Há uns
meses, em conversa com uns amigos, um deles atirava que o filho pródigo de que
fala o Evangelho de Lucas se decidiu a voltar para a casa paterna, não por
estar arrependido, mas porque tinha fome. Mais dizia que um professor da UCP
referira que, se um aluno em exame afirmasse que o pródigo voltara movido pelo
arrependimento, o reprovaria.
É
provável que essa promessa de reprovação será mais uma força de expressão que
uma hipótese a levar a sério.
Têm-se
feito muitos comentários a esta passagem evangélica (Lc
15,11-32) – e eu
tenho feito alguns –, mas há sempre alguma coisa que fica por dizer. E, como o
Evangelho deste 24.º domingo do Tempo Comum no Ano C, na forma longa, é todo o
capítulo 15 de Lucas, será pertinente mais um comentário.
Antes de
mais, é preciso não esquecer que o capítulo apresenta três faces da parábola da
Misericórdia divina no contexto dítono dos que se aproximavam de Jesus: os
publicanos e pecadores, tradicionalmente conotados com o perfil do irmão mais novo, iam ter com Jesus para
O ouvirem; e os fariseus e os doutores da Lei, conotados com o perfil do irmão mais velho, o cumpridor,
murmuravam entre si escandalizados: “Este acolhe os pecadores e come com eles”.
A
acirrar o escândalo de uns e a saciar a sede espiritual de outros, Jesus conta
três episódios parabólicos cujo protagonista é sempre Deus: na figura de
pastor, na figura da mulher pobre e na figura do Pai que tinha dois filhos. Mal
foi o episódio parabólico mais extenso ter ficado reduzido ao filho pródigo,
que existe, mas que não é o único mal comportado, relegando-se a figura do Pai
para segundo plano. De facto, é o episódio do Pai que tem dois filhos ou do Pai
compassivo, que está entre o grande amor que tem pelos filhos e a liberdade
deles, que respeita até às últimas consequências.
***
O
episódio do pastor começa com uma pergunta interpelante a todos:
“Quem de entre vós que, possuindo cem
ovelhas e tendo perdido uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto e vai
à procura da que se tinha perdido, até a encontrar?”.
Mateus
insere o episódio da ovelha perdida no quadro das instruções aos apóstolos
acerca das suas obrigações como pastores da Igreja (vd
Mt 18,12-14), ao
passo que Lucas utiliza o episódio para responder ao pretenso escândalo de Jesus
em receber os pecadores. Além disso, Mateus realça a ideia da procura
da ovelha perdida, enquanto Lucas sublinha a alegria do encontro.
Entretanto,
Carroll Stuhlmueller (“Evangelio segun San Lucas” in Raymond
E. Brown et al, Comentario Biblico “San Jeronimo”
– Ediciones Cristiandad, 1972) chama a atenção para o facto de
o v 5 ser exclusivo de Lucas (“Ao encontrá-la, põe-na alegremente aos
ombros”) e observa:
“Uma ovelha perdida deixa-se cair desesperada e nega-se a andar. E o
pastor vê-se obrigado a carregar com ela durante uma longa distância, o que só
pode fazer colocando-a aos ombros. Segura as patas dianteiras e as traseiras
com cada uma das mãos; mas, se tem que usar o seu cajado de pastor, há de
apertar fortemente as quatro patas contra o seu peito.”.
E anota
que só Lucas insere o convite aos amigos e vizinhos para se alegrarem com o
pastor. Serão palavras ditas com sentido irónico a propósito dos
autojustificados, que afinal não precisam de menos redenção.
Ora,
este pastor evangélico que não desiste de nenhuma das ovelhas e que, “ao chegar a casa, convoca os amigos e vizinhos e lhes
diz: Alegrai-vos comigo, porque encontrei
a minha ovelha perdida’” é Deus espelhado na pessoa de Jesus Cristo,
o qual sai à procura e testemunha a grande alegria no Céu por um só pecador que se converte, muito maior do que aquela que se
respira por noventa e nove justos que não necessitam de conversão.
***
O
segundo episódio (exclusivo de Lucas) é o da mulher pobre que tinha
10 dracmas e perdeu uma, que lhe fazia muita falta mercê da sua pobreza. Então,
como é que Deus imensamente rico se espelha nesta mulher pobre? As 10 dracmas
representam o mundo dos homens que são limitados, mas sendo cada um tão valioso
aos olhos de Deus que, para recuperar cada um, Ele solícito como esta mulher
pobre faz tudo o que pode para encontrar o homem perdido, como se dele
precisasse muito, e o fazer entrar na comunhão Consigo e, através de Si, com a
Trindade.
Deus não
desiste de nada nem de ninguém e exulta com o reencontro. E tanto assim é que
fica imensamente contente quando um pecador se arrepende e volta. Tal como a
mulher chama as amigas e vizinhas e as convida a alegrarem-se consigo por ter
encontrado a sua dracma perdida, também Deus, pela boca de Jesus, diz: “Assim há
alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte”.
Entretanto,
Carroll Stuhlmueller releva o facto de o episódio prestar uma atenção especial
à mulher e mulher pobre – desconsiderada na sociedade por ser mulher e por ser
pobre (De facto, é
verdade que Deus toma partido pelos excluídos por não terem haveres ou pela sua
condição sexual).
Esta mulher varre a sua obscura habitação, que só tem uma abertura, a porta, à
espera de ouvir tilintar a moedita que lhe faz tanta falta. Esta é a solicitude
do nosso Deus por nós, que chega a fazer-se pobre connosco e como nós para nos
fazer ricos com a sua riqueza inesgotável.
***
Quanto
ao episódio do Pai misericordioso que tem dois filhos, o comentário de hoje vai
ser parcelar e basicamente em torno do título desta reflexão.
Obviamente
que o filho que exigiu ao Pai a parte da herança que lhe cabia e a esbanjou,
ficou na miséria – na lama como se diria hoje. O termo usado para esbanjar é “diascorpízô” (espalhar
largamente); e
acrescenta-se “zôn asôtôs” (vivendo
libertinamente, ou seja numa sensualidade desenfreada e numa extravagância
desperdiçadora), o
que o irmão mais velho especifica em “o
kataphagôn sou tòn bíon metà pornôn”
(o
que gastou os teus recursos com prostitutas).
Depois
disso, sem bens e sem amigos, o único emprego que lhe deram foi o da guarda de
porcos. E bem desejava comer as alfarrobas destinadas aos porcos, mas até isso
lhe era proibido: tinha que roubar para comer. Naquele contexto geográfico, a
fome era mais que muita e devoradora da vida – “limos iskhyrà katà tên khôran ekeínen” (uma
fome avassaladora naquela região).
Foi então que num momento se lembrou da abundância que enchia a casa paterna e
de como até os criados e jornaleiros tinham mesa farta; e suspirou pela fartura
da casa paterna.
Literalmente
não se vê aqui um lance de arrependimento. Porém, não podemos esquecer a
intenção de Jesus ao contar os episódios parabólicos anteriores, a de exaltar a
alegria pelo arrependimento e mudança de vida dos pecadores: ovelhas
tresmalhadas, dracmas perdidas… E há obviamente lugar para o pródigo
arrependido.
Depois,
o discurso que o filho arredio preparou contém uma nota de consciência de
pecado, “Pai, pequei contra o Céu” (circunlóquio
para dizer “contra Deus”)
“e diante de ti” (o
pecado também ofende as pessoas),
e das suas consequências: já não é digno de ser chamado filho daquele Pai cuja
mansão respira abundância e propõe-se ser tratado como um dos seus jornaleiros.
Dizia
hoje um sacerdote, na homilia da Missa, que o filho mais velho não conhecia o
Pai – não transgredia nenhuma das suas ordens em todos aqueles anos em que o
servia (não
lhe conhecia o amor, tratava-o como um patrão). Ora, o filho mais novo também não o conhecia.
Saberia ele que o Pai não iria permitir que um filho seu deixasse de o ser e
pudesse baixar à condição de jornaleiro da casa paterna?
Porém,
no meio da sua miséria – “egô de limô ôde
apóllymai” (e eu aqui pereço de fome) – intuiu que, se voltasse e lhe
pedisse perdão, seria recebido. Tinha fome e estava disposto a mudar de vida.
Não sabia era que a bondade imensa do Pai o acolheria em ternura e, na sua
alegria, mandaria fazer festa. Foi, pois, a recordação da liberalidade do Pai
que suscitou nele o arrependimento, o propósito de conversão e a esperança. A
fome suscitou a lembrança da casa paterna e esta levou ao regresso no
arrependimento, na confiança e na mudança.
O Pai,
ao vê-lo, acorreu a abraçá-lo e a beijá-lo e deixou que ele confessasse o seu
erro (“Pai, pequei contra o Céu, “eis tòn ouranón”, “e diante de ti”, “enôpión sou”),
mas não o deixou pedir que o tratasse como um dos jornaleiros. Ao invés, como
diz o texto:
“O pai disse aos seus servos: ‘Trazei
depressa a melhor túnica e vesti-lha; dai-lhe um anel para o dedo e sandálias
para os pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e
alegrar-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi
encontrado.’ E a festa principiou.”.
Para
este filho regressado são e salvo (“hygiaínonta”)
foi disponibilizado o melhor que a casa tinha e ele recebeu os trajes de festa
e as insígnias da sua categoria de nobre, da cidadania e da plena filiação:
tudo o que era conveniente para que se fizesse a festa.
Diz
Carroll Stuhlmueller que o estribilho
“estava morto e ressuscitou” (nekròs
ên kaì anézêsev),
dito aos servos e repetido ao filho mais velho, a este reforçado com a
expressão “kaì apolôlôs kaì auréthê”
(estava perdido e foi
encontrado),
remete para a leitura pascal do episódio. Com efeito, num dos seus comentários
ao texto, o Papa Francisco disse que, para lá das personagens visivelmente aqui
presentes – o Pai e os dois filhos –, temos a figura do próprio Cristo. Na
verdade, como assegura Carroll Stuhlmueller, “Jesus, em virtude da sua união
com a natureza humana, converte-se no filho errante”, que esteve morto e agora
está vivo.
A festa
principiou. Que faltava para que ela fosse plena? Faltava a integração do filho
mais velho nela, o que não acontecia, pois roído de inveja e estribado na
convicção de que era o cumpridor, quando soube da festa, recusou entrar. Mas o
Pai veio ao encontro dele e tratou-o carinhosamente: “Técnon” (meu
querido filho: sempre que se fala de filho no texto,
usa-se a palavra “uiós”, mas aqui é o tratamento ternurento) e solicitou a sua entrada na
festa. E, respondendo às acusações ao filho mais novo, que o mais velho recusou
tratar por irmão, e a si próprio (nunca usou o termo “páter”, pai, que o filho mais novo
sempre utilizou), o
Pai sentenciou:
“Tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu
é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão
estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado.”.
A
autossuficiência, a inveja e a convicção de que nós somos os bons e os outros
os maus dificultam a abertura – se não a impedem – ao amor e à misericórdia.
Enfim,
estes episódios parabólicos, que testemunham a alegria de Deus e dos anjos e
santos e postulam a festa por parte dos homens (o terceiro
episódio não se contenta com a alegria no Céu: quer a festa já na Terra), justificam não só a amorosa
consideração que Jesus dedica aos pecadores, pessoas de conduta imoral, mas que
estão sensíveis ao toque do apelo à mudança, e aos pobres e ignorantes dos
escaninhos das leis. Na casa do Pai, há lugar para todos. Pena é que alguns não
queiram entrar porque outros já entraram. Mas Jesus, de facto, veio para salvar
e não para condenar, para incluir e não para excluir; veio para que tenhamos a
vida e a tenhamos em abundância!
2019.09.15 –
Louro de Carvalho
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