Os meios de
comunicação social têm veiculado a informação de que o Ministério da Saúde (MS) estuda a introdução dum período de fidelização de
médicos no SNS: um médico recém-graduado obrigar-se-ia a exercer no SNS por um determinado
período antes de transitar para o setor privado ou acumular com ele. A pari, o MS estuda a reintrodução dos
contratos de exclusividade com o SNS, regime terminado em 2009.
São três as
justificações invocadas: necessidade compensar o Estado pela formação médica (6 anos de
curso geral de Medicina mais 4 a 7 anos, consoante a especialidade, de
internato); de obviar ao aumento da procura
de cuidados de saúde (fenómeno que se tem intensificado com o envelhecimento
da população, que traz doenças crónicas e comorbilidades); e de compensar a escassez de médicos no SNS.
Mário Amorim Lopes, membro do Parlamento da Saúde, escreveu um ensaio
no Observador, de que se colhem, de forma crítica, os elementos mais
pertinentes.
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São
recorrentes as notícias da falta de médicos ou de equipamentos no SNS
ou zonas do país (sobretudo em determinadas épocas), às vezes com consequências gravosas. O problema
parece ser corroborado pelas enormes listas de espera verificadas em algumas
zonas. Nenhum destes problemas é novo, mas há a perceção generalizada do seu
agravamento nos últimos tempos. De facto, tem aumentado o número de pessoas em
lista de espera e o tempo médio de espera. Segundo o portal da Saúde, em 2015,
estavam 191.874 pessoas em lista de espera, sendo que, em 2018, o número
aumentou para 234.726, observando-se assim um aumento de 22% nos inscritos.
Isto significa que estão a entrar mais pacientes do que os que estão a ser
sujeitos a cirurgia, pelo que o problema tenderá a agravar-se ainda mais.
O aumento da
procura justifica só parte do fenómeno, não totalmente. A redução para as 35
horas de trabalho semanais, sem aumento de profissionais, teve impacto substancial
no SNS. A redução afetou sobretudo os enfermeiros e outras categorias
profissionais (técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, assistentes técnicos,
entre outros) e impactou
todas as valências de centros de saúde e hospitais. Por exemplo, os blocos
operatórios têm menos uma hora de disponibilidade por dia, pelo que serão
realizadas menos cirurgias (a equipa cirúrgica tem de ter enfermeiros presentes). Embora a medida não tenha afetado diretamente a
maior parte da classe médica, esta sentiu os efeitos da redução. E o reforço de
enfermeiros, entretanto, contratados não compensou a redução em quase 15% no horário
de trabalho dos profissionais. Convertendo o “número de cabeças” em ETI (equivalentes
a tempo integral),
verifica-se a existência dum défice de cerca de 1.517 enfermeiros em relação a
2015. Em 2015, existiam 38.472 enfermeiros no SNS com contratos de 40 horas, o
equivalente a cerca de 370 milhões de horas de trabalho (admitindo 5
dias por semana e 48 semanas de trabalho por ano). Em 2018, existiam 42.451 enfermeiros, mas menos 1 hora de trabalho por
dia faz com que, no final do ano, sejam prestadas só 356 milhões e 588 mil
horas de trabalho, menos 13 milhões de horas de enfermagem por ano. Ou seja,
mesmo com a entrada de 3.979 enfermeiros, ainda falta o equivalente a 1.517
enfermeiros em regime de 35 horas ou 1.327 em regime de 40 horas.
Da análise
destas notícias e destes indicadores pode-se concluir-se que a situação do SNS
é periclitante e que a falta de meios humanos e físicos tem impactado o seu
desempenho.
E uma das
principais queixas do MS é a transição para o setor privado, que torna mais
difícil a contratação e a retenção de médicos. Pese embora o número de médicos
em Portugal estar em linha com a média da OCDE e terem sido contratados mais
médicos para o SNS, o Governo aponta a incapacidade de reter os médicos como um
foco de problemas.
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A par das
queixas de falta de meios no SNS, emergem as notícias da incapacidade do SNS em preencher
vagas de especialidade. Assim, no concurso da 2.ª época de 2018, 45%
das vagas ficaram por preencher. No caso específico de jovens médicos de
família ficaram por preencher quase 86 vagas, especialmente na zona de
Lisboa e Vale do Tejo e Alentejo.
De 1991 a
2018, o número de médicos quase duplicou, passando de 28.326 para 52.657, segundo
os dados do INE/PORDATA. Por outro lado, nestes últimos 30 anos, deu-se a
feminização da classe médica. Se, em 1991, as mulheres correspondiam a 40% da
força de trabalho médica, em 2018 compõem cerca de 55%. Mas estas informações
não permitem concluir se temos médicos a mais ou a menos. Sabe-se que o
envelhecimento da população leva a um aumento da procura por cuidados de saúde,
aumento que só pode ser suprido com recurso a mais médicos, exceto, se ocorrer mudança
significativa que permita aumentar drasticamente a produtividade, o que não é
provável no setor da saúde.
Os dados de
Portugal são também comparados com os de outros países, em particular com os da
OCDE. Segundo o indicador “Número de
médicos por cada mil habitantes”, dados de 2015, Portugal regista 4,26
médicos por mil habitantes, acima da média da OCDE, que se cifra nos 3,2
médicos por mil habitantes. Porém, uma nota explicativa refere que o número de
médicos em Portugal está sobreavaliado em cerca de 30%. Por isso, a OCDE não nos
reporta dados no indicador “Médicos no ativo”,
em contracorrente com os outros países, reportando apenas “Médicos com licença para praticar”. Descontando os ditos 30%, o
número de médicos está em linha com os restantes países. No entanto, esta
informação não pode ser analisada de forma isolada. O modelo organizativo e de
prestação de cuidados do sistema de saúde tem também influência no número de
profissionais necessários. Por exemplo, sistemas de saúde com mais enfermeiros
têm menor rácio de médicos. Ao invés, países como a Grécia ou Portugal, com um
rácio elevado de médicos por enfermeiro, tendem a necessitar de mais médicos.
Focando-nos
no SNS, observamos evolução similar em termos de número de médicos. No total
havia, em 2018, cerca de 27.781 médicos no SNS, sendo que os médicos internos (ainda a
tirar a especialidade)
representam cerca de 32% da força de trabalho. Do total de 18.775 médicos
especialistas, distribuídos entre cuidados primários e secundários, apenas
5.587 estão em regime de exclusividade no setor público. Os restantes médicos
têm a liberdade para fazerem escalas de urgência noutros hospitais ou para
exercerem em acumulação no setor privado.
Esta é uma
das principais queixas do MS: a transição para o setor privado torna mais
difícil a contratação e a retenção de médicos. Embora o número de médicos em Portugal
esteja em linha com a média da OCDE e tenham sido contratados mais médicos para
o SNS, o Governo aponta a incapacidade de reter os médicos como um
foco de problemas no SNS.
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Outro dos
argumentos à volta do qual gira a discussão da obrigatoriedade de exercer no
SNS é o elevado custo para o Estado. A suportar a tese do enorme
investimento do Estado na formação surgem contas rápidas que dão um valor entre
300 e 500 mil euros por médico – cerca de 90 mil euros seriam para a formação
base (os 6 anos de
curso) e os restantes para os anos de
internato médico (formação de especialidade). Este valor a multiplicar por cerca de 1700 internos
(que todos os
anos terminam a especialidade) daria
cerca de 850 milhões de euros/ano. Ora, segundo alguns analistas, este
investimento anual reverte para o setor privado. Trata-se de valores
indicativos, pois não há estudos oficiais, exceto um da Universidade Nova de
Lisboa, já ultrapassado, que compara o custo interno de cada curso. Segundo
esse estudo, medicina é um dos cursos mais caros, com cerca de 12 mil euros por
ano, por aluno. Direito é dos mais baratos, ficando entre 4 e 5 mil euros
aluno/ano. Em média, um curso do ensino superior fica por 6.800
euros/ano/aluno. Tendo em conta que o curso demora cerca de 6 anos, seriam 72
mil euros só de formação geral. Mas as contas mais difíceis de fazer surgem com
o internato de especialidade. As contas da comunicação social multiplicam o
salário do interno (cerca de 1900€ brutos) pelo número de anos da especialidade, que varia entre 4 e 7. Ou seja, no
caso de uma especialidade de 4 anos, o interno custaria uns adicionais 106 mil
euros ao Estado, totalizando cerca de 180 mil euros de formação. No caso de 7
anos, haveria um custo de 258 mil euros. A estes valores acresce o custo de
oportunidade da indisponibilidade do médico especialista, que tem de alocar
parte do tempo à supervisão – valor difícil de apurar. Em ambos os casos, os
valores são inferiores aos 300 mil ou 500 mil euros. Mesmo que o custo de
supervisão seja considerável, dificilmente fará duplicar o custo de 180 mil
euros para uma especialidade de 4 anos.
E o
pressuposto de que os internos são um custo é equívoco e até errado. Estão ainda
em formação e não exercem especialidade de forma independente, mas muitos internos
trabalham continuamente (embora sob supervisão), conduzindo consultas e diagnósticos; e tendem a fazer bastantes mais
escalas de urgência. Ou seja, estes médicos estão a produzir, pelo que o
salário corresponde a esse esforço. Uma breve passagem por qualquer hospital confirmá-lo-á:
casos há em que os internos são o garante do funcionamento do hospital e sem
eles não haveria escalas suficientes. Seja como for, este é o terceiro grande
argumento: a formação médica representa elevado investimento para o Estado,
pelo que há de haver forma de retribuição por esse esforço.
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A introdução
dum período de obrigatoriedade de permanência no SNS decorre dos três
pressupostos acima referenciados.
A obrigatoriedade
de permanecer ao serviço do Estado existe nalguns ramos das Forças
Armadas. Por exemplo, um piloto aviador que tire o brevet na Força Aérea está obrigado a ficar lá durante um dado
número de anos. Este modelo é também usado nas “Big 5” da consultadoria e em
várias outras empresas. Por exemplo, é oferecido ao trabalhador a possibilidade
de realizar um MBA numa das melhores universidades do mundo com um custo
assumido pela empresa, mas em troca, o trabalhador terá de permanecer na
empresa 2 ou 3 anos (ou pagar o valor do MBA).
É certo que,
no caso dos pilotos aviadores há cursos particulares, ninguém sendo obrigado a
ingressar na Força Aérea para poder ser piloto (fazem-no para não pagarem o brevet). E, no caso das consultoras, o processo é voluntário
(ninguém é obrigado
a fazer a formação executiva para continuar na empresa). O setor da saúde tem diferenças substantivas. Não
existem cursos de medicina privados, pelo que qualquer futuro médico terá de
ingressar numa universidade pública para realizar os 6 anos obrigatórios. O
acesso à especialidade é feito sobretudo no setor público e nas instituições
públicas, pelo que também não há grande opção por parte dos internos. Então, os
médicos seriam obrigados a exercer no setor público apesar de não ser essa uma
escolha voluntária. E, embora não seja obrigatório ter uma especialidade
médica, não a ter é uma enorme limitação ao exercício da atividade, pelo que
não se trata de apenas mais uma pós-graduação adicional.
Ora, obrigar
médicos a exercer no setor público não tem precedente em países europeus (teríamos de
recuar a 1954, quando a Noruega implementou o programa de retenção ou à URSS). Isso ocorre na Bolívia, Equador, Etiópia, Gana,
Quénia, Lesoto, Myanmar, Tailândia ou Venezuela, países com elevadíssimas taxas
de emigração e com enorme dificuldade em reter profissionais de saúde no país, sobretudo
nas zonas rurais.
Talvez o
mais relevante argumento seja o pressuposto em que assenta a obrigatoriedade. A
sociedade e os contribuintes mobilizaram-se para prover à educação superior da
população, confiando ao Estado a sua execução, pois um curso superior melhora as
competências do indivíduo e gera externalidades positivas para toda a
sociedade. Ou seja, sociedades mais instruídas são sociedades mais prósperas. E
o objetivo é beneficiar a sociedade como um todo.
O corolário
deste pressuposto, feito por determinados setores políticos, incluindo o Governo,
é que existe uma “dívida” para com o Estado e não para com a sociedade no seu
todo, que extravasa o setor público. Esta visão ignora que o setor privado e o social
também fazem parte da sociedade e a compõem. Com efeito, o setor privado é o
financiador do Estado, que, por sua vez, financia o ensino superior. Ora não se
pode dizer que os cidadãos só teriam direito a beneficiar desse investimento
caso recorram ao setor público, isto é, ao SNS. A existir, a dívida será para
com toda a sociedade e sobretudo para com todos os contribuintes, o que
obviamente pressupõe uma visão holística da sociedade que inclua todos os
setores e não uma visão estatocêntrica, constrita ao setor público.
Acresce um
outro fator específico ao caso dos médicos: a assimetria para com outras
profissões. É que nenhuma outra (economistas, psicólogos,
engenheiros, arquitetos, juristas, etc.) é obrigada
a trabalhar para o Estado, pese embora a sua formação ser financiada pelos
contribuintes, conquanto realizada em universidades públicas. Presume-se que
essa formação já beneficia a sociedade. Os médicos não são exceção e o
entendimento lógico seria o mesmo. O contributo dos médicos é para a sociedade,
uma sociedade mais saudável, com menor carga de doença, com um melhor estado de
saúde, estejam eles a atuar no setor público ou não.
Importa
ainda refletir sobre a reposição dos contratos de exclusividade.
Não fica claro como tal solução resolveria o problema de falta de recursos no
SNS. Os médicos têm de cumprir as horas semanais estipuladas no contrato, pelo
que qualquer prestação adicional no privado sai fora do horário laboral no SNS.
Como não é possível celebrar contratos de 50 ou 60 horas, o regime de
exclusividade não garantiria a prestação adicional de cuidados. De facto, a
medida só seria eficaz se admitirmos que os médicos não prestam as 35/40 horas
no setor público, usando parte desse tempo para exercerem no setor privado. Ora,
isso configura uma ilicitude; e a solução é introduzir mecanismos que permitam agir
em caso de incumprimento.
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É possível reter
médicos e enfermeiros no SNS de forma voluntária, sem recurso a regimes de permanência obrigatória,
políticas pouco compatíveis com o espírito das democracias liberais.
A
Administração Pública tem vindo a inspirar-se nas práticas do setor privado, e,
neste caso, também o pode fazer. Uma empresa, deparando-se com baixa taxa de
retenção e incapacidade de contratar ou fixar recursos humanos, recorre a um de
dois mecanismos ou aos dois ao mesmo tempo: revisão dos incentivos
financeiros; e melhoria das condições laborais. E o Estado pode equacionar
estes instrumentos para mitigar o problema, em vez de usar abordagens coercivas.
Isso implica rever os salários, alinhando-os com os do setor privado, bem como melhorar
as condições de trabalho, que, tal como têm apontado a Ordem dos Médicos e a
Ordem dos Enfermeiros, levam repetidamente ao burnout dos
profissionais de saúde. E esta seria uma boa oportunidade para alinhar parte da
remuneração dos profissionais à sua produtividade. É o modelo de Pay
for Performance em prática nas Unidades de Saúde Familiar do tipo B, que permite
que equipas mais produtivas recebam financiamento maior. É, aliás, o
pressuposto do médico que pratica no privado: fá-lo porque a remuneração está associada
à produtividade, o que é um incentivo a trabalhar mais.
Outra das
queixas recorrentes dos profissionais é a inexistência duma carreira médica.
Embora a carreira médica exista estatutariamente, com diferentes níveis salariais,
a progressão esteve congelada muitos anos e a diferenciação entre os vários
níveis, descontando a diferença salarial, é baixa. Adicionalmente, a falta
de autonomia dos serviços (para lá da falta de autonomia da
própria gestão hospitalar) acaba por
desmotivar bastantes profissionais. A introdução de novas práticas clínicas,
terapêuticas inovadoras ou projetos experimentais, como hospitais de dia, está
sempre sujeita a enormes condicionalismos das administrações.
O SNS pode
conceder tempo para investigação clínica, permitindo maior articulação entre a
ciência e o exercício da atividade. Muitos médicos, mesmo os não docentes no
ensino superior, cultivam atividade de investigação, sendo esse um dos motivos
para preferirem hospitais-universitários públicos, pois é onde ainda se conduz
uma parte substancial da investigação.
Outra
solução seria alargar a formação de medicina ao ensino privado, bem como
facilitar a abertura de vagas de especialidade em hospitais-universitários
privados, reforçando assim a capacidade formativa na especialização. Efetivamente,
o grande entrave à formação médica não é o acesso à universidade, mas a falta
de capacidade formativa nas especializações médicas, sendo que há cada vez mais
médicos sem especialidade, os chamados médicos indiferenciados. Um aumento
dessa capacidade formativa permitiria formar mais médicos especialistas e,
desta forma, reforçar o mercado de trabalho tanto para o setor público como
para o privado e social sem obrigar os profissionais a exercerem num dado
local.
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Em suma, o
SNS está em turbulência, em parte por falta de recursos humanos. Estão ainda em
falta cerca de 1500 enfermeiros. O número de médicos aumentou nos últimos anos,
mas ainda há dificuldades em fixar médicos em algumas especialidades em
diversas unidades do SNS, sobretudo no interior. Depois, os serviços não agem
com autonomia face às administrações.
O custo de formação
do médico, que circula na comunicação social, está inflacionado, pois os
internos, não sendo especialistas, exercem medicina e o salário é retribuição
pelo trabalho.
Obrigar
médicos a exercer no público não tem precedente em países europeus, contraria o
espírito da democracia liberal e criaria assimetria com outras profissões que,
financiadas pelos contribuintes, não estão sujeitas a isso. Porém, cada país
tem obrigação de prover às suas necessidades tendo em conta os seus recursos. Ademais,
sendo a formação um ónus público, é justo que o público seja compensado,
sobretudo se há necessidade. O mesmo se deve dizer das profissões acima
referidas, que devem servir o setor público se e enquanto carenciado.
Depois, o
serviço no setor público, que deve ser mais bem pago e oferecer melhores condições
de trabalho, serve de contacto para entabular relações e potencialmente ganhar clientes
para o privado ou para o estabelecimento por conta própria.
Há que mudar
muito, sem deixar tudo na mesma!
2019 – Louro
de Carvalho
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