a posição de Portugal, é bom que não esteja a defender
a posição de Portugal na Assembleia-geral das Nações Unidas ao mesmo tempo que
surge uma vaga dúvida sobre se o Presidente é criminoso. É bom que fique claro que o Presidente não é criminoso.”.
***
O ex-Ministro da Defesa Nacional José Alberto Azeredo Lopes é um
dos 25 acusados no processo de Tancos e vai responder perante a Justiça.
Segundo o Correio da Manhã, o
despacho da acusação do processo, que foi finalizado hoje, dia 25 de setembro, deverá
seguir por correio para os arguidos ainda esta semana.
No início da semana, a Renascença já
avançara que o MP está convencido de que Azeredo teve um papel
central na recuperação do armamento roubado dos Paióis Nacionais e criticou
o ex-governante pelo “exercício perverso” de funções públicas, dificultando o
apuramento da verdade. O antigo Ministro da Defesa Nacional é acusado de participação ativa na encenação da PJM para
recuperar as granadas, explosivos e munições furtadas. Azeredo terá então usado
a encenação da PJM para benefício político próprio e do Governo em geral, num
momento em que o Executivo estava debaixo de críticas devido aos trágicos
incêndios de outubro de 2017.
De acordo com a tese dos procuradores, a participação na encenação terá
sido feita também através de declarações aos órgãos de comunicação social, para
convencer a opinião pública das capacidades da PJM.
***
O caso de Tancos divide-se em dois: o furto, propriamente dito, que já
era grave; e a encenação da descoberta das armas pela PJM em conluio com a GNR
e com a conivência dos assaltantes, que a PJ e o MP, pelos vistos, consideram
mais grave que o furto, quando o mais importante, a meu ver, era a punição do
furto e a recuperação do material furtado.
Numa primeira
fase, a PJM estava a investigar o caso, mas, a partir do momento em que o
processo foi considerado de especial gravidade – com ligações possíveis a
terrorismo (tese que veio a ser desmentida e abandonada) – foi passado pela Procuradora Geral da República, na altura Joana
Marques Vidal, para a tutela da PJ. Foi com isto que os militares nunca se
conformaram e dizem alguns que terá sido essa frustração que esteve na base da “encenação”
da descoberta do material, em conluio com os assaltantes e à revelia da PJ e do
MP. Para entender todo este
processo tem de se passar por este pormenor que é, alegadamente, psicológico e que
foi algo complexo de investigar. Recorde-se que o nome que a PJ deu a esta
investigação foi “Hýbris”, a que
atribuem o significado de “perigosa autoconfiança”.
Além de ser duvidoso
saber onde está a dita autoconfiança, deve considerar-se excessivo o
designativo da operação. No grego, o nome “hýbris” significa:
excesso, orgulho, insolência, impetuosidade, fogosidade, desenfreio, desespero,
ultraje, insulto, violência, violação (de mulher ou criança). O nome “hybristês”
significa: violento, impetuoso, insultante, malfeitor. O nome “hybrisma” significa: ultraje, violência.
O verbo “hybrízô” significa: (intransitivo) – abandonar-se
a excessos, ser presunçoso ou insolente, se sensual ou desenfreados; (transitivo) – tratar com
insolência, maltratar, ultrajar, desonrar; (na voz
passiva grega) – ser desonrado,
ser maltratado, cobrir-se de infâmia; (na voz média
grega) – ser orgulhoso, ser fastuoso. Os adjetivos
“hybristikós” e “hybristós” significam: arrogante, lascivo, desenfreado, criminoso,
burlão, satírico. E o advérbio “hybristikôs” significa insolentemente. Ora,
se não é excessivo atribuir o designativo “Hýbris” à investigação do caso
de Tancos, em razão do crime e desafio às autoridades, então esse designativo
bem poderia ser dado a qualquer processo investigatório mediático. Recorde-se
que o elemento “Hýbris” na tragédia
grega era o desafio do protagonista aos deuses, ao destino ou às autoridades.
Ora, na
vontade férrea de tentar reverter a situação, o coronel Luís Vieira e o major
Vasco Brazão tentaram pressionar quem fazia parte da sua rede de conhecimentos,
entre os quais o chefe da Casa Militar do Presidente da República. Foi isso que
levou Brazão a dizer ao telefone, numa chamada que ficou escutada:
“Nós
temos provas concretas em que a Casa Militar foi informada. A Casa do
Presidente, temos provas concretas, há e-mails (...) Portanto, não há que fugir
a isso. (...) Agora não sei se ele quer falar já ou se só em julgamento.
Portanto, vamos ver.”.
Quando leu a
transcrição desta escuta o major Brazão confirmou que Luís Vieira lhe
tinha reencaminhado um e-mail que enviara a Cordeiro. Mas, nos e-mails que constam no processo, de
2017, Luís Vieira falava apenas da questão da titularidade da investigação.
Num texto relativamente longo, o coronel vinca a oposição à decisão da PGR e,
em outro, pedia que o chefe da Casa Militar voltasse a intervir no sentido de
Marcelo sensibilizar a PGR a devolver a investigação à PJM. Não se conhecem as
respostas de Cordeiro, mas estas são as únicas informações concretas sobre o
conteúdo da troca de mensagens entre Vieira e ele. E, para o MP, não reúnem provas suficientes para saber se o ex-chefe da
Casa Militar teria mais informações, nomeadamente do que constitui o crime da
encenação de roubo.
No entanto, foram registadas diversas chamadas e mensagens entre Vieira e
Cordeiro, uma delas no dia do ‘achamento’, antes do comunicado oficial. Em nenhuma o conteúdo é concretizado. O major Brazão
também fez referência no seu depoimento a telefonemas do chefe da casa militar
e do CEMGFA para o diretor da PJM para falar sobre Tancos.
Brazão terá dito que o ex-chefe da Casa Militar sabia que a PJM
trabalhava com um informador e que, desde o assalto, Vieira falava regularmente
com Cordeiro sobre o que faziam para recuperar o material. Mas a investigação não conseguiu provar nenhuma destas
informações.
Quando João
Cordeiro prestou depoimento fê-lo por escrito e negou que tivesse conhecimento
do que se estava a passar; e negou que
tivesse recebido e-mails da PJM – algo em que estava a faltar à verdade,
segundo as provas reunidas no processo. Confirmou que, no 2.º
semestre de 2017, Vieira lhe foi telefonando a dar conta da investigação e de
algumas suspeitas que tinha em relação a suspeitos do Algarve e da possível
localização do armamento, mas negou que alguma vez lhe tivesse sido dito que estava
em curso um acordo com os assaltantes para devolverem o armamento. Ou seja,
trata-se de um pormenor que faz toda a diferença num caso rocambolesco que envolveu
várias esferas da sociedade e da política e que chegou a Belém, através do
chefe da Casa Militar, que esteve na mira do DCIAP, mas não atingiu o
Presidente da República.
***
A ser
verdade que o
Presidente da República não sabia de nada, é na notícia de TVI que reside a “Hýbris” da tragédia grega! E com alguma razão, pois, se se
diz que o chefe da Casa Militar faltou à verdade, é porque sabia do caso; e,
sabendo, é muito estranho que não tenha falado sobre isso com o Presidente ou
então a comunicação em Belém segue a lógica da batata.
O certo
é que, a haver suspeitas do conhecimento do Presidente da República, a investigação
tinha de correr sob autorização do STJ (Supremo Tribunal de Justiça) e pelo MP que trabalha junto
dessa instituição. E, como é óbvio, muito dificilmente se chegaria a conclusões
úteis, a menos que o processo fosse desmembrado e os arguidos respondessem em
processo autónomos.
Que o
Presidente não é criminoso todos o sabemos, mas manda a prudência dizer que os
ora acusados também só podem ser considerados criminosos depois de decisão
judicial condenatória transitada em julgado. E veremos se e quando isso
acontecerá.
É óbvio que
os partidos políticos não querem – e fazem muito bem – afrontar o Presidente,
pois não aceitam que um despacho de acusação do MP, ora proferido, possa
interferir na campanha eleitoral. Por outro lado, em termos simbólicos uma
acusação a Marcelo significaria a decapitação das forças armadas e do próprio Estado.
Por fim,
se realmente o Presidente da República soube da encenação, que poderia ter
realmente feito, a não ser exigir que tudo fosse investigado até às últimas
consequências, custe o que custar, dia a quem doer? E isso fê-lo. Penso não competir
ao Presidente o pedido à PGR de instauração de um processo-crime. Não faz parte
das suas competências constitucionais…
2019.09.25 –
Louro de Carvalho
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