terça-feira, 3 de setembro de 2019

Devem ou não os médicos ser obrigados a exercer no SNS?


Os meios de comunicação social têm veiculado a informação de que o Ministério da Saúde (MS) estuda a introdução dum período de fidelização de médicos no SNS: um médico recém-graduado obrigar-se-ia a exercer no SNS por um determinado período antes de transitar para o setor privado ou acumular com ele. A pari, o MS estuda a reintrodução dos contratos de exclusividade com o SNS, regime terminado em 2009.
São três as justificações invocadas: necessidade compensar o Estado pela formação médica (6 anos de curso geral de Medicina mais 4 a 7 anos, consoante a especialidade, de internato); de obviar ao aumento da procura de cuidados de saúde (fenómeno que se tem intensificado com o envelhecimento da população, que traz doenças crónicas e comorbilidades); e de compensar a escassez de médicos no SNS.
Mário Amorim Lopes, membro do Parlamento da Saúde, escreveu um ensaio no Observador, de que se colhem, de forma crítica, os elementos mais pertinentes.
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São recorrentes as notícias da falta de médicos ou de equipamentos no SNS ou zonas do país (sobretudo em determinadas épocas), às vezes com consequências gravosas. O problema parece ser corroborado pelas enormes listas de espera verificadas em algumas zonas. Nenhum destes problemas é novo, mas há a perceção generalizada do seu agravamento nos últimos tempos. De facto, tem aumentado o número de pessoas em lista de espera e o tempo médio de espera. Segundo o portal da Saúde, em 2015, estavam 191.874 pessoas em lista de espera, sendo que, em 2018, o número aumentou para 234.726, observando-se assim um aumento de 22% nos inscritos. Isto significa que estão a entrar mais pacientes do que os que estão a ser sujeitos a cirurgia, pelo que o problema tenderá a agravar-se ainda mais.
O aumento da procura justifica só parte do fenómeno, não totalmente. A redução para as 35 horas de trabalho semanais, sem aumento de profissionais, teve impacto substancial no SNS. A redução afetou sobretudo os enfermeiros e outras categorias profissionais (técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, assistentes técnicos, entre outros) e impactou todas as valências de centros de saúde e hospitais. Por exemplo, os blocos operatórios têm menos uma hora de disponibilidade por dia, pelo que serão realizadas menos cirurgias (a equipa cirúrgica tem de ter enfermeiros presentes). Embora a medida não tenha afetado diretamente a maior parte da classe médica, esta sentiu os efeitos da redução. E o reforço de enfermeiros, entretanto, contratados não compensou a redução em quase 15% no horário de trabalho dos profissionais. Convertendo o “número de cabeças” em ETI (equivalentes a tempo integral), verifica-se a existência dum défice de cerca de 1.517 enfermeiros em relação a 2015. Em 2015, existiam 38.472 enfermeiros no SNS com contratos de 40 horas, o equivalente a cerca de 370 milhões de horas de trabalho (admitindo 5 dias por semana e 48 semanas de trabalho por ano). Em 2018, existiam 42.451 enfermeiros, mas menos 1 hora de trabalho por dia faz com que, no final do ano, sejam prestadas só 356 milhões e 588 mil horas de trabalho, menos 13 milhões de horas de enfermagem por ano. Ou seja, mesmo com a entrada de 3.979 enfermeiros, ainda falta o equivalente a 1.517 enfermeiros em regime de 35 horas ou 1.327 em regime de 40 horas.
Da análise destas notícias e destes indicadores pode-se concluir-se que a situação do SNS é periclitante e que a falta de meios humanos e físicos tem impactado o seu desempenho.
E uma das principais queixas do MS é a transição para o setor privado, que torna mais difícil a contratação e a retenção de médicos. Pese embora o número de médicos em Portugal estar em linha com a média da OCDE e terem sido contratados mais médicos para o SNS, o Governo aponta a incapacidade de reter os médicos como um foco de problemas.
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A par das queixas de falta de meios no SNS, emergem as notícias da incapacidade do SNS em preencher vagas de especialidade. Assim, no concurso da 2.ª época de 2018, 45% das vagas ficaram por preencher. No caso específico de jovens médicos de família ficaram por preencher quase 86 vagas, especialmente na zona de Lisboa e Vale do Tejo e Alentejo.
De 1991 a 2018, o número de médicos quase duplicou, passando de 28.326 para 52.657, segundo os dados do INE/PORDATA. Por outro lado, nestes últimos 30 anos, deu-se a feminização da classe médica. Se, em 1991, as mulheres correspondiam a 40% da força de trabalho médica, em 2018 compõem cerca de 55%. Mas estas informações não permitem concluir se temos médicos a mais ou a menos. Sabe-se que o envelhecimento da população leva a um aumento da procura por cuidados de saúde, aumento que só pode ser suprido com recurso a mais médicos, exceto, se ocorrer mudança significativa que permita aumentar drasticamente a produtividade, o que não é provável no setor da saúde.
Os dados de Portugal são também comparados com os de outros países, em particular com os da OCDE. Segundo o indicador “Número de médicos por cada mil habitantes”, dados de 2015, Portugal regista 4,26 médicos por mil habitantes, acima da média da OCDE, que se cifra nos 3,2 médicos por mil habitantes. Porém, uma nota explicativa refere que o número de médicos em Portugal está sobreavaliado em cerca de 30%. Por isso, a OCDE não nos reporta dados no indicador “Médicos no ativo”, em contracorrente com os outros países, reportando apenas “Médicos com licença para praticar”. Descontando os ditos 30%, o número de médicos está em linha com os restantes países. No entanto, esta informação não pode ser analisada de forma isolada. O modelo organizativo e de prestação de cuidados do sistema de saúde tem também influência no número de profissionais necessários. Por exemplo, sistemas de saúde com mais enfermeiros têm menor rácio de médicos. Ao invés, países como a Grécia ou Portugal, com um rácio elevado de médicos por enfermeiro, tendem a necessitar de mais médicos.
Focando-nos no SNS, observamos evolução similar em termos de número de médicos. No total havia, em 2018, cerca de 27.781 médicos no SNS, sendo que os médicos internos (ainda a tirar a especialidade) representam cerca de 32% da força de trabalho. Do total de 18.775 médicos especialistas, distribuídos entre cuidados primários e secundários, apenas 5.587 estão em regime de exclusividade no setor público. Os restantes médicos têm a liberdade para fazerem escalas de urgência noutros hospitais ou para exercerem em acumulação no setor privado.
Esta é uma das principais queixas do MS: a transição para o setor privado torna mais difícil a contratação e a retenção de médicos. Embora o número de médicos em Portugal esteja em linha com a média da OCDE e tenham sido contratados mais médicos para o SNS, o Governo aponta a incapacidade de reter os médicos como um foco de problemas no SNS.
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Outro dos argumentos à volta do qual gira a discussão da obrigatoriedade de exercer no SNS é o elevado custo para o Estado. A suportar a tese do enorme investimento do Estado na formação surgem contas rápidas que dão um valor entre 300 e 500 mil euros por médico – cerca de 90 mil euros seriam para a formação base (os 6 anos de curso) e os restantes para os anos de internato médico (formação de especialidade). Este valor a multiplicar por cerca de 1700 internos (que todos os anos terminam a especialidade) daria cerca de 850 milhões de euros/ano. Ora, segundo alguns analistas, este investimento anual reverte para o setor privado. Trata-se de valores indicativos, pois não há estudos oficiais, exceto um da Universidade Nova de Lisboa, já ultrapassado, que compara o custo interno de cada curso. Segundo esse estudo, medicina é um dos cursos mais caros, com cerca de 12 mil euros por ano, por aluno. Direito é dos mais baratos, ficando entre 4 e 5 mil euros aluno/ano. Em média, um curso do ensino superior fica por 6.800 euros/ano/aluno. Tendo em conta que o curso demora cerca de 6 anos, seriam 72 mil euros só de formação geral. Mas as contas mais difíceis de fazer surgem com o internato de especialidade. As contas da comunicação social multiplicam o salário do interno (cerca de 1900€ brutos) pelo número de anos da especialidade, que varia entre 4 e 7. Ou seja, no caso de uma especialidade de 4 anos, o interno custaria uns adicionais 106 mil euros ao Estado, totalizando cerca de 180 mil euros de formação. No caso de 7 anos, haveria um custo de 258 mil euros. A estes valores acresce o custo de oportunidade da indisponibilidade do médico especialista, que tem de alocar parte do tempo à supervisão – valor difícil de apurar. Em ambos os casos, os valores são inferiores aos 300 mil ou 500 mil euros. Mesmo que o custo de supervisão seja considerável, dificilmente fará duplicar o custo de 180 mil euros para uma especialidade de 4 anos.
E o pressuposto de que os internos são um custo é equívoco e até errado. Estão ainda em formação e não exercem especialidade de forma independente, mas muitos internos trabalham continuamente (embora sob supervisão), conduzindo consultas e diagnósticos; e tendem a fazer bastantes mais escalas de urgência. Ou seja, estes médicos estão a produzir, pelo que o salário corresponde a esse esforço. Uma breve passagem por qualquer hospital confirmá-lo-á: casos há em que os internos são o garante do funcionamento do hospital e sem eles não haveria escalas suficientes. Seja como for, este é o terceiro grande argumento: a formação médica representa elevado investimento para o Estado, pelo que há de haver forma de retribuição por esse esforço.
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A introdução dum período de obrigatoriedade de permanência no SNS decorre dos três pressupostos acima referenciados.
A obrigatoriedade de permanecer ao serviço do Estado existe nalguns ramos das Forças Armadas. Por exemplo, um piloto aviador que tire o brevet na Força Aérea está obrigado a ficar lá durante um dado número de anos. Este modelo é também usado nas “Big 5” da consultadoria e em várias outras empresas. Por exemplo, é oferecido ao trabalhador a possibilidade de realizar um MBA numa das melhores universidades do mundo com um custo assumido pela empresa, mas em troca, o trabalhador terá de permanecer na empresa 2 ou 3 anos (ou pagar o valor do MBA).
É certo que, no caso dos pilotos aviadores há cursos particulares, ninguém sendo obrigado a ingressar na Força Aérea para poder ser piloto (fazem-no para não pagarem o brevet). E, no caso das consultoras, o processo é voluntário (ninguém é obrigado a fazer a formação executiva para continuar na empresa). O setor da saúde tem diferenças substantivas. Não existem cursos de medicina privados, pelo que qualquer futuro médico terá de ingressar numa universidade pública para realizar os 6 anos obrigatórios. O acesso à especialidade é feito sobretudo no setor público e nas instituições públicas, pelo que também não há grande opção por parte dos internos. Então, os médicos seriam obrigados a exercer no setor público apesar de não ser essa uma escolha voluntária. E, embora não seja obrigatório ter uma especialidade médica, não a ter é uma enorme limitação ao exercício da atividade, pelo que não se trata de apenas mais uma pós-graduação adicional.
Ora, obrigar médicos a exercer no setor público não tem precedente em países europeus (teríamos de recuar a 1954, quando a Noruega implementou o programa de retenção ou à URSS). Isso ocorre na Bolívia, Equador, Etiópia, Gana, Quénia, Lesoto, Myanmar, Tailândia ou Venezuela, países com elevadíssimas taxas de emigração e com enorme dificuldade em reter profissionais de saúde no país, sobretudo nas zonas rurais.
Talvez o mais relevante argumento seja o pressuposto em que assenta a obrigatoriedade. A sociedade e os contribuintes mobilizaram-se para prover à educação superior da população, confiando ao Estado a sua execução, pois um curso superior melhora as competências do indivíduo e gera externalidades positivas para toda a sociedade. Ou seja, sociedades mais instruídas são sociedades mais prósperas. E o objetivo é beneficiar a sociedade como um todo.
O corolário deste pressuposto, feito por determinados setores políticos, incluindo o Governo, é que existe uma “dívida” para com o Estado e não para com a sociedade no seu todo, que extravasa o setor público. Esta visão ignora que o setor privado e o social também fazem parte da sociedade e a compõem. Com efeito, o setor privado é o financiador do Estado, que, por sua vez, financia o ensino superior. Ora não se pode dizer que os cidadãos só teriam direito a beneficiar desse investimento caso recorram ao setor público, isto é, ao SNS. A existir, a dívida será para com toda a sociedade e sobretudo para com todos os contribuintes, o que obviamente pressupõe uma visão holística da sociedade que inclua todos os setores e não uma visão estatocêntrica, constrita ao setor público.
Acresce um outro fator específico ao caso dos médicos: a assimetria para com outras profissões. É que nenhuma outra (economistas, psicólogos, engenheiros, arquitetos, juristas, etc.) é obrigada a trabalhar para o Estado, pese embora a sua formação ser financiada pelos contribuintes, conquanto realizada em universidades públicas. Presume-se que essa formação já beneficia a sociedade. Os médicos não são exceção e o entendimento lógico seria o mesmo. O contributo dos médicos é para a sociedade, uma sociedade mais saudável, com menor carga de doença, com um melhor estado de saúde, estejam eles a atuar no setor público ou não.
Importa ainda refletir sobre a reposição dos contratos de exclusividade. Não fica claro como tal solução resolveria o problema de falta de recursos no SNS. Os médicos têm de cumprir as horas semanais estipuladas no contrato, pelo que qualquer prestação adicional no privado sai fora do horário laboral no SNS. Como não é possível celebrar contratos de 50 ou 60 horas, o regime de exclusividade não garantiria a prestação adicional de cuidados. De facto, a medida só seria eficaz se admitirmos que os médicos não prestam as 35/40 horas no setor público, usando parte desse tempo para exercerem no setor privado. Ora, isso configura uma ilicitude; e a solução é introduzir mecanismos que permitam agir em caso de incumprimento.
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É possível reter médicos e enfermeiros no SNS de forma voluntária, sem recurso a regimes de permanência obrigatória, políticas pouco compatíveis com o espírito das democracias liberais.
A Administração Pública tem vindo a inspirar-se nas práticas do setor privado, e, neste caso, também o pode fazer. Uma empresa, deparando-se com baixa taxa de retenção e incapacidade de contratar ou fixar recursos humanos, recorre a um de dois mecanismos ou aos dois ao mesmo tempo: revisão dos incentivos financeiros; e melhoria das condições laborais. E o Estado pode equacionar estes instrumentos para mitigar o problema, em vez de usar abordagens coercivas. Isso implica rever os salários, alinhando-os com os do setor privado, bem como melhorar as condições de trabalho, que, tal como têm apontado a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros, levam repetidamente ao burnout dos profissionais de saúde. E esta seria uma boa oportunidade para alinhar parte da remuneração dos profissionais à sua produtividade. É o modelo de Pay for Performance em prática nas Unidades de Saúde Familiar do tipo B, que permite que equipas mais produtivas recebam financiamento maior. É, aliás, o pressuposto do médico que pratica no privado: fá-lo porque a remuneração está associada à produtividade, o que é um incentivo a trabalhar mais.
Outra das queixas recorrentes dos profissionais é a inexistência duma carreira médica. Embora a carreira médica exista estatutariamente, com diferentes níveis salariais, a progressão esteve congelada muitos anos e a diferenciação entre os vários níveis, descontando a diferença salarial, é baixa. Adicionalmente, a falta de autonomia dos serviços (para lá da falta de autonomia da própria gestão hospitalar) acaba por desmotivar bastantes profissionais. A introdução de novas práticas clínicas, terapêuticas inovadoras ou projetos experimentais, como hospitais de dia, está sempre sujeita a enormes condicionalismos das administrações.
O SNS pode conceder tempo para investigação clínica, permitindo maior articulação entre a ciência e o exercício da atividade. Muitos médicos, mesmo os não docentes no ensino superior, cultivam atividade de investigação, sendo esse um dos motivos para preferirem hospitais-universitários públicos, pois é onde ainda se conduz uma parte substancial da investigação.
Outra solução seria alargar a formação de medicina ao ensino privado, bem como facilitar a abertura de vagas de especialidade em hospitais-universitários privados, reforçando assim a capacidade formativa na especialização. Efetivamente, o grande entrave à formação médica não é o acesso à universidade, mas a falta de capacidade formativa nas especializações médicas, sendo que há cada vez mais médicos sem especialidade, os chamados médicos indiferenciados. Um aumento dessa capacidade formativa permitiria formar mais médicos especialistas e, desta forma, reforçar o mercado de trabalho tanto para o setor público como para o privado e social sem obrigar os profissionais a exercerem num dado local.
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Em suma, o SNS está em turbulência, em parte por falta de recursos humanos. Estão ainda em falta cerca de 1500 enfermeiros. O número de médicos aumentou nos últimos anos, mas ainda há dificuldades em fixar médicos em algumas especialidades em diversas unidades do SNS, sobretudo no interior. Depois, os serviços não agem com autonomia face às administrações.
O custo de formação do médico, que circula na comunicação social, está inflacionado, pois os internos, não sendo especialistas, exercem medicina e o salário é retribuição pelo trabalho.
Obrigar médicos a exercer no público não tem precedente em países europeus, contraria o espírito da democracia liberal e criaria assimetria com outras profissões que, financiadas pelos contribuintes, não estão sujeitas a isso. Porém, cada país tem obrigação de prover às suas necessidades tendo em conta os seus recursos. Ademais, sendo a formação um ónus público, é justo que o público seja compensado, sobretudo se há necessidade. O mesmo se deve dizer das profissões acima referidas, que devem servir o setor público se e enquanto carenciado.
Depois, o serviço no setor público, que deve ser mais bem pago e oferecer melhores condições de trabalho, serve de contacto para entabular relações e potencialmente ganhar clientes para o privado ou para o estabelecimento por conta própria.  
Há que mudar muito, sem deixar tudo na mesma!
2019 – Louro de Carvalho

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