quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Currículo ainda mais flexível nas escolas no ano letivo que vai começar


Catarina Reis publicou, a 3 de setembro, no DN, um texto-reportagem sobre a aplicação da nova modalidade de flexibilização curricular onde afirma, entre outras coisas:
Há salas de aulas vão mudar (ainda mais) já neste ano letivo. Pelo menos é o resultado esperado com a portaria do ME (Ministério da Educação) que entrou em vigor no domingo e contempla o alargamento da flexibilidade curricular das escolas a mais de 25%. Durante o mês de julho, todas as escolas do país podiam concorrer com planos de inovação. Umas optam apenas por transformar períodos em semestres escolares, outras preferem ir mais longe. Fomos saber o que vai mudar para alunos e professores.”.
Antes de mais, é preciso esclarecer que nenhuma portaria entrou em vigor no domingo, dia 1 de setembro. É difícil um diploma entrar em vigor ao domingo ou feriado, a não ser em caso de emergência e o próprio tem de declarar explicitamente que “entra imediatamente em vigor”. Por outro lado, embora as escolas pudessem ter estudado a matéria antes, não podiam agir em termos de candidatura sem o normativo entrar em vigor. E, como diz a repórter, “durante o mês de julho, todas as escolas do país podiam concorrer com planos de inovação”.
O que se passa é que a Portaria n.º 181/2019, de 11 de junho, que define os termos e as condições em que as escolas, no âmbito da autonomia e flexibilidade curricular, podem implementar uma gestão superior a 25 % das matrizes curriculares-base das ofertas educativas e formativas dos ensinos básico e secundário, entrou em vigor, como estabelece o seu art.º 17.º, “no dia seguinte ao da sua publicação (portanto, 12 de junho).
Entretanto – e a confusão vem daqui –, nos termos do seu art.º 16.º, a portaria “produz efeitos de acordo com a calendarização prevista na regulamentação da respetiva oferta do ensino básico ou do ensino secundário”, sendo a data genérica “1 de setembro de 2019”. Porém, o Secretário de Estado que assinou o normativo não se apercebeu de que o dia 1 de setembro seria um domingo, como foi. Não obstante, quando assim acontece, os efeitos passam para o dia útil seguinte nos termos da nossa lei civil.
Por outro lado, a predita portaria revoga “o Despacho n.º 3721/2017, de 7 de abril, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 85, de 3 de maio de 2017”, que autorizou a realização de PPIP (projetos-piloto de inovação pedagógica), em regime de experiência pedagógica, para 3 anos escolares.
Ora, a publicação do Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho – que “estabelece o currículo dos ensinos básico e secundário, os princípios orientadores da sua conceção, operacionalização e avaliação das aprendizagens, de modo a garantir que todos os alunos adquiram os conhecimentos e desenvolvam as capacidades e atitudes que contribuem para alcançar as competências previstas no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória” – implicava a publicação duma portaria que regulamentasse de forma consolidada,
O exercício efetivo de autonomia curricular, possibilitando às escolas a identificação de opções curriculares eficazes, adequadas ao contexto, enquadradas no projeto educativo e noutros instrumentos estruturantes da escola”.
***
Posto isto, há que dar voz à repórter e saber o que supostamente vai mudar. E ela diz:
Desde anos letivos divididos em semestres à criação de novas disciplinas, (quase) tudo é possível a partir deste ano. A portaria que prevê o alargamento da flexibilidade curricular acima dos 25% entrou em vigor (não) no primeiro dia deste mês.”.
Ana Cláudia Cohen fala com entusiasmo dos resultados que a iniciativa gerou nos estudantes e no corpo docente desde que era apenas uma experiência. Mais disse que tudo começara como PPIP (Projeto-Piloto de Inovação Pedagógica), no ano letivo 2017-2018, ao abrigo do despacho acima referenciado, do qual fizeram parte 225 estabelecimentos de ensino. E explicou ao DN:
Fez-nos olhar para dentro da sala de aula.
Como é possível dizer-se com verdade que foi preciso um PPIP para os professores olharem para dentro da sala de aula? Não será seguidismo acrítico duma política governativa que se diz inovadora através do aparente acrescento de autonomia dado às escolas. Recordo-me de que, no tempo em que a gestão democrática funcionava, as escolas respiravam mais e tinham mais liberdade do que agora, que é tudo planeado e monitorizado ao pormenor.    
Um ano após o começo da experiência pedagógica – lançada pelo Despacho n.º 3721/2017, de 7 de abril, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 85, de 3 de maio de 2017,atento o previsto nos artigos 3.º, 4.º e 8.º do Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril” (que aprovou o regime de autonomia, administração e gestão das escolas), na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 137/2012, de 2 de julho, e “ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 47587, de 10 de março de 1967” (que permite ao Ministro da Educação determinar ou autorizar a realização de experiências pedagógicas para lá dos casos e limites em que essa realização já é possível segundo a legislação vigente) – Cláudia estava já a lançar o seu próprio livro sobre o tema, o Guia da Autonomia e Flexibilidade Curricular. Pretende com ele ajudar professores e diretores a tirar o melhor proveito possível da liberdade curricular. Diz ela:
Quando os professores refletem sobre o seu trabalho e os seus alunos, chegam à conclusão de que temos de mudar algumas práticas.
Porém, faz uma ressalva conveniente:
Não é que os professores estivessem estagnados, mas estavam submersos em muita burocracia e muitos trabalhos, sem olhar para dentro da sala de aula”.
Obviamente, os professores estavam atolados em burocracia e a flexibilidade curricular, como foi lançada, não os liberta da burocracia reinante e cria nova burocracia com tanta aprovação, monitorização e relatórios. Por isso, a flexibilidade nos currículos não trouxe vida às escolas, como diz, mas frenesim. E os professores sempre olharam para a sala de aula e para os alunos.
Perante o sucesso do PPIP, a tutela decidiu ampliar a iniciativa a todas as escolas interessadas em concorrer à aplicação da flexibilização curricular até 25%, a começar no início de cada ciclo de escolaridade (1.º, 5.º, 7.º e 10.º anos). Segundo o ME, a iniciativa nasceu com o objetivo de reduzir o abandono escolar e aumentar o sucesso académico, bem como a autonomia organizativa, pedagógica, curricular, administrativa e cultural das escolas. E que é da autonomia financeira? Neste ano, a predita portaria definiu uma percentagem de flexibilidade ainda maior para as escolas: além dos 25%. Não é uma obrigatoriedade nem tão-pouco uma decisão de livre-trânsito para as escolas. A escola interessada concorre com respostas curriculares e pedagógicas específicas a avaliar pela tutela, que decide autorizá-las ou não. É a autonomia condicionada.
E a diretora do Agrupamento de Escolas de Alcanena até vê repercussão do PPIP nos exames:
Os nossos alunos do 11.º ano ficaram dois valores acima da média nacional nos exames de Biologia e Geologia. Também Físico-Química ficou acima da média. Estão a aprender melhor e a chegar melhor (mais bem) preparados para os exames.”.
***
Sobre o que pode mudar nas salas de aula, Ana Cláudia Cohen diz que só é preciso dar asas à imaginação e “analisar a realidade” da escola em causa, pois “há vários modelos”, podendo haver projetos por turma ou por ano, por exemplo” – desde a criação de novas disciplinas à fusão de matérias, quase tudo é possível.
No seu agrupamento, por exemplo, decidiram fazer frente às maiores lacunas dos alunos com a introdução de duas novas disciplinas, que serão iniciadas apenas neste ano. Um exemplo é o Laboratório Magalhães, desenhado para resolver “as dificuldades que (os alunos) têm relativamente à identificação e a interpretação de fontes”, como mapas e gráficos – elementos correntes nos exames nacionais, pois “muitas vezes nem sequer compreendem o que é essencial e o que é acessório quando os analisam”. Assim, este laboratório foi criado para o 7.º ano, lecionado por um professor de História e Geografia. E, quando chegarem ao secundário, já terão “esta falha ultrapassada”. Outro exemplo é o da disciplina de Matematik. A experiência leva Ana Cláudia a concluir que “há muito sucesso na Matemática até ao 4.º ano”, mas “grande insucesso a partir do 5.º ano”, que “tende a aumentar cada vez mais a partir daqui”. Por isso, resolveu tornar a disciplina mais interativa, apostando na Matemática com a tecnologia e a Matemática aplicada a casos concretos do dia-a-dia. A Matematik é agora uma disciplina do 5.º ano e do 6.º.
Por outro lado, fundem-se matérias de diferentes disciplinas. No início de cada ano, professores, alunos e encarregados de educação juntam-se para debater “um tema aglutinador” e comum a todas as áreas que serão estudadas ao longo do ano. E a diretora conta:
No primeiro ano era ‘Caminhando ao longo da nossa história’, sobre o nosso território, com uma abordagem geológica, cultural, histórica, artística e geográfica. No ano passado, foi ‘Antropoceno’, onde abordamos tudo o que tem que ver com preservação dos oceanos, energias renováveis, etc.”.
Após um balanço do primeiro ano em que a flexibilidade curricular foi aplicada no seu Agrupamento de Escolas de Alcanena, Ana Cláudia ficou surpresa “como tudo correu tão bem”. E os resultados estão à vista, como se referiu. Foi o suficiente para “ganhar a confiança de que os alunos estão a aprender melhor e a chegar mais bem preparados para os exames”, disse.
Não me digam que o ME cozinhou esta flexibilização curricular para que, de forma encapotada, as escolas preparassem principalmente os alunos para os exames nacionais e provas finais. É o que dá a entender o facto de as escolas privadas aderirem ao plano na fase de experiência.    
Não obstante, há aspetos em que Ana Cláudia tem razão, por exemplo quando sustenta: 
“Só no final de novembro é que afetamos recursos para colmatar as dificuldades dos alunos, mas em dezembro já damos uma nota final (de período) a este aluno. É injusto que seja logo classificado sem ter tempo de melhorar.”.
***
O que não muda é o calendário escolar. As escolas podem candidatar-se à alteração da organização de períodos para semestres – como já sucede em algumas escolas – desde que essa não interfira com o calendário oficial aplicável a todas as instituições de ensino público. Assim, as aulas começam e terminam nas mesmas datas (independentemente do regime escolhido).
A semestralização é uma possibilidade que consta da Portaria n.º 181/2019, de 11 de junho, acima referenciada, que prevê que as instituições escolares públicas, profissionais, privadas ou de ensino cooperativo possam dividir o ano em três períodos (como é habitual) ou em dois semestres (à semelhança do que acontece no ensino superior). Isto sem alterarem o número de momentos de avaliação. A experiência já foi concretizada durante o PPIP e pode ser aplicada a qualquer escola, desde que devidamente aprovada pelo ME. Ana Cláudia conta:
Estive até à última para tomar a decisão e decidimos pelos semestres, a favor dos alunos”.
E explica porquê (repetimos o que foi dito acima): 
Só no final de novembro é que afetamos recursos para colmatar as dificuldades dos alunos, mas em dezembro já damos uma nota final (de período) a estes alunos. É injusto que seja logo classificado sem ter tempo de melhorar.”.
Uma opinião partilhada por Filinto Lima, presidente da ANDAEP, que diz: “Damos mais oportunidade de desenvolvimento a quem tem dificuldades”.
À questão se cada professor tem autonomia para transformar as suas aulas, a resposta vem bastante embrulhada, levando a crer que não. Numa primeira fase, a decisão de mudar o currículo parte da escola, juntamente com o corpo docente, que decide candidatar-se ou não ao programa de flexibilidade curricular. E, se as ideias para enquadrar este programa na escola forem autorizadas pelo ME, os professores têm espaço para discutir como o aplicar à disciplina que lecionam, tendo por base o plano de inovação apresentado pela escola. Neste aspeto funciona a autonomia do grupo e não a autonomia profissional do docente. E esta é consagrada no art.º 35.º do ECD (estatuto da carreira docente), no respeito constitucional pela liberdade de ensinar.
Em consonância com a insinuação que fiz, as escolas não podem decidir não ter exames finais. Ao invés, todos os alunos em todas as escolas se devem sujeitar aos exames e provas previstos nos seus currículos. De acordo com o ME, “podem ser feitas propostas nos mais variados âmbitos, desde que não seja posto em causa o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória e as Aprendizagens Essenciais”, de que depende também a avaliação externa. Aliás, já a identificação de aprendizagens essenciais pelo ME afunila o currículo para cada disciplina em função do exame. E o que se pensava que a flexibilidade curricular traria para um currículo local ou regional, acaba por ser aproveitado para preparar para exame ou prova final e não decorre de um projeto de lógica sistémica. Continuamos com a lógica burocrática.
Diz a autora e professora que “a flexibilidade não pode pôr em causa as ambições maiores”, mas – imagine-se (!) – pode ser uma ferramenta para melhores resultados nos exames obrigatórios. No agrupamento de que é diretora, criaram-se “vias investigativas para problemas locais”, um projeto através do qual se colocam os alunos da vertente de Ciências e Tecnologias (do ensino secundário) a investigar em laboratórios, em parcerias com universidades. E integra-se no currículo tudo o que se costumava fazer em projetos extracurriculares (para isto não era preciso o PPIP). E os alunos chegam ao final do ensino secundário “aptos e confiantes das suas capacidades”.
Sobre a aplicabilidade a todos os anos de escolaridade, lembra que o decreto-lei que confere autonomia curricular às escolas menciona a possibilidade de gestão flexível das matrizes curriculares-base das ofertas educativas e formativas do ensino básico e do ensino secundário. Mas, para escola que aderiu PPIP, já é aplicável a todos os anos – diz a diretora, que acrescenta:
No nosso caso, exceto o quarto ano, porque o projeto começou há três anos e ainda não conseguimos aplicar ao quarto, que é um ano de transição”.
Como é que chama ano de transição ao 4.º ano? É ano de final de ciclo como o 6.º, o 9.º e o 12.º.
***
Finalmente, sobre os procedimentos de candidatura com PIP (Planos de Inovação Pedagógica), faz uma leitura apressada da Portaria, dizendo que qualquer escola pode apresentar um PIP no âmbito da flexibilidade curricular (dependente da aprovação da equipa de coordenação nacional do programa de flexibilidade curricular). De acordo com o ME, “as escolas apresentaram os seus planos durante o mês de julho” (por ser o primeiro ano de vigência da portaria, que só saiu em junho) e “a portaria não estipula prazos, já que as escolas podem apresentar planos em qualquer fase para terem início no ano letivo seguinte”. Não é verdade: a portaria determina no n.º 1 do seu art.º 9.º:
(…) as propostas de planos de inovação das escolas, aprovadas pelos respetivos órgãos de administração e gestão, são submetidas, até 30 de março de cada ano, à equipa de coordenação nacional…”.
Os PIP são acompanhados por equipas regionais e avaliados pela comissão nacional (constituída pela DGE, ANQEP, DGESTE e IGEC – Tantos!), que “emite parecer para aprovação pela tutela no prazo de 30 dias”. A candidatura é avaliada “em função do mérito pedagógico e da garantia de cumprimentos dos objetivos do currículo nacional”. Depois de aprovado o PIP, a escola estará sob “monitorização e avaliação externa”, de forma a garantir que está a cumprir.
***
Está visto que é mais burocracia que autonomia. E a FENPROF tem razão ao dizer que o programa de autonomia e flexibilização curricular é insuficiente. E é: reduz-se à sala de aula.
2019.09.04 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário