Catarina
Reis publicou, a 3 de setembro, no DN,
um texto-reportagem sobre a aplicação da nova modalidade de flexibilização
curricular onde afirma, entre outras coisas:
“Há salas de aulas vão mudar (ainda mais) já
neste ano letivo. Pelo menos é o resultado esperado com a portaria do ME
(Ministério da Educação) que entrou em vigor no domingo e contempla o
alargamento da flexibilidade curricular das escolas a mais de 25%. Durante o
mês de julho, todas as escolas do país podiam concorrer com planos de inovação. Umas optam apenas por transformar
períodos em semestres escolares, outras preferem ir mais longe. Fomos saber o
que vai mudar para alunos e professores.”.
Antes de
mais, é preciso esclarecer que nenhuma portaria entrou em vigor no domingo, dia
1 de setembro. É difícil um diploma entrar em vigor ao domingo ou feriado, a
não ser em caso de emergência e o próprio tem de declarar explicitamente que “entra
imediatamente em vigor”. Por outro lado, embora as escolas pudessem ter
estudado a matéria antes, não podiam agir em termos de candidatura sem o
normativo entrar em vigor. E, como diz a repórter, “durante o mês
de julho, todas as escolas do país podiam concorrer com planos de inovação”.
O que se passa é que
a Portaria n.º
181/2019, de 11 de junho, que define os termos e
as condições em que as escolas, no âmbito da autonomia e flexibilidade
curricular, podem implementar uma gestão superior a 25 % das matrizes curriculares-base
das ofertas educativas e formativas dos ensinos básico e secundário, entrou em
vigor, como estabelece o seu art.º 17.º, “no dia seguinte ao da sua publicação (portanto, 12 de junho).
Entretanto –
e a confusão vem daqui –, nos termos do seu art.º 16.º, a portaria “produz
efeitos de acordo com a calendarização prevista na regulamentação da respetiva
oferta do ensino básico ou do ensino secundário”, sendo a data genérica “1 de
setembro de 2019”. Porém, o Secretário de Estado que assinou o normativo não se
apercebeu de que o dia 1 de setembro seria um domingo, como foi. Não obstante,
quando assim acontece, os efeitos passam para o dia útil seguinte nos termos da
nossa lei civil.
Por outro
lado, a predita portaria revoga “o Despacho n.º 3721/2017, de 7 de abril,
publicado no Diário da República, 2.ª
série, n.º 85, de 3 de maio de 2017”, que autorizou a realização de PPIP (projetos-piloto de inovação pedagógica), em regime de
experiência pedagógica, para 3 anos escolares.
Ora, a
publicação do Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho – que “estabelece o currículo dos
ensinos básico e secundário, os princípios orientadores da sua conceção,
operacionalização e avaliação das aprendizagens, de modo a garantir que todos
os alunos adquiram os conhecimentos e desenvolvam as capacidades e atitudes que
contribuem para alcançar as competências previstas no Perfil dos Alunos à Saída
da Escolaridade Obrigatória” – implicava a publicação duma portaria que
regulamentasse de forma consolidada,
“O exercício efetivo de autonomia
curricular, possibilitando às escolas a identificação de opções curriculares
eficazes, adequadas ao contexto, enquadradas no projeto educativo e noutros
instrumentos estruturantes da escola”.
***
Posto isto, há que
dar voz à repórter e saber o que supostamente vai mudar. E ela diz:
“Desde anos letivos divididos em semestres à
criação de novas disciplinas, (quase) tudo é possível a partir deste ano. A
portaria que prevê o alargamento da flexibilidade curricular acima dos 25% entrou em vigor (não) no primeiro dia
deste mês.”.
Ana Cláudia Cohen fala com entusiasmo dos resultados que a iniciativa gerou
nos estudantes e no corpo docente desde que era apenas uma experiência. Mais
disse que tudo começara como PPIP (Projeto-Piloto
de Inovação Pedagógica), no ano letivo 2017-2018, ao abrigo do despacho acima referenciado, do
qual fizeram parte 225 estabelecimentos de ensino. E explicou ao DN:
“Fez-nos olhar para dentro da sala de aula”.
Como é possível dizer-se com verdade que foi preciso um PPIP para os
professores olharem para dentro da sala de aula? Não será seguidismo acrítico
duma política governativa que se diz inovadora através do aparente acrescento
de autonomia dado às escolas. Recordo-me de que, no tempo em que a gestão democrática
funcionava, as escolas respiravam mais e tinham mais liberdade do que agora,
que é tudo planeado e monitorizado ao pormenor.
Um ano após o começo da experiência pedagógica – lançada pelo Despacho n.º 3721/2017, de 7 de abril, publicado no
Diário da República, 2.ª série, n.º 85, de 3 de maio de 2017, “atento o previsto nos artigos 3.º, 4.º e 8.º do Decreto-Lei
n.º 75/2008, de 22 de abril” (que aprovou o
regime de autonomia, administração e gestão das escolas), na redação
dada pelo Decreto-Lei n.º 137/2012, de 2 de julho, e “ao abrigo do disposto no
Decreto-Lei n.º 47587, de 10 de março de 1967” (que permite ao Ministro da Educação determinar ou autorizar a
realização de experiências pedagógicas para lá dos casos e limites em que essa
realização já é possível segundo a legislação vigente) – Cláudia estava já a lançar o seu
próprio livro sobre o tema, o Guia da Autonomia e Flexibilidade
Curricular. Pretende com ele ajudar professores e diretores a tirar o
melhor proveito possível da liberdade curricular. Diz ela:
“Quando os professores refletem sobre o seu trabalho e os seus alunos,
chegam à conclusão de que temos de mudar algumas práticas”.
Porém, faz uma ressalva conveniente:
“Não é que os professores estivessem
estagnados, mas estavam submersos em muita burocracia e muitos trabalhos, sem
olhar para dentro da sala de aula”.
Obviamente, os professores estavam atolados em burocracia e a flexibilidade
curricular, como foi lançada, não os liberta da burocracia reinante e cria nova
burocracia com tanta aprovação, monitorização e relatórios. Por isso, a
flexibilidade nos currículos não trouxe vida às escolas, como diz, mas frenesim.
E os professores sempre olharam para a sala de aula e para os alunos.
Perante o sucesso do PPIP, a tutela decidiu
ampliar a iniciativa a todas as escolas interessadas em concorrer à aplicação
da flexibilização curricular até 25%, a começar no início de cada ciclo de
escolaridade (1.º, 5.º, 7.º e 10.º
anos). Segundo o ME,
a iniciativa nasceu com o objetivo de reduzir o abandono escolar e aumentar o
sucesso académico, bem como a autonomia organizativa, pedagógica, curricular,
administrativa e cultural das escolas. E que é da autonomia financeira? Neste ano, a predita portaria definiu uma
percentagem de flexibilidade ainda maior para as escolas: além dos 25%. Não é uma obrigatoriedade nem tão-pouco uma
decisão de livre-trânsito para as escolas. A escola interessada concorre com
respostas curriculares e pedagógicas específicas a avaliar pela tutela, que
decide autorizá-las ou não. É a autonomia condicionada.
E a diretora do Agrupamento de Escolas de
Alcanena até vê repercussão do PPIP nos exames:
“Os nossos alunos do 11.º ano ficaram dois valores acima da média
nacional nos exames de Biologia e Geologia. Também Físico-Química ficou acima
da média. Estão a
aprender melhor e a chegar melhor (mais bem) preparados para os exames.”.
***
Sobre o que pode mudar nas salas de aula, Ana
Cláudia Cohen diz que só é preciso dar asas à imaginação e “analisar a
realidade” da escola em causa, pois “há vários modelos”, podendo haver projetos por turma ou por ano, por
exemplo” – desde a criação de novas disciplinas à fusão de matérias, quase tudo
é possível.
No seu agrupamento, por exemplo, decidiram fazer
frente às maiores lacunas dos alunos com a introdução de duas novas
disciplinas, que serão iniciadas apenas neste ano. Um exemplo é o Laboratório Magalhães, desenhado para
resolver “as dificuldades que (os alunos) têm relativamente à identificação
e a interpretação de fontes”, como mapas e gráficos – elementos correntes nos
exames nacionais, pois “muitas vezes nem sequer compreendem o que é essencial e
o que é acessório quando os analisam”. Assim, este laboratório foi criado para
o 7.º ano, lecionado por um professor de História e Geografia. E, quando
chegarem ao secundário, já terão “esta falha ultrapassada”. Outro exemplo é o
da disciplina de Matematik. A
experiência leva Ana Cláudia a concluir que “há muito sucesso na Matemática até ao 4.º ano”, mas “grande insucesso a partir do 5.º ano”,
que “tende a aumentar cada vez mais a
partir daqui”. Por isso, resolveu tornar a disciplina mais interativa, apostando
na Matemática com a tecnologia e a Matemática aplicada a casos concretos do
dia-a-dia. A Matematik é agora uma disciplina do 5.º ano e do 6.º.
Por outro
lado, fundem-se
matérias de diferentes disciplinas. No início de cada ano, professores, alunos
e encarregados de educação juntam-se para debater “um tema aglutinador” e comum
a todas as áreas que serão estudadas ao longo do ano. E a diretora conta:
“No primeiro ano era ‘Caminhando ao longo da
nossa história’, sobre o nosso território, com uma abordagem geológica,
cultural, histórica, artística e geográfica. No ano passado, foi ‘Antropoceno’,
onde abordamos tudo o que tem que ver com preservação dos oceanos, energias
renováveis, etc.”.
Após um balanço do primeiro ano em que a flexibilidade curricular foi
aplicada no seu Agrupamento de Escolas de Alcanena, Ana Cláudia ficou surpresa
“como tudo correu tão bem”. E os
resultados estão à vista, como se referiu. Foi o suficiente para “ganhar a confiança de que os alunos estão a
aprender melhor e a chegar mais bem preparados para os exames”, disse.
Não me digam que o ME cozinhou esta flexibilização
curricular para que, de forma encapotada, as escolas preparassem principalmente
os alunos para os exames nacionais e provas finais. É o que dá a entender o
facto de as escolas privadas aderirem ao plano na fase de experiência.
Não obstante, há aspetos em que Ana Cláudia tem razão,
por exemplo quando sustenta:
“Só no final
de novembro é que afetamos recursos para colmatar as dificuldades dos alunos,
mas em dezembro já damos uma nota final (de período) a este aluno. É injusto
que seja logo classificado sem ter tempo de melhorar.”.
***
O que não muda é o calendário escolar. As escolas podem candidatar-se
à alteração da organização de períodos para semestres – como já sucede em
algumas escolas – desde que essa não interfira com o calendário oficial aplicável
a todas as instituições de ensino público. Assim, as aulas começam e terminam
nas mesmas datas (independentemente do regime
escolhido).
A semestralização é uma possibilidade que consta
da Portaria n.º
181/2019, de 11 de junho, acima referenciada, que prevê que as
instituições escolares públicas, profissionais, privadas ou de ensino
cooperativo possam dividir o ano em três períodos (como é habitual) ou em dois
semestres (à semelhança do que
acontece no ensino superior). Isto sem alterarem o número de momentos de avaliação. A experiência já
foi concretizada durante o PPIP e pode ser aplicada a qualquer escola, desde
que devidamente aprovada pelo ME. Ana Cláudia conta:
“Estive até à última para tomar a decisão e
decidimos pelos semestres, a favor dos alunos”.
E explica porquê (repetimos o que foi dito acima):
“Só no final de novembro é que afetamos recursos para colmatar as
dificuldades dos alunos, mas em dezembro já damos uma nota final (de período) a
estes alunos. É injusto que seja logo classificado sem ter tempo de melhorar.”.
Uma opinião partilhada por Filinto Lima, presidente da ANDAEP, que diz: “Damos mais oportunidade de desenvolvimento a
quem tem dificuldades”.
À questão se cada professor tem autonomia para
transformar as suas aulas, a resposta vem bastante embrulhada, levando a crer
que não. Numa primeira
fase, a decisão de mudar o currículo parte da escola, juntamente com o corpo
docente, que decide candidatar-se ou não ao programa de flexibilidade
curricular. E, se as ideias para
enquadrar este programa na escola forem autorizadas pelo ME, os professores têm
espaço para discutir como o aplicar à disciplina que lecionam, tendo por base o
plano de inovação apresentado pela escola. Neste aspeto funciona a autonomia do
grupo e não a autonomia profissional do docente. E esta é consagrada no art.º
35.º do ECD (estatuto
da carreira docente), no respeito constitucional pela liberdade de
ensinar.
Em consonância com a insinuação que fiz, as
escolas não podem decidir não ter exames finais. Ao invés, todos os alunos em
todas as escolas se devem sujeitar aos exames e provas previstos nos seus currículos.
De acordo com
o ME, “podem ser feitas propostas
nos mais variados âmbitos, desde que não seja posto em causa o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade
Obrigatória e as Aprendizagens
Essenciais”, de que depende também a avaliação externa. Aliás, já a
identificação de aprendizagens essenciais pelo ME afunila o currículo para cada
disciplina em função do exame. E o que se pensava que a flexibilidade
curricular traria para um currículo local ou regional, acaba por ser
aproveitado para preparar para exame ou prova final e não decorre de um projeto
de lógica sistémica. Continuamos com a lógica burocrática.
Diz a autora e professora que “a flexibilidade não pode pôr em
causa as ambições maiores”, mas – imagine-se (!) – pode ser uma ferramenta para
melhores resultados nos exames obrigatórios. No agrupamento de que é diretora, criaram-se “vias investigativas
para problemas locais”, um projeto através do qual se colocam os alunos da
vertente de Ciências e Tecnologias (do ensino
secundário) a investigar
em laboratórios, em parcerias com universidades. E integra-se no currículo tudo
o que se costumava fazer em projetos extracurriculares (para isto não era preciso o PPIP). E os alunos chegam ao final do ensino secundário “aptos e confiantes das
suas capacidades”.
Sobre a aplicabilidade a todos os anos de
escolaridade, lembra que o decreto-lei que
confere autonomia curricular às escolas menciona a possibilidade de gestão
flexível das matrizes curriculares-base das ofertas educativas e formativas do
ensino básico e do ensino secundário. Mas, para escola que aderiu PPIP,
já é aplicável a todos os anos – diz a diretora, que acrescenta:
“No nosso caso, exceto o quarto ano, porque
o projeto começou há três anos e ainda não conseguimos aplicar ao quarto, que é
um ano de transição”.
Como é que chama ano de transição ao 4.º ano? É
ano de final de ciclo como o 6.º, o 9.º e o 12.º.
***
Finalmente, sobre os procedimentos de candidatura
com PIP (Planos de Inovação Pedagógica), faz
uma leitura apressada da Portaria, dizendo que qualquer escola pode
apresentar um PIP no âmbito da flexibilidade curricular (dependente da aprovação da equipa de coordenação
nacional do programa de flexibilidade curricular). De acordo com o ME, “as escolas
apresentaram os seus planos durante o mês de julho” (por ser o primeiro ano de vigência da portaria, que só saiu em junho) e “a portaria não estipula
prazos, já que as escolas podem apresentar planos em qualquer fase para terem
início no ano letivo seguinte”. Não é verdade: a portaria determina no n.º 1 do
seu art.º 9.º:
“(…) as propostas de planos de inovação das
escolas, aprovadas pelos respetivos órgãos de administração e gestão, são
submetidas, até 30 de março de cada ano, à equipa de coordenação
nacional…”.
Os PIP são acompanhados por equipas regionais e avaliados pela comissão
nacional (constituída pela DGE, ANQEP, DGESTE e IGEC –
Tantos!), que “emite
parecer para aprovação pela tutela no prazo de 30 dias”. A candidatura
é avaliada “em função do mérito pedagógico e da garantia de cumprimentos dos objetivos
do currículo nacional”. Depois de
aprovado o PIP, a escola estará sob “monitorização e avaliação externa”, de
forma a garantir que está a cumprir.
***
Está visto
que é mais burocracia que autonomia. E a FENPROF tem razão ao dizer que o programa
de autonomia e flexibilização curricular é insuficiente. E é: reduz-se à sala
de aula.
2019.09.04 –
Louro de Carvalho
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