A liturgia do 23.º domingo do Tempo Comum no Ano insta à
consciência de quanto é exigente o caminho do “Reino”. Optar por ele não é
escolher um caminho de facilidade, mas dispor-se percorrer um caminho de
renúncia e de dádiva da vida.
Na 1.ª leitura (Sb
9,13-19) foi extraída do Livro
da Sabedoria, um livro sapiencial (que pretende transmitir
a “sabedoria”, enquanto arte de bem viver),
o autor apresenta-se como um rei apaixonado pela sabedoria e que construiu um
templo na “montanha santa” e um altar na “cidade da habitação de Deus” (Sb
9,6-8). O autor quer
assumir a sabedoria e a munificência de Salomão. Porém, Salomão é da primeira
metade do século X a.C. e o livro foi escrito em grego na primeira metade do
século I a.C. por um judeu piedoso pertencente à comunidade judaica de
Alexandria. O autor dirige-se aos seus compatriotas, mergulhados no paganismo,
na idolatria e na imoralidade e mostra-lhes as vantagens de perseverar na fé e
de viver na justiça; e dirige-se aos pagãos e apresenta-lhes a superioridade da
fé e valores israelitas. Exprime-se em termos e conceções do mundo helénico,
esforçando-se por expor a sua fé e convicções numa linguagem atualizada, erudita,
bem ao gosto da cultura grega epocal.
O texto
desta dominga é o final da segunda parte do livro, em que o autor põe na boca dum
rei (Salomão,
embora o nome não seja explicitado)
o elogio da sabedoria.
A tese é: só a sabedoria, que é dom de Deus, permite ao homem
compreender tudo, fazer o que agrada a Deus e ser salvo. Partindo da
consciência da finitude, limitações e dificuldades típicas dos seres humanos,
conclui-se que, por nós, não conseguimos compreender o alcance das coisas
divinas, não conseguimos descobrir o verdadeiro sentido da nossa vida, não nos
apercebemos dos valores que nos levam pelo caminho da vida. Por isso, o homem
tem de acolher a sabedoria, dom de Deus para todos aqueles que estão
interessados em dar um verdadeiro sentido à sua vida. Só a ação de Deus que derrama
sobre nós a sabedoria permite encontrar o sentido da vida e discernir entre a
verdade e a falsidade, o essencial e o acessório, o importante e o inútil.
Para exame e levantamento interior da nossa vida cristã,
precisamos do Espírito de Deus. Isso sentiu-o Salomão, quando se decidiu pela
construção do Templo de Jerusalém:
“Quem conheceu, Senhor, os teus desígnios
sem que lhe tivesses dado a Sabedoria, sem que, do alto, lhe tivesses enviado o
teu Santo Espírito? Assim se endireitaram os caminhos dos habitantes da terra,
e os homens foram instruídos no que é do teu agrado e se salvaram pela
Sabedoria.” (Sb 9,17-18).
Com a luz do Espírito Santo veremos os nossos caminhos, com a
Sua graça, fá-los-emos coincidir com o caminho dos discípulos de Cristo, que é
o próprio Cristo. E, ao fazê-lo, entenderemos melhor a exigência do Evangelho,
que parece de extrema dureza. É que a opção por Jesus Cristo de tal modo enche
e realiza uma vida, que outro valor qualquer nos parecerá supérfluo ou
impeditivo. Mas Cristo não diz que o amor dos pais, da esposa, dos filhos, dos
irmãos ou da própria vida não seja bem estimável, mas faz-nos saber que ser Seu
discípulo é um bem maior ao qual os outros devem ser subordinados e
sacrificados, se e quando necessário.
***
É, sobretudo, o Evangelho (Lc
14,25-33) que traça as coordenadas do “caminho do discípulo”: um caminho em que
o “Reino” deve ter a primazia sobre as pessoas que amamos, os nossos bens, os próprios
interesses e projetos pessoais. Quem tomar contacto com a proposta de Jesus tem
de pensar seriamente se a quer acolher, se tem forças para a acolher, pois
Jesus não admite meios-termos: ou se aceita o Reino e se embarca nessa aventura
a tempo inteiro e “a fundo perdido”, ou não vale a pena começar porque não é um
caminho que se percorra com hesitações, tibiezas e oscilações.
A perícopa evangélica desta dominga situa-nos ainda no caminho
para Jerusalém. Jesus dirige-se às multidões, ou seja, a todos os seus discípulos
presentes e futuros.
Se a parábola anterior sugerira a abertura do banquete do Reino
a todos os que aceitassem o convite de Jesus, inclusive os pobres, estropiados,
cegos e coxo, agora, Lucas apresenta algumas exigências feitas a todos aqueles
que entram no banquete do Reino. A instrução reúne diversos ensinamentos de
Jesus sobre a condição de discípulo.
As exigências fundamentais para quem quer seguir o caminho do
discípulo e sentar-se à mesa do Reino são três e todas subordinadas ao tema da
renúncia.
Em primeiro lugar, vem a preferência por Jesus sobre a
própria família. Lucas põe na boca de Jesus um fraseado muito forte.
Literalmente, o verbo “miséô” quer
dizer “odiar”. Ora, para ser discípulo, não é preciso odiar alguém. Segundo o modo
oriental de falar, “odiar” significa “pôr em segundo lugar algo porque apareceu
na vida da pessoa um valor que ainda é mais importante”. É evidente que Jesus
não pede o ódio a ninguém, muito menos a esses a quem nos ligam laços de amor.
Contudo, exige que as relações familiares não nos impeçam de aderir ao Reino.
Se for necessário escolher, a prioridade deve ser o Reino.
A segunda exigência comporta a renúncia à própria vida. O
discípulo não pode viver a fazer opções egoístas, colocando em primeiro lugar
os seus interesses, o que é melhor para si, mas tem de colocar a vida ao
serviço do Reino e fazer da vida um dom de amor aos irmãos, se necessário até à
morte. Foi esse o caminho de Jesus; e o discípulo deve imitar o mestre.
A terceira exigência postula a renúncia aos bens. Jesus sabe que os bens podem transformar-se em deuses, tornando-se uma prioridade, escravizando o homem e levando-o a viver em função deles e, assim, fica nulo o espaço para o Reino. Além disso, dar prioridade aos bens significa viver de forma egoísta, esquecendo as necessidades dos irmãos; ora, viver na dinâmica do Reino implica viver na dádiva e deixar que a vida seja dirigida pela lógica de amor e de partilha.
A terceira exigência postula a renúncia aos bens. Jesus sabe que os bens podem transformar-se em deuses, tornando-se uma prioridade, escravizando o homem e levando-o a viver em função deles e, assim, fica nulo o espaço para o Reino. Além disso, dar prioridade aos bens significa viver de forma egoísta, esquecendo as necessidades dos irmãos; ora, viver na dinâmica do Reino implica viver na dádiva e deixar que a vida seja dirigida pela lógica de amor e de partilha.
Com estas exigências, torna-se claro que a opção pelo Reino não
abre uma rota de facilidade e, por isso, talvez não seja caminho que todos
aceitem. Por isso, Jesus recomenda a ponderação das implicações e as consequências
da opção. É uma atitude sábia e de prudência. A parábola do homem que, antes de
construir uma torre, pensa se tem com que terminá-la e a parábola do rei que,
antes de partir para a guerra, pensa se pode opor-se a outro rei com forças
superiores convidam os aspirantes ao discipulado a tomarem consciência da sua
força, vontade e capacidade de decisão em corresponder aos desafios do
Evangelho e em assumir, com radicalidade, as exigências do Reino.
Dito de outro modo, devemos saber que
bagagem é necessária no percurso indicado por Jesus. Na
base tem de estar a opção por Cristo como nosso modelo, pondo em segundo lugar
tudo o mais. Enquanto as nossas relações com Ele forem apenas de amizade e não de
amor, não serão suficientes para nos mantermos fiéis ao Batismo nem para dar a
própria vida. Depois, é preciso aceitar o
Evangelho como critério de vida: façamos o que fizermos, estejamos onde
estivermos, mesmo adotando o ideário dum partido político. Ora, muitos nem a
letra do Evangelho conhecem, quanto mais o seu espírito e as implicações
práticas que ele supõe. Ao mesmo tempo, temos de saber iluminar com o Evangelho os problemas que vão
surgindo. Para isso, é preciso conhecer a doutrina da Igreja e especialmente os
documentos sociais, onde nos aparecem critérios de atuação cristã na vida da
sociedade a que pertencemos. Por fim e sobretudo, é necessária a capacidade de sacrifício e de cruz. “Quem não carrega com a própria cruz para Me
seguir, não pode ser Meu discípulo” (Lc 14,27) – cruz que, em muitos casos, pode
ser a perseguição, a prisão, as torturas, o exílio e a morte; cruz como a de
Paulo que, após ter sofrido toda a espécie de perseguições e de torturas,
aparece hoje como “prisioneiro por amor de Cristo Jesus” mas a interceder por
um escravo (2.ª leitura: Flm 9b-10.12-17) e mais tarde será martirizado
por se manter fiel a Cristo e à causa do Evangelho.
***
A partir dos dados da Carta a Filémon, um membro destacado da
Igreja de Colossos, a mais breve e pessoal das cartas paulinas, podem
reconstruir-se as circunstâncias do texto. Onésimo, escravo de Filémon, fugiu
de casa do seu senhor. E, encontrando Paulo, ligou-se a ele e tornou-se
cristão. Paulo, que estava na prisão, fê-lo seu colaborador e manteve-o junto
de si. Ora, a situação era delicada se Filémon agisse judicialmente contra
Paulo, pois, do ângulo da legalidade, ao dar guarida a um escravo fugitivo,
Paulo era cúmplice de uma infracção grave ao direito privado e Onésimo poderia
ser preso, devolvido ao seu senhor e severamente castigado.
Por isso, Paulo resolve enviar Onésimo a Filémon e manda por Onésimo
uma cartinha em que explica a situação e intercede pelo escravo fugitivo. Com
inteira delicadeza, Paulo insinua a Filémon que, sendo possível, lhe devolva
Onésimo, já que este lhe vem sendo de grande utilidade; no entanto, sugere, sem
impor, deixando a decisão nas mãos de Filémon.
A carta é um verdadeiro exemplar de afeto e tacto humano.
O que está em causa é muito mais do que um problema privado,
embora com alcance social; é, um problema eclesial com implicações sociais, que
deve ser resolvido a partir do valor supremo da ética cristã que é o amor.
Para Paulo, o amor deve ser a suprema e irrenunciável norma
que dirige e condiciona as palavras, os comportamentos, as decisões dos
crentes. Ora, o amor tem consequências práticas, que os membros da comunidade
cristã não podem olvidar: implica ver em cada homem um irmão independentemente
da raça, cor ou estatuto social. Nesta ótica, é plausível que Paulo solicite a
Filémon que receba Onésimo não como o que era antes, um escravo, mas como é
agora – um irmão em Cristo. Se Filémon é, de facto, cristão, é essa a atitude
que deve assumir para com Onésimo. Assim, a carta é lição de sabedoria e de
coerência de vida com a doutrina.
O problema da escravatura pôs-se muito cedo à comunidade
eclesial. Porém, os cristãos perceberam que a solução não estava na violência
ou na revolta, mas em levar até às últimas consequências a fraternidade que
resulta do facto de todos sermos filhos de Deus e irmãos em Cristo. A violência
serviria para substituir uns escravos por outros, sem alterar a situação; só o
amor poderia mudar o coração dos homens, de forma a acabar com a exploração do
homem pelo outro homem. O amor (necessário para integrar a comunidade eclesial) exige o reconhecimento da igualdade
fundamental de todos (“sem
distinção entre judeu ou grego, entre escravo ou homem livre, entre homem ou
mulher, porque todos são um só em Cristo Jesus”, dirá Paulo – Gl 3,28). A partir do amor, o dono do
escravo descobre a igualdade de todos os homens, filhos do mesmo Deus e irmãos
em Cristo; e o escravo descobre a afirmação clara da sua dignidade de homem.
***
Viver a vida segundo as exigências da fé não
é fácil nos nossos dias. Muitas vezes é necessário parar e refletir sobre o
sentido e orientação da nossa vida.
Em pleno século XXI o homem tem cada vez
mais consciência do seu poder. O crescente domínio sobre a ciência e a técnica
levam-no à convicção de que, de descoberta em descoberta, poderá dominar todas
as forças do mundo e até a própria vida humana. Só que a ciência é uma espada
de dois gumes e uma mesma descoberta pode ser aplicada para salvar a humanidade
ou para a destruir. A título de exemplo, temos a energia nuclear e a sua
aplicação na construção de engenhos de destruição em massa e a sua aplicação no
tratamento de doenças até há bem pouco tempo consideradas incuráveis. Está na
mão do homem a sua aplicação num ou noutro campo. E a verdade é que este, cada
vez mais consciente do seu poder, tem dificuldade em aceitar a sua limitação e
incapacidade ante dos problemas fundamentais da vida. Até onde lhe é permitido
ir?
Quantas e quantas vezes, sob a pressão do meio
ambiente, a ambição e a vertigem do êxito o envolvem por completo, levando-o a
pôr de lado princípios básicos dos quais nunca deveria abdicar, sob pena de se
atraiçoar a si próprio, como homem e como cristão. É o enriquecer sem limite, à
custa do seu semelhante; é o conseguir uma posição pública, social ou política
de destaque, quantas vezes pisando os direitos dos que se lhe cruzam no
caminho; é o preferir a comodidade, o bem-estar, a paz pobre em que tantas
vezes vegeta, a lançar-se no desafio da luta por algo mais nobre. Poderá o
homem ter a tentação de se convencer que domina o mundo, mas nunca se poderá
realizar plenamente à margem de Deus. Só em Cristo, morto e ressuscitado, ele
encontrará resposta às mais profundas interrogações e aspirações, à realização
pessoal.
Precisamos da sabedoria ou sapiência como
dom do Espírito Santo para fazermos correto e frutuoso discernimento.
2019.09.08 –
Louro de Carvalho
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