sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Os programas eleitorais e os funcionários públicos


Até parece que os partidos com assento parlamentar, dum modo geral, se querem redimir da degradação em que ostensivamente lançaram os funcionários do Estado, constituindo grande bolo deste grupo de trabalhadores uma porção significativa da classe média que a narrativa neoliberal, escudada na crise financeira, quis arrasar no pressuposto de que a economia só avançaria com baixos salários e aumento do número de pobres para os poucos muito ricos terem oportunidade de socorrer através de fundações e outras agremiações ditas humanitárias.     
Depois de alguns partidos se andarem a divertir com a inclusão de uma medida por semana no seu programa eleitoral ou com a promessa de tudo e mais alguma coisa, já é conhecida a lista das promessas dos partidos para os trabalhadores da Função Pública, desde as carreiras ao recrutamento. E o denominador comum parece o “mais”: mais salários e mais trabalhadores.
Da direita à esquerda, os partidos que estão na corrida à Assembleia da República (à exceção do CDS-PP) concordam em, pelo menos, um ponto: é preciso o engrossamento dos salários dos trabalhadores das Administrações Públicas. Depois, vêm outras prioridades: o recrutamento, a revisão das carreiras e até o trabalho flexível. É o que se repete nos diversos programas eleitorais, ainda que, em cada um deles, estes itens assumam contornos diferentes.
Como se entredisse, o CDS/PP é a exceção no atinente à defesa de salários mais elevados. No seu programa eleitoral, de mais de 250 páginas, não surge nenhuma referência ao salário mínimo nacional e, quanto aos aumentos remuneratórios dos trabalhadores do Estado, o partido declara que o seu foco está na redução dos impostos, sendo somente por isso que se compromete a manter a semana de trabalho de 35 horas na Função Pública. No entanto, defende o reforço dos prémios atribuídos por mérito. Um voto à meritocracia.
Por seu turno, o PSD dedicou três páginas do seu programa eleitoral ao emprego e às carreiras públicas “para um serviço público de excelência”, defendendo a eliminação das redundâncias nas estruturas do Estado, o reconhecimento do mérito dos trabalhadores, a aposta na formação, o recurso ao trabalho flexível e o reforço das remunerações. Mais um voto à meritocracia.
A este respeito, o PS também defende a atualização anual dos salários, mas avisa que só serão possíveis aumentos remuneratórios expressivos a partir de 2021. Por outro lado, refere que é preciso recrutar mais funcionários, adverte que o modelo de progressão das carreiras especiais precisa de ser revisto e, apesar de Mário Centeno e José António Vieira da Silva terem desincentivado a pré-reforma, promete agora a abertura dessa possibilidade com vista ao rejuvenescimento de certos setores das Administrações Públicas.
À esquerda, os salários posicionam-se na dianteira, quer no concernente ao alinhamento da remuneração mínima garantida nacional com a base remuneratória da Função Pública, quer no atinente aos aumentos dos salários acima da inflação.
O PCP remata com a defesa da recuperação do tempo de serviço nas várias carreiras da Administrações Públicas, “respeitando os compromissos assumidos nos Orçamentos do Estado para 2018 e 2019”. 
Esta promessa também é deixada pelo PSD, isto é, o partido de Rui Rio quer recuperar esse tempo “perdido”, propondo um faseamento num período não inferior a seis anos e estabelecendo o princípio da igualdade de tratamento das várias carreiras especiais.
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Especificando as posições dos diversos partidos com assento parlamentar, temos:
O PAN propõe-se aumentar gradualmente o salário mínimo nacional em 50 euros por ano até se atingirem os 800 euros no termo da legislatura, subida que deverá puxar pela base remuneratória da Função Pública
O CDS/PP quer: fundir alguns organismos de Estado para conseguir “ganhos de produtividade, eficiência e qualidade”; repensar o sistema de avaliação dos funcionários públicos, reforçando a distinção do mérito, suprimindo “as burocracias” e criando “um instrumento eficaz de diagnóstico dos serviços”; avançar com a atribuição ordinária de prémios de desempenho e, por outro lado, eliminar os prémios atualmente atribuídos em percentagem da cobrança coerciva conseguida e das coimas cobradas, pois, segundo o seu programa eleitoral, “não é justificável que haja prémios em função das multas e cobranças coercivas, o que leva a comportamentos censuráveis e desproporcionados”; e manter as 35 horas, porque uma reversão para as 40 horas teria de ser acompanhada de um aumento proporcional do vencimento e a preferência é reduzir impostos a reforçar salários dos trabalhadores do Estado.
O PCP e o PEV pretendem: recuperar a totalidade do tempo de serviço “perdido” pelos trabalhadores das carreiras especiais, pois o Executivo de António Costa  reconheceu apenas 70% do tempo necessário para a progressão num módulo padrão de cada carreira (v.g., no caso dos professores, cujo módulo padrão são quatro anos, foram reconhecidos 2 anos, 9 meses e 18 dias); aumentar o salário mínimo nacional para 850 euros, puxando assim também a base remuneratória da Função Pública; adotar um Plano Nacional de Combate à Precariedade, Trabalho Clandestino e Trabalho Ilegal, face à incapacidade do PREVPAP (Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos Precários da Administração Pública) de garantir a integração de todos os trabalhadores com vínculos precários que respondem efetivamente a necessidades permanentes nos serviços públicos; e urgir o cumprimento do direito de negociação coletiva na Administração Pública.
O BE promete: rever a TRU (Tabela Remuneratória Única) para recuperar proporcionalidade e justiça entre carreiras; aumentar as remunerações acima da inflação, pois, como explica o partido, “se a inflação for de 1,5% e a taxa de crescimento nominal do PIB (Produto Interno Produto) for de 3,5%, será possível planear crescimentos reais destes salários de 1% por ano”; e alinhar o salário mínimo nacional com a remuneração mínima da Administração Pública, subindo esses salários em janeiro de 2020 para 650 euros e continuando “ao longo da legislatura a um ritmo mais acelerado que os 5% médios da legislatura” que está prestes a terminar.
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Os dois maiores partidos PS e PSD têm um rol de promessas entre o cauteloso e o extenso. Vejamos o que diz o PS, atualmente no Governo:
Pretende repor a atualização anual dos salários, ainda que só preveja aumentos remuneratórios expressivos a partir de 2021, pois a despesa com a massa salarial da Administração Pública deverá aumentar anualmente cerca de 3%, mas essa subida, nos primeiros anos, decorrerá, em grande medida, do impacto do descongelamento das carreiras e da reposição do tempo nas carreiras especiais até 2021.
Quer recuperar distinções de mérito associadas aos melhores níveis de desempenho e investir em novos incentivos à eficiência e à inovação dos trabalhadores. Mais um voto à meritocracia.
Vai revisitar o modelo de progressão dos trabalhadores integrados em carreiras especiais, no âmbito das quais é o tempo de serviço o fator determinante para progredir (e não a avaliação), pois as progressões custam todos os anos 200 milhões de euros aos cofres do Estado e, desse valor, quase dois terços dizem respeito a carreiras especiais, o que representa “um desequilíbrio” – pelo que, segundo o seu programa eleitoral, “o aumento desta despesa não pode continuar a limitar a política salarial na próxima década e impedir uma política de incentivos na Administração Pública que premeie a excelência e o cumprimento dos objetivos definidos”.
Propõe-se concluir a revisão das carreiras não revistas.
Pensa rever o modelo de recrutamento de dirigentes, superiores e intermédios, garantindo a “transparência, o mérito e a igualdade de oportunidades”.
Promete incentivar a pré-reforma em alguns setores da Administração Pública, nos quais seja necessário apostar no rejuvenescimento, mesmo depois de Mário Centeno ter deixado claro que o país “não se pode dar a luxo” de ter as pessoas a sair do mercado do trabalho e de Vieira da Silva ter frisado que a Função Pública precisa das competências dos trabalhadores mais velhos.
Diz que vai apostar na entrada de mais funcionários públicos para fazer face à degradação dos serviços públicos, nomeadamente através da eliminação da norma segundo a qual por cada dois funcionários que saem do ativo só é recrutado um.
Intenta promover a conciliação da vida pessoal, familiar e profissional, assegurando o bem-estar dos funcionários, pois, durante a legislatura que termina em outubro, esta já foi uma das principais apostas do Governo, nomeadamente com a dispensa de 3 horas no primeiro dia de aulas para que os funcionários acompanhem os filhos à escola.
Vai estimular trabalho à distância, com serviços-piloto que possibilitem aos funcionários públicos experimentar trabalho remoto a tempo parcial.
Quer aumentar o número de funcionários públicos em 40 mil, no curso da próxima legislatura, de 670 mil para 710 mil (se calhar, terá de prescindir deste Ministro das Finanças).
E promete definir leques salariais, não só no setor público, mas também no privado, para combater as desigualdades entre quem ganha menos e quem recebe mais.
E o PSD promete aumentar os salários dos funcionários públicos em linha com a evolução da inflação e o acréscimo de produtividade do país e alinhar o salário mínimo nacional com a base remuneratória da Administração Pública e subir essas remunerações sempre acima da inflação para que, em 2023, ultrapassem os 700 euros.
Vai recuperar os “instrumentos de reconhecimento do mérito”, nomeadamente com a atribuição de prémios de desempenho por eficiência dos serviços ou redução de custos.
Quer fazer um “levantamento exaustivo” das competências de cada organismo do Estado, de modo a eliminar duplicações e “ineficiências funcionais”.
Intenta promover a formação de forma a permitir “uma maior mobilidade entre carreiras e grupos profissionais”.
Apostará em modelos de trabalho mais flexíveis, nomeadamente com recurso a bancos de horas.
Manterá o número global de funcionários públicos, apostará no rácio de uma entrada por uma saída, “promovendo a estabilidade do número de trabalhadores da Administração Pública nos próximos quatro anos”, e recorrerá a medidas que permitam racionalizar e reduzir os custos da tecnologias de informação e comunicação na Administração Pública.
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A isto António Costa, interpretando as propostas de governo apresentados pelo PSD e CDS para as próximas legislativas, diz que são “programas de quem não pretende governar” e de quem aposta em “simplesmente ganhar votos”.
Em entrevista à Antena 1, o Primeiro-Ministro apontou incongruências matemáticas em ambos os projetos dos partidos de direita, já que prometem algo “indemonstrável matematicamente”, sendo que aquilo que PSD e CDS dizem é que, ao mesmo tempo, há condições para baixar mais os impostos, aumentar a despesa e ter um défice melhor – o que é matematicamente indemonstrável, pois não é possível ter menos receita, mais despesa e o saldo final ser ainda melhor. Em comparação, apontou, o PS compromete-se com reduções fiscais concretas e “não com um leilão de quem dá mais reduções”.
Segundo Costa, os socialistas propõem-se “aumentar o número de escalões de IRS para a classe média, baixar impostos em função do número de filhos e baixar os impostos sobre as empresas que reinvestirem lucros em modernização ou que investirem no interior”.
Quanto às opções que o PS seguirá no day after às legislativas em caso de vitória, Costa voltou a recusar ter PCP ou BE num eventual Governo, voltando a citar o seu mantra desta campanha – “é melhor não estragar uma boa amizade com um mau casamento” (Mantenha-se a amizade, portanto) –, por considerar não estarem reunidas “condições políticas” para que um Governo de coligação seja mais estável “que aquilo que tivemos nesta legislatura”. E disse:
“Não vejo condições políticas objetivas, tendo em conta os programas, para que um Governo de coligação seja mais estável que aquilo que tivemos nesta legislatura. Muito dos temas que nos afastam do PCP e do BE eram comportáveis no grau de compromisso que temos, mas não numa relação mais íntima que aquela que temos tido.”. 
Para Costa, o país já nada tem a ganhar com a alternância de poder entre socialistas e sociais-democratas, um ‘arco de governação’ a condenar PCP, BE ou Verdes a um estatuto de oposição obrigatório, como não tem nada a lucrar com um bloco central. E disse:
Um bloco central é negativo para o país, empobrece a democracia e as alternativas. É fundamental que os portugueses possam ter a cada momento uma solução de governo alternativa. Em Portugal há dois partidos, PS e PSD, que podem polarizar soluções de Governo e caso confluam no mesmo ficaríamos em solução de grande empastelamento que empobrece alternativas e fomenta extremismos.”.
Por fim, António Costa abordou o futuro de Elisa Ferreira, salientando que a ainda vice-governadora do Banco de Portugal “vai ficar com uma pasta importante para Portugal”, salientando que até “o Presidente da República a considera óptima”. E, apesar de reconhecer que já sabe qual a tutela que foi atribuída à futura comissária europeia portuguesa, não a divulgará publicamente até ao anúncio oficial, mas disse-se “satisfeito com a escolha”.
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Enfim, se os partidos à esquerda não surpreendem com as opções reveladas, de CDS e PSD ficou a saber-se o que não querem. Por outro lado, o CDS parece acreditar que a baixa de impostos traz automaticamente melhores salários e, calculista, não passa a carga horária semanal de trabalho da função pública para as 40 horas só para não ter que pagar mais (melhor que Passos Portas, que impuseram as 40 horas e pagando menos); e PSD parede quer tudo: baixar impostos; aumentar salários e número de funcionários; e promover a recuperação de todo o tempo de serviço congelado (recorde-se que Rui Rio nem sabia o que os partidos estavam a aprovar para os professores naquele célebre dia de maio).
O PS tem, é certo, um programa politicamente equilibrado, mas a sua leitura deixa a impressão de que já ganhou as eleições e com maioria confortável para fazer tudo o que entender. Sente-se de pedra e cal no terreno. E deixa dúvidas sobre o quer fazer com as progressões e as carreiras, mas mantém a linha dura das suas narrativas. Veremos se não lhe sai o tiro pela culatra e se o resultado não saberá a poucochinho e se não precisará de quem diz pouco bem de momento.
2019.09.06 – Louro de Carvalho   

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