Quem o diz é o Presidente da República, que
atribuiu a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade a António
Lobo Antunes no encerramento do
colóquio que homenageou o escritor na Fundação Gulbenkian, em Lisboa,
agradecendo-lhe por ter “contribuído para a nossa liberdade, por aquilo que
pensou, por aquilo que fez e por aquilo que escreveu”.
O colóquio
dedicado aos 40 anos da vida literária do autor de A Outra Margem do
Mar (ed. Dom
Quixote) que no sábado, dia 28 de setembro,
na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, numa sala onde estavam os antigos
Presidentes da República Jorge Sampaio e Ramalho Eanes.
Bernard-Henry
Lévy, o escritor e filósofo francês, que fez a conferência de abertura, mostrou-se
feliz por o seu país ter permitido à obra do escritor português a entrada na
Biblioteca La Pléiade, a coleção de
referências da literatura mundial (o anúncio foi feito o ano passado e
o processo está em andamento segundo a editora). E disse:
“Mas há um gesto que se impunha, há uma
recompensa que se impunha, há uma recompensa que ele merece há tantos anos e
que nos faz perguntar: Como é possível que tarde tanto? A recompensa que eu
peço esta manhã para António Lobo Antunes é naturalmente o Prémio Nobel da
Literatura.”.
Horas
depois, na mesma sala, o Presidente da República lembrava que há um quarto de
século havia um debate na sociedade portuguesa sobre o Prémio Nobel da Literatura
para António Lobo Antunes, debate que rejeitava, porque sempre achou que estava
acima disso o autor de Fado Alexandrino. E acrescentou:
“Não precisava do Prémio Nobel da Literatura
para ser quem era. (…) Isso ficou mais claro quando a Pléiade o reconheceu e o chamou ao Olimpo. [António Lobo Antunes] entrou
no Olimpo. Não há que esperar notícias dessa capital da Europa nórdica. Não
importa, é perda de tempo.”.
E o
Presidente considerou que o intelectual francês fez bem em ter dito o que
disse, pois só mostra como é consistente, persistente e tem aquele traço
francês que é de não se esquecer daquilo que pensava já há 40 anos. Porém,
segundo Marcelo, para os portugueses o que é fundamental é que Lobo Antunes
ganhou já tudo o que havia a ganhar de prémios. E disse o PR:
“É um daqueles casos de acesso à eternidade
por mérito próprio. A genialidade abre ‘uma via verde’, ou melhor, eu não digo
a cor para não ser mal interpretado. Nestes tempos de campanha eleitoral, o
melhor é não dizer nada porque irão dizer tudo sobre mim.” – disse e retificou para
“uma via direta”.
Referindo
que Lobo Antunes diz que “os sucessivos Presidentes da República sempre
tiveram um carinho especial por ele”, frisou que “os portugueses, ao longo
destes anos, sempre tiveram carinho pelo António”, pelo que “os Presidentes
cumpriram a sua função: interpretar a vontade do povo”, tendo para isso
sido eleitos. Depois, surpreendeu o escritor com palavras e um gesto:
“Que posso eu dizer senão agradecer-lhe a
sua juventude, agradecer-lhe aquilo que por nós fez, agradecer-lhe a sua
irreverência e a sua liberdade. Foi, é e será sempre um homem essencialmente
livre. E que contribuiu para a nossa liberdade, por aquilo que pensou, por
aquilo que fez e por aquilo que escreveu. Como reconhecer isso? É muito
simples. É o pouco que está ao alcance de um Presidente da República que é
atribuir-lhe a Ordem da Liberdade nestes 40 anos de obra literária. E é isso
que eu passo a fazer.”.
E fê-lo
perante uma enorme plateia a aplaudir de pé.
***
Foi a Fundação Calouste Gulbenkian que promoveu o
predito colóquio dedicado aos 40 anos de vida literária do escritor António
Lobo Antunes para celebrar o homem e a obra.
A famosa frase “apenas me preocupa atingir o coração do coração e iluminar tudo”,
retirada da “Crónica com um sorriso no
fim”, foi o mote que assinalou o arranque do programa dedicado a António
Lobo Antunes e aos seus “40 anos de vida literária”, numa conferência que
contou com vários convidados ao longo do dia, para falar das suas duas obras inaugurais
e duas das mais memoráveis, com o Presidente da República a encerrar a
cerimónia.
Essas obras são “Os Cus de Judas” e “Memória
de Elefante”, ambos publicados em 1979 e ambos protagonizados por um médico
– a formação de base do autor (não o único).
Sobre o autor e estas suas duas obras
intervieram na conferência, ao longo do dia, professores, ensaístas e
investigadores como Bernard-Henri Lévy, Dinu Flamand, Mircea Martin, Dominique
Nédellec, Vincenzo Russo, Knut Cordsen, Daniel Sampaio, Nuno Lobo Antunes, Ana
Paula Arnaut, Norberto do Vale Cardoso, Sérgio Guimarães de Sousa e Maria
Alzira Seixo, além de Guilherme d’Oliveira Martins.
Iniciado às 10 horas, o colóquio
terminou às 18, mas antes houve leituras de excertos de “Os Cús de Judas” e “Memória
de Elefante”, pela voz do próprio António Lobo Antunes. E, na zona de
receção do secretariado dos congressos pôde contemplar-se uma instalação
alusiva a estas duas obras.
***
O que iria dizer durante uma hora o
filósofo e polemista Bernard-Henri Lévy sobre Lobo Antunes era a grande curiosidade.
Assunto não faltava, afinal 40 anos de vida literária dão milhares de páginas e
ângulos e havia muitos especialistas num auditório repleto de espectadores. Porém,
Lévy não se considera mais do que um leitor de António Lobo Antunes, mas
confirmou a fama de que está habituado a galvanizar plateias e, durante dezenas
de minutos, divagou sobre a obra e o escritor e saiu do palco perante uma salva
de palmas.
Começou por confessar que há poucos escritores vivos
que o impressionem tanto como Lobo Antunes e revelou que o
antigo editor francês de António Lobo Antunes, Christian Bourgois, lhe dissera
há muitos anos que “precisava de ler a tradução de Os Cus de Judas de
um dos escritores maiores que publicava”. E, depois de ler o romance, concluiu:
“Era uma das aventuras singulares do
nosso tempo”.
Garantindo que era fã, que lera
várias traduções, que comprovou, pelo menos, dizendo os títulos de vários
livros e que ainda na véspera viera a reler o “Manual dos Inquisidores”,
recordou uma antiga entrevista de Lobo Antunes em que este fazia três recomendações
aos que o quisessem ler: “Ele explicava
aos leitores como é que poderiam entrar na sua obra assim” – disse.
E a primeira recomendação do escritor
português era:
“Leiam-me
com se eu fosse um músico porque a minha academia não é de escritores. O ofício de escrita aprendi-o num programa de televisão com um ornitólogo
que decompunha o canto dos pássaros ao passar mais devagar as gravações que
fazia e assim poder ouvir as variações desses cantos.”.
Assim, como explicitou o orador, o
escritor “compreendeu que os seus
verdadeiros mestres eram Beethoven, Brahms, Mahler e Charlie Parker, e que me
obrigou a ler de outra forma os seus romances”.
A segunda recomendação de Lobo Antunes
era:
“Prestem
atenção ao que leem como se a regra do ofício do escritor entrasse pela porta
da pontuação”.
E Lévy comentou:
“Céline
inventou o ponto de exclamação, Proust dizia que Flaubert mudara o destino da
humanidade por alterar o início das frases e ALA (António Lobo Antunes) fez
revoluções, como introduzir maiúsculas no meio das frases, acrescentar conteúdo
entre parêntesis e trabalhando sobre o branco entre e no interior das palavras.
Isso era novo e fazia o texto respirar como nenhum outro.”.
A terceira recomendação de ALA era, segundo
Lévy:
“Dispersar
o leitor em vez de o encaminhar, pois ALA faz um esforço para o desarmar. Quer
que ele deixe à entrada do livro tudo o que sabe porque os seus livros precisam
de ser apanhados como o corpo é contagiado por um micróbio. Só baixando as
defesas imunitárias se pode acolher o furacão dos seus livros.”.
E, recordando o pedido de João Paulo II para
que os fiéis confiassem nele, Lévy disse:
“António,
tu és o único escritor que conheço a ter um toque papal quando pede aos leitores
‘tenham confiança em mim’.”
A seguir, relevou o que torna a obra
de ALA diferente da de outros escritores, como James Joyce ou Virginia Woolf:
“A
novidade é como trata a questão do tempo, tema que todos os grandes
trabalharam: Balzac ou Proust, por exemplo. Mas ALA distingue-se do trabalho de
ambos porque, ao colocar o tempo, fá-lo através de uma orquestra de personagens
que oferecem a memória. O tempo de ALA é um em que o passado, o presente e o
futuro não aceitam ser estanques e misturam-se – como era a realidade
portuguesa nos tempos a seguir à Revolução de 1974 onde tudo estava em
simultâneo. ALA faz na sua obra a paródia e o pastiche de figuras da história
portuguesa como se fosse um descendente de Homero a fazer um relato à Monty
Phyton.”.
Depois, decidindo contribuir para a
interpretação da escrita do autor português, voltou a socorrer-se de Joyce e de
Woolf dizendo:
“Em
ALA há o monólogo interior e a polifonia, que vem de Joyce ou de Virgínia Woolf:
no primeiro, com a existência de um falar em permanência; e, na segunda, o
fluxo da consciência. Mas há uma diferença, quando se leem os teus romances
percebe-se que existem vozes nos teus monólogos que flutuam e não pertencem a
ninguém – e isso parecia-me impensável. Há até várias vozes na mesma palavra e
se quisermos definir a tua voz só pode ser da seguinte maneira: há um Tejo de
palavras onde elas se misturam os dias, as vozes e também as pessoas e as
coisas.”.
Por fim, questionou o tema principal
da obra do escritor – a guerra – que resume em três
letras: mal. E exige que ALA se pronuncie de forma
doutrinária e teológica sobre o horror e a estupidez da guerra: “A guerra é o momento limite da humanidade e
onde tudo se desfaz”. Lobo Antunes viu isso em Angola e mostra-o nos seus
livros. E Lévy insiste no questionamento: “Onde
está o mal na obra e como é que ALA o interpreta?”.
Quase a chegar ao fim da palestra, Lévy
elogiou à francesa António Lobo Antunes:
“Depois
de ser incluído na Plêiade – onde poucos autores vivos estão –, o que peço para
este escritor é o Nobel da Literatura! À francesa, porque a Plêiade e o seu
reconhecimento em França não é para qualquer um...”.
***
O Presidente da República, que encerrou
o colóquio, entrou de braço dado com o escritor e logo se ouviu uma ovação
pouco habitual neste género de colóquios intelectuais. Começou por dizer que o
seu discurso tinha sido destruído pela intervenção do escritor e que tudo o que
dissesse seria banal. Por isso, decidiu comentar o que Lobo Antunes dissera,
como a importância da linhagem de que descende e a importância dos irmãos, a
sociedade e a crítica conservadora dos tempos em que iniciara a carreira e a
forma como Portugal interiorizou a guerra colonial:
“O
António veio dizer o que se passou e chocou muitos. Não era um ajuste de contas
mas um reajuste.”.
Para Marcelo, a sociedade foi mudando
e a obra passou a ser consensual. Comentou as crónicas do escritor e o que elas
permitem descobrir sobre a sua infância e ofereceu ao escritor um assunto para
um texto. E não evitou falar do Prémio Nobel da Literatura por considerar que
não é preciso esperar notícias dessas de uma capital nórdica pois “o António já recebeu todos os prémios possíveis e até está na Plêiade”.
Antes de o Presidente encerrar a sessão,
Lobo Antunes mostrara-se emocionado e irreverente:
“40
anos desde a publicação. 40 anos! Parece impossível. Quando olho ao espelho o
que vejo intriga-me sempre. O cabelo cinzento, a cara marcada não é minha. Não
sou um senhor com um coração jovem mas um miúdo em que o envelope se gastou. Um
miúdo que passava o tempo a escrever, a minha vida foi sempre isso. Tinha 5, 6
anos e já tinha uma obra impressionante. As minhas primeiras histórias eram
sobre a morte porque o meu avô recebia o Diário
de Notícias e começava pela necrologia. E ria-se dos que morriam tão
jovens. Então, continuei a escrever na faculdade mas era o meu irmão João que
me dava os apontamentos e fazia com que eu passasse de ano...”.
Referiu casos de cobardia em África, elogiou
os militares combatentes e divertiu a plateia com umas quadras picarescas. Recordou
a ida a Pádua com o avô que ia pagar uma promessa por o neto ter sobrevivido à
meningite. Voltou às memórias com histórias à José Vilhena e a plateia riu-se
muito enquanto o Presidente olhava e sorria timidamente. E recordou a sua amizade
com anteriores presidentes da República, Ramalho Eanes e Mário Soares, antes de
agradecer aos presentes, que se levantaram para o aplaudir.
***
Além de Bernard-Henri Lévy, houve,
ainda na parte da manhã, três testemunhos sobre o escritor que não ficaram
atrás no respeitante à emoção dos presentes.
O psiquiatra Daniel Sampaio, o amigo
desde há muito, contextualizou o Portugal em que António Lobo Antunes se
iniciou na escrita:
“Em
1979, Portugal estava em transição política e Ramalho Eanes – presente na
primeira fila – era o Presidente da República, Maria de Lourdes Pintasilgo a
Primeira-Ministra, inaugurava-se o canal 2 da RTP, o filme Apocalypse
Now chegava aos cinemas e a canção que vencera o Festival era Sobe
Sobe, Balão Sobe. Foi nesse tempo que um escritor que escrevia desde
criança publicou dois livros, sobre os quais quase nenhum dos autores
reconhecidos de então disse uma palavra – à exceção de Agustina e Cardoso
Pires.”.
E continuou a sua explicitação:
“Era
um tempo em que todos esperávamos os grandes romances que estariam na gaveta e
a democracia ainda não tinha acabado com os romances neorrealistas e
existencialistas. Ele apareceu-me com um manuscrito e eu levei o livro a três
editoras – só a Vega publicou. O que se passou a seguir é difícil descrever: o meio
literário ficou em silêncio e, posteriormente, eram comentados como se fossem
uma ofensa, mas todos o
queriam ler. Em Memória de Elefante já estavam algumas das
linhas de força do que hoje ele veio a escrever mas, em 1979, esses foram os
dois livros que agitaram as consciências da burguesia de então.”.
Por seu turno, Dinu Flamand,
recordando os tempos em que António Lobo Antunes o ajudou a viver fora da Roménia,
recebendo-o na sua casa, disse que fora a primeira vez que viu um escritor
profissional a trabalhar a facilitar-lhe a vida fora do país de origem. Disse lembrar-se
de ter lido “Fado Alexandrino” e imaginar o que seria um livro
destes na Roménia. E, após vários relatos, agradeceu ao escritor “ter-lhe
salvado a vida”.
E Nuno Lobo Antunes, o quinto irmão
do autor, fechou a manhã com um rol de “críticas” ao António, divertiu a
plateia, após confessar que só estava ali porque os seus irmãos mais velhos
morreram. Recordando vários episódios da relação com o irmão, vincou:
“Lembro-me
de o ver escrever, mas o que mais estranhava era que usasse uma caveira como
cinzeiro”.
No fim, listou os momentos mais
gratos da sua infância e acusou o irmão de “ser um ladrão”:
“Roubou
para os seus livros as frases da família, tudo o que eram as minhas
experiências e todo o meu passado. Deixei de ter histórias para contar e cada
frase que leio nos seus livros esvazia-me do que eu fui.”.
Na parte da tarde, vários
especialistas analisaram a obra de António Lobo Antunes e o escritor leu
trechos do romance Os Cus de Judas, após o que Isabel Mota, Presidente do Conselho de Administração da Fundação
Calouste Gulbenkian, deu início ao encerramento da conferência evocativa
dos 40 anos de vida literária do escritor.
***
Que Lobo Antunes tem obra literária
significativa e que merece a homenagem do meio literário e cultural é verdade.
Porém, merecer o Prémio Nobel da Literatura ou dispensá-lo porque está acima de
tudo isso e já entrou no Olimpo é petulância da parte do próprio e bajulação da
parte de fãs. Nem a Grã Cruz da Ordem da Liberdade sobrepuja o Nobel, como quer
o Presidente, que é ultraliberal na atribuição de condecorações, quase parecendo
que as traz no bolso. Aliás, que luta pela liberdade se conhece em Lobo
Antunes, a não a da linguagem extra ficção?
Quanto ao Nobel para Lobo Antunes,
nada contra, mas que dizer de outros, se calhar, mais merecedores como, por
exemplo, Mário Cláudio, que a Feira do
Livro no Porto homenageou no passado dia 18 por ocasião dos seus 50 anos de
vida literária. Quer-me parecer que ainda se apreciam as pessoas pelas condições
de família, o que em democracia não é plausível.
Todavia, é de relevar a tonalidade
musical da tessitura textual sobretudo no quadro da narrativa.
2019.09.30 – Louro de Carvalho
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