Referem os diversos órgãos de
comunicação social que o parecer Conselho Consultivo da PGR (Procuradoria-Geral da República) sobre os contratos com familiares de
membros do Governo é favorável à opinião em tempo expressa pelo Primeiro-Ministro
e pelo número dois do Governo Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios
Estrangeiros, e que ministros não têm de
se demitir. É certo que alguns falam em favorabilidade aparente, mas deixando pairar
a dúvida sobre tal aparência.
O parecer da PGR sobre contratação pública com empresas de familiares –
dizem – é favorável ao Governo, pois entende que não pode ser feita uma
interpretação “estritamente literal”
da lei, tal como tinham defendido António Costa e Santos Silva, mas que devem
ser tidos em conta outros critérios como a “vontade do legislador”. Apesar de a lei prever a perda de mandato
quando um familiar direto faz contratos com o Estado, o parecer diz que a demissão não deve “ser automática” e
deve aplicar-se apenas quando são os próprios governantes a deter pelo menos
10% de uma determinada empresa.
A questão foi levantada pelas críticas à permanência do Secretário de
Estado da Proteção Civil, José Artur Neves, que o Primeiro-Ministro segurou,
apesar da demissão do seu chefe de gabinete e do seu adjunto, mas que, entretanto,
se demitiu por ter sido constituído arguido, e de ministros, como Francisca Van
Dunem, Pedro Nuno Santos ou Graça Fonseca. Com efeito, os governantes
mencionados têm familiares que alegadamente
assinaram contratos com o Estado. E tanto Santos Silva como António
Costa defenderam que não podia ser feita uma interpretação literal da lei.
Agora, o Primeiro-Ministro entende que o parecer da PGR lhe dá inteira razão.
O parecer foi parcialmente revelado pelo Primeiro-Ministro pouco depois das
18 horas do dia 20, publicado no site
da PGR cerca das 19 horas e, segundo informação do gabinete do Primeiro-Ministro,
vai ser publicado nas próximas horas no Diário da República.
Questionado sobre o assunto, António Costa disse que não faria qualquer
comentário, uma vez que o parecer iria ser divulgado em breve.
***
Ora, para se verificar da legitimidade do agrado do Chefe do Governo, há
que partir do teor das questões que Santos Silva formulou ao Conselho
Consultivo da PGR, a 31 de julho, que são:
1. “Como
deve ser interpretado o impedimento estabelecido pelo art.º 8.° da Lei n.º
64/93, de 26 de agosto, em termos conformes à Constituição? Uma interpretação
exclusivamente literal do referido preceito, que conduzisse à aplicação de uma
sanção por factos não imputáveis ao titular de cargo político ou alto cargo
público e fora do seu controlo, não buliria com os ditames de proporcionalidade
decorrentes do n.º 2 do art.º 18.° da Constituição?”.
2. “Tendo
em conta o entendimento do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da
República, expresso no Parecer n.º 35/92, deve entender-se que a aplicação das
sanções previstas no n.º 3 do art.º 10.° da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, é
automática ou, pelo contrário, carece de uma avaliação casuística quanto ao
eventual envolvimento e censurabilidade do titular de cargo político ou
alto cargo público em questão?”.
Em primeiro lugar, deve ter-se em conta que o Conselho não se pronuncia
sobre os casos concretos que o Governo tinha em mente quando formulou as
preditas questões. Portanto, em caso de suspeita sobre eventual atuação de governante,
o MP (Ministério Público) continuará a investigação, como acontece no caso do demitido Secretário
de Estado da Proteção Civil, em que pode haver influência direta do então governante
nos negócios em causa, segundo adiantam alguns jornais. E parece que o Primeiro-Ministro
queria que a PGR analisasse o caso concreto do então Secretário de Estado da
Proteção Civil e do filho deste, mas os conselheiros recusaram fazê-lo porque
não só “este Corpo Consultivo nunca seria
a sede própria para apurar e recolher matéria de facto, restringidos que se
mostram os seus poderes exclusivamente” a “matéria de direito”, como o caso
de Artur Neves foi referido de forma imprecisa por parte do Governo.
Não obstante, em face do parecer em causa, pode concluir-se que todos os
ministros sobre os quais António Costa tinha dúvidas, estão a salvo, pois os
contratos ganhos pelos familiares dos ministros Francisca Van Dunem, da Justiça,
Pedro Nuno Santos, das Infraestruturas, e Graça Fonseca, da Cultura, estavam
“fora da esfera de ação do governante e em que os subsequentes contratos foram
celebrados no termo de um concurso, após o escrupuloso cumprimento de todas as
formalidades aplicáveis”, prescritas pelo CCP (Código dos Contratos
Públicos). Já no caso de Artur
Neves o MP está a investigar o caso do ponto de vista criminal e, do ponto de
vista teórico, os procuradores do DCIAP (Departamento Central
de Investigação e Ação Penal) poderão retirar uma interpretação diferente. Isto é, não são obrigados a
seguir a interpretação do Conselho Consultivo da PGR.
Assim, e em abstrato, os conselheiros distinguem duas situações: “quando está em causa o próprio titular ou a empresa que detém em percentagem superior a 10%”;
e “quando o impedimento se reporta às
pessoas com quem mantém relações familiares ou de vivência em comum e às
respetivas empresas”.
No primeiro caso, ou seja quando a empresa é detida pelo governante em pelo
menos 10%, “o impedimento deve ser interpretado e aplicado nos termos que
constam da letra da lei”. Assim, por exemplo, se Pedro Nuno Santos tivesse uma
participação superior nessa empresa (e não o pai) ou José Artur Neves o mesmo grau de participação
na empresa (e não o filho), tinham de ser demitidos, o que não é o caso.
No segundo caso, ou seja, quando são os familiares que detêm pelo menos
aquela percentagem de participação na empresa que fez contratos com o Estado, a
demissão só deve ser imediata caso o governante tenha influência direta no ajuste direto ou tutele diretamente
o órgão que o gere. “Existe fundamento para uma redução teleológica
do disposto no n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, no
sentido de que, em vez de se reportar indiscriminadamente a qualquer concurso público, deve referir-se apenas
aos que foram abertos ou correm os seus trâmites no órgão do Estado ou do ente
público em que o titular exerce funções ou sobre os quais exerce poderes de
superintendência ou tutela de mérito” – diz o parecer.
Em nota enviada à comunicação social, António Costa faz uma leitura do
parecer em que entende que seria “inconstitucional”
onerar um governante por atividades de terceiros. O que leva o Primeiro-Ministro
a fazer esta leitura é o facto de o Conselho Consultivo da PGR considerar que
ao “onerar os familiares do titular e as empresas por aqueles constituídas com
o pesado fardo desses impedimentos, o legislador não curou de assegurar, de
modo direto e cabal, mas apenas por modo ínvio e desnecessário, os fins que
pretendia atingir”. Aquele órgão da PGR diz ainda que “o meio escolhido é excessivo e irrazoável, em função dos fins que
se propunha conseguir”. No parecer, citado pelo Primeiro-Ministro e de cujo
teor se apropria, os membros do Conselho Consultivo acrescentam:
“Os custos que o estabelecimento
desses impedimentos, na forma tão ampla e irrestrita como foram recortados,
são demasiado onerosos ou
excessivos para as empresas afetadas, nos seus interesses económicos,
por esses específicos impedimentos”.
Entretanto, o excerto disponibilizado pelo Primeiro-Ministro não refere claramente
que seria “inconstitucional” a interpretação literal da lei, o que se dá a
entender que António Costa faz uma interpretação pessoal do parecer.
Na mesma nota o Primeiro-Ministro entende que “a sanção prevista na lei
para este tipo de casos (demissão) é política e objetiva”, mas que “não é de aplicação automática, carecendo a
sua aplicação de um procedimento que assegure, pelo menos, os direitos de
audiência e de contraditório”. Aqui, centra-se nas conclusões do parecer que
vê a questão “pela natureza política e tendencialmente objetiva da
responsabilidade incorrida pelos titulares de cargos políticos pelas infrações
ao regime legal de impedimentos” e pela
não automaticidade das sanções, já que a sua aplicação pressupõe a
audiência do agente, de modo a cumprir as exigências do direito de defesa
inerente a qualquer regime sancionatório, acolhidas pela Lei Fundamental.
***
A ATI (Associação Transparência e
Integridade), defendendo a necessidade
da publicação integral do parecer, enviou uma carta a António Costa, ainda no dia 20, a pedir que “de
imediato, publique na íntegra, na página web
do Governo, o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da
República”. A este respeito, João Paulo Batalha, presidente da associação, recorda
que o próprio Primeiro-Ministro, ao pedir o parecer a 31 de julho, “acabou por interromper uma discussão pública
que estava em curso sobre as regras de incompatibilidades e, mais importante,
sobre a eficácia com que são aplicados os mecanismos de controlo aos titulares
de cargos públicos”. Por isso, entende, “agora que o parecer já chegou, é imprescindível e urgente que seja
publicado, para que o país possa retomar esta discussão pública essencial para
a nossa democracia”.
A associação refere que o Governo tem direito a analisar o documento,
mas “esta não é uma questão que diga
apenas respeito ao Governo e, como tal, a opinião do Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República é de relevante interesse público e deve ser levado ao conhecimento de todos os
portugueses, para que cada um o analise e forme a sua opinião”.
Obviamente que, se o Primeiro-Ministro ia homologar o parecer, este teria
de ser publicado para ter eficácia, pelo que embora a razão assista à ATI no
teor do que reivindica, tal reivindicação não era necessária, a não ser que o
Governo estivesse a dilatar no tempo a referida publicação.
***
Porém, o parecer, na floresta de explicações sobre a conformação da lei com
a Constituição e sobre a interpretação das leis, nos termos do art.º 9.º do
Código Civil – citando constitucionalistas e outros juristas de renome – parece
iludir algo de fundamental:
Estabelece o predito artigo do Código Civil:
1. A
interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir
dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do
sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as
condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não
pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que
não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente
expresso.
3. Na
fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador
consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em
termos adequados.
Quer dizer:
não se pode dizer superficialmente que a lei não pode interpretar-se à letra,
mas que a sua interpretação não pode cingir-se a ela, ou seja, não se cingindo,
a ela não a deve contrariar. Portanto, há que ter em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias
da elaboração e as condições do tempo de
aplicação. E o intérprete “presumirá
que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu
pensamento em termos adequados”.
Assim, parece
que o Conselho, sob o pretexto que a lei foi revogada e substituída por outra
que “entra
em vigor no primeiro dia da XIV Legislatura da Assembleia da República”, terá dado ao Governo um bónus de interpretação
conveniente. Aliás, o intérprete da lei, aquando da sua aplicação em casos concretos,
é o tribunal; e a interpretação autêntica em termos gerais cabe ao legislador,
ou seja, no caso vertente, ao Parlamento. Porque não chamado este a pronunciar-se?
Embora não o diga claramente, parece que o Conselho dá a
entender que a conformação da lei com a Constituição não é suficiente em termos
da proporcionalidade. Por um lado, a Constituição estabelece que o legislador ordinário
deve definir as condições em que os titulares de órgãos de soberania devem
exercer as suas funções, não podendo haver na lei alguns excessos (vd art.º 18.º), e, por outro lado, reconhece a legitimidade da iniciativa
privada (vd art.º 61.º), que a lei pode estar a coarctar. Sendo assim, só restava à
PGR (Procuradora-Geral da República) solicitar ao Tribunal Constitucional
a fiscalização da constitucionalidade da lei em causa.
Assim, só pode concluir-se que o Conselho deu um bónus de
interpretação favorável ao Governo em véspera de eleições – quando noutras ocasiões
o poder judiciário parece ter uma agenda política própria, contrariante da do
Governo – e o Primeiro-Ministro foi rápido a homologar o parecer por conveniência
apolítica, embora sustentada num parecer jurídico de entidade oficial.
Gostava que o parecer fosse mais claro e mais sustentado. Mas,
para isso, teria o Conselho de descer ao concreto, como faz um tribunal.
2019.09.21
– Louro de Carvalho
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