sábado, 21 de setembro de 2019

Dizem que parecer da PGR sobre ‘familygate’ agrada ao Governo


Referem os diversos órgãos de comunicação social que o parecer Conselho Consultivo da PGR (Procuradoria-Geral da República) sobre os contratos com familiares de membros do Governo é favorável à opinião em tempo expressa pelo Primeiro-Ministro e pelo número dois do Governo Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros, e que ministros não têm de se demitir. É certo que alguns falam em favorabilidade aparente, mas deixando pairar a dúvida sobre tal aparência.   
O parecer da PGR sobre contratação pública com empresas de familiares – dizem – é favorável ao Governo, pois entende que não pode ser feita uma interpretação “estritamente literal” da lei, tal como tinham defendido António Costa e Santos Silva, mas que devem ser tidos em conta outros critérios como a “vontade do legislador”. Apesar de a lei prever a perda de mandato quando um familiar direto faz contratos com o Estado, o parecer diz que a demissão não deve “ser automática” e deve aplicar-se apenas quando são os próprios governantes a deter pelo menos 10% de uma determinada empresa.
A questão foi levantada pelas críticas à permanência do Secretário de Estado da Proteção Civil, José Artur Neves, que o Primeiro-Ministro segurou, apesar da demissão do seu chefe de gabinete e do seu adjunto, mas que, entretanto, se demitiu por ter sido constituído arguido, e de ministros, como Francisca Van Dunem, Pedro Nuno Santos ou Graça Fonseca. Com efeito, os governantes mencionados têm familiares que alegadamente assinaram contratos com o Estado. E tanto Santos Silva como António Costa defenderam que não podia ser feita uma interpretação literal da lei. Agora, o Primeiro-Ministro entende que o parecer da PGR lhe dá inteira razão.
O parecer foi parcialmente revelado pelo Primeiro-Ministro pouco depois das 18 horas do dia 20, publicado no site da PGR cerca das 19 horas e, segundo informação do gabinete do Primeiro-Ministro, vai ser publicado nas próximas horas no Diário da República.
Questionado sobre o assunto, António Costa disse que não faria qualquer comentário, uma vez que o parecer iria ser divulgado em breve.
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Ora, para se verificar da legitimidade do agrado do Chefe do Governo, há que partir do teor das questões que Santos Silva formulou ao Conselho Consultivo da PGR, a 31 de julho, que são:
1. “Como deve ser interpretado o impedimento estabelecido pelo art.º 8.° da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, em termos conformes à Constituição? Uma interpretação exclusivamente literal do referido preceito, que conduzisse à aplicação de uma sanção por factos não imputáveis ao titular de cargo político ou alto cargo público e fora do seu controlo, não buliria com os ditames de proporcionalidade decorrentes do n.º 2 do art.º 18.° da Constituição?”.
2. “Tendo em conta o entendimento do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, expresso no Parecer n.º 35/92, deve entender-se que a aplicação das sanções previstas no n.º 3 do art.º 10.° da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, é automática ou, pelo contrário, carece de uma avaliação casuística quanto ao eventual envolvimento e censurabilidade do titular de cargo político ou alto cargo público em questão?”.
Em primeiro lugar, deve ter-se em conta que o Conselho não se pronuncia sobre os casos concretos que o Governo tinha em mente quando formulou as preditas questões. Portanto, em caso de suspeita sobre eventual atuação de governante, o MP (Ministério Público) continuará a investigação, como acontece no caso do demitido Secretário de Estado da Proteção Civil, em que pode haver influência direta do então governante nos negócios em causa, segundo adiantam alguns jornais. E parece que o Primeiro-Ministro queria que a PGR analisasse o caso concreto do então Secretário de Estado da Proteção Civil e do filho deste, mas os conselheiros recusaram fazê-lo porque não só “este Corpo Consultivo nunca seria a sede própria para apurar e recolher matéria de facto, restringidos que se mostram os seus poderes exclusivamente” a “matéria de direito”, como o caso de Artur Neves foi referido de forma imprecisa por parte do Governo.
Não obstante, em face do parecer em causa, pode concluir-se que todos os ministros sobre os quais António Costa tinha dúvidas, estão a salvo, pois os contratos ganhos pelos familiares dos ministros Francisca Van Dunem, da Justiça, Pedro Nuno Santos, das Infraestruturas, e Graça Fonseca, da Cultura, estavam “fora da esfera de ação do governante e em que os subsequentes contratos foram celebrados no termo de um concurso, após o escrupuloso cumprimento de todas as formalidades aplicáveis”, prescritas pelo CCP (Código dos Contratos Públicos). Já no caso de Artur Neves o MP está a investigar o caso do ponto de vista criminal e, do ponto de vista teórico, os procuradores do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal) poderão retirar uma interpretação diferente. Isto é, não são obrigados a seguir a interpretação do Conselho Consultivo da PGR.
Assim, e em abstrato, os conselheiros distinguem duas situações: “quando está em causa o próprio titular ou a empresa que detém em percentagem superior a 10%”; e “quando o impedimento se reporta às pessoas com quem mantém relações familiares ou de vivência em comum e às respetivas empresas”.
No primeiro caso, ou seja quando a empresa é detida pelo governante em pelo menos 10%, “o impedimento deve ser interpretado e aplicado nos termos que constam da letra da lei”. Assim, por exemplo, se Pedro Nuno Santos tivesse uma participação superior nessa empresa (e não o pai) ou José Artur Neves o mesmo grau de participação na empresa (e não o filho), tinham de ser demitidos, o que não é o caso.
No segundo caso, ou seja, quando são os familiares que detêm pelo menos aquela percentagem de participação na empresa que fez contratos com o Estado, a demissão só deve ser imediata caso o governante tenha influência direta no ajuste direto ou tutele diretamente o órgão que o gere. “Existe fundamento para uma redução teleológica do disposto no n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, no sentido de que, em vez de se reportar indiscriminadamente a qualquer concurso público, deve referir-se apenas aos que foram abertos ou correm os seus trâmites no órgão do Estado ou do ente público em que o titular exerce funções ou sobre os quais exerce poderes de superintendência ou tutela de mérito” – diz o parecer.
Em nota enviada à comunicação social, António Costa faz uma leitura do parecer em que entende que seria “inconstitucional” onerar um governante por atividades de terceiros. O que leva o Primeiro-Ministro a fazer esta leitura é o facto de o Conselho Consultivo da PGR considerar que ao “onerar os familiares do titular e as empresas por aqueles constituídas com o pesado fardo desses impedimentos, o legislador não curou de assegurar, de modo direto e cabal, mas apenas por modo ínvio e desnecessário, os fins que pretendia atingir”. Aquele órgão da PGR diz ainda que “o meio escolhido é excessivo e irrazoável, em função dos fins que se propunha conseguir”. No parecer, citado pelo Primeiro-Ministro e de cujo teor se apropria, os membros do Conselho Consultivo acrescentam:
Os custos que o estabelecimento desses impedimentos, na forma tão ampla e irrestrita como foram recortados, são demasiado onerosos ou excessivos para as empresas afetadas, nos seus interesses económicos, por esses específicos impedimentos”.
Entretanto, o excerto disponibilizado pelo Primeiro-Ministro não refere claramente que seria “inconstitucional” a interpretação literal da lei, o que se dá a entender que António Costa faz uma interpretação pessoal do parecer.
Na mesma nota o Primeiro-Ministro entende que “a sanção prevista na lei para este tipo de casos (demissão) é política e objetiva”, mas que “não é de aplicação automática, carecendo a sua aplicação de um procedimento que assegure, pelo menos, os direitos de audiência e de contraditório”. Aqui, centra-se nas conclusões do parecer que vê a questão “pela natureza política e tendencialmente objetiva da responsabilidade incorrida pelos titulares de cargos políticos pelas infrações ao regime legal de impedimentos” e pela não automaticidade das sanções, já que a sua aplicação pressupõe a audiência do agente, de modo a cumprir as exigências do direito de defesa inerente a qualquer regime sancionatório, acolhidas pela Lei Fundamental. 
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A ATI (Associação Transparência e Integridade), defendendo a necessidade da publicação integral do parecer, enviou uma carta a António Costa, ainda no dia 20, a pedir que “de imediato, publique na íntegra, na página web do Governo, o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República”. A este respeito, João Paulo Batalha, presidente da associação, recorda que o próprio Primeiro-Ministro, ao pedir o parecer a 31 de julho, “acabou por interromper uma discussão pública que estava em curso sobre as regras de incompatibilidades e, mais importante, sobre a eficácia com que são aplicados os mecanismos de controlo aos titulares de cargos públicos”. Por isso, entende, “agora que o parecer já chegou, é imprescindível e urgente que seja publicado, para que o país possa retomar esta discussão pública essencial para a nossa democracia”.
A associação refere que o Governo tem direito a analisar o documento, mas “esta não é uma questão que diga apenas respeito ao Governo e, como tal, a opinião do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República é de relevante interesse público e deve ser levado ao conhecimento de todos os portugueses, para que cada um o analise e forme a sua opinião”.
Obviamente que, se o Primeiro-Ministro ia homologar o parecer, este teria de ser publicado para ter eficácia, pelo que embora a razão assista à ATI no teor do que reivindica, tal reivindicação não era necessária, a não ser que o Governo estivesse a dilatar no tempo a referida publicação.
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Porém, o parecer, na floresta de explicações sobre a conformação da lei com a Constituição e sobre a interpretação das leis, nos termos do art.º 9.º do Código Civil – citando constitucionalistas e outros juristas de renome – parece iludir algo de fundamental:
Estabelece o predito artigo do Código Civil:
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.   
Quer dizer: não se pode dizer superficialmente que a lei não pode interpretar-se à letra, mas que a sua interpretação não pode cingir-se a ela, ou seja, não se cingindo, a ela não a deve contrariar. Portanto, há que ter em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias da elaboração e as condições do tempo de aplicação. E o intérprete “presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Assim, parece que o Conselho, sob o pretexto que a lei foi revogada e substituída por outra que “entra em vigor no primeiro dia da XIV Legislatura da Assembleia da República”, terá dado ao Governo um bónus de interpretação conveniente. Aliás, o intérprete da lei, aquando da sua aplicação em casos concretos, é o tribunal; e a interpretação autêntica em termos gerais cabe ao legislador, ou seja, no caso vertente, ao Parlamento. Porque não chamado este a pronunciar-se?
Embora não o diga claramente, parece que o Conselho dá a entender que a conformação da lei com a Constituição não é suficiente em termos da proporcionalidade. Por um lado, a Constituição estabelece que o legislador ordinário deve definir as condições em que os titulares de órgãos de soberania devem exercer as suas funções, não podendo haver na lei alguns excessos (vd art.º 18.º), e, por outro lado, reconhece a legitimidade da iniciativa privada (vd art.º 61.º), que a lei pode estar a coarctar. Sendo assim, só restava à PGR (Procuradora-Geral da República) solicitar ao Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade da lei em causa.
Assim, só pode concluir-se que o Conselho deu um bónus de interpretação favorável ao Governo em véspera de eleições – quando noutras ocasiões o poder judiciário parece ter uma agenda política própria, contrariante da do Governo – e o Primeiro-Ministro foi rápido a homologar o parecer por conveniência apolítica, embora sustentada num parecer jurídico de entidade oficial.
Gostava que o parecer fosse mais claro e mais sustentado. Mas, para isso, teria o Conselho de descer ao concreto, como faz um tribunal.
2019.09.21 – Louro de Carvalho

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