As homilias da Missa a que Francisco presidiu em
Santa Marta, no Vaticano, a 19 e 20 de setembro dirigem-se em especial aos
ministros ordenados, sobretudo sacerdotes e bispos.
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No dia 19, o Pontífice advertiu para o facto de o
ministério ser “um dom” e não uma função ou um pacto de trabalho. O ministro de
Deus e da Igreja não é um funcionário cujo perfil é cumprir ordens superiores
sem rosto, nem um empresário que põe e dispõe de tudo à sua vontade. É um
trabalhador qualificado das vinhas e dos campos do Senhor, mas sem contrato
estabelecido nos moldes usuais entre os homens, porque é enviado em missão como
profeta, apóstolo e missionário. E esse envio é alicerçado no dom de Deus, o
dom do Espírito Santo. Por isso, o sacerdote – bispo e/ou presbítero – é o fiel
depositário do dom da profecia, do dom do sacerdócio, do dom da sabedoria da
condução do povo de Deus.
Ora, na homilia do dia 19, proferida diante dos muitos bispos e sacerdotes que
concelebraram com ele, o Papa Francisco falou do dom do ministério e observou
que, se e quando nos apropriamos do dom e o centralizamos em nós mesmos, tornamo-lo
“uma função” e perde-se o coração do ministério episcopal ou presbiteral. E da
falta de contemplação do dom nascem “todos os desvios que nós conhecemos”.
Convidando à
reflexão a partir da 1.ª Carta de Paulo a Timóteo, proposta pela liturgia do
dia, destacando a palavra “dom” e seguindo o conselho do apóstolo ao jovem
discípulo, “Não descuides o dom da graça
que tu tens”, o Papa Bergoglio vincou:
“Não é um pacto de trabalho: ‘Eu devo fazer’,
o fazer está em segundo plano; eu devo receber o dom e protegê-lo como dom e
dali brota tudo, na contemplação do dom. Quando nós nos esquecemos disto, nos
apropriamos do dom e o transformamos em função, perde-se o coração do
ministério, perde-se o olhar de Jesus que olhou para todos nós e disse:
‘Segue-me’. Perde-se a gratuitidade.”.
O Santo
Padre alertou para o risco de centralizarmos o ministério em nós mesmos e
discorreu:
“Desta falta de contemplação do dom, do ministério
como dom, brotam todos aqueles desvios que nós conhecemos, dos piores, que são
terríveis, aos mais quotidianos, que nos fazem centralizar o nosso ministério
em nós mesmos e não na gratuitidade do dom e no amor por Aquele que nos deu o
dom, o dom do ministério.”.
Acentuando
que é importante fazer, mas primeiramente contemplar e proteger, Francisco
citou o apóstolo Paulo para recordar que o dom é “conferido mediante uma palavra profética com a imposição das mãos por
parte dos presbíteros” e que vale para os bispos, mas também “para todos os
sacerdotes”. E destacou “a importância da
contemplação do ministério como dom e não como função”. Com efeito, como
esclareceu, fazemos aquilo que podemos, com boa vontade, inteligência e “também
com esperteza”, mas sempre para proteger este dom.
Porém, não
se trata de o enterrar como fez o servo a quem o seu senhor confiou um talento,
mas de valorizar o dom, preservá-lo, protegê-lo contra as arremetidas da
dádiva, tais como o egoísmo, a autossuficiência, a devassidão, a mesquinhez. É
preciso não esquecer que o dom do ministério é um carisma, ou seja, um dom de
Deus, não para proveito próprio, mas para benefício da comunidade, pelo que se
impõe a sua guarda, a fidelidade ao carisma e a disponibilidade para o serviço.
E o
Pontífice reconheceu que esquecer a centralidade de um dom é algo humano e deu
como exemplo o fariseu que, no Evangelho de Lucas, acolhe Jesus em sua casa,
ignorando “as inúmeras regras de acolhimento”, ignorando os dons. Perante o
olhar duvidoso e incrédulo do fariseu, Jesus faz-lhe notar isso, indicando a
mulher que doa tudo aquilo que o anfitrião esqueceu: a água para os pés, o
beijo do acolhimento e a unção da cabeça com o óleo.
Do fariseu
disse Francisco:
“Havia este homem que era bom, um bom
fariseu, mas esqueceu o dom da cortesia, o dom do acolhimento, que também é um
dom. Sempre se esquecem os dons quando há algum interesse por trás, quando eu
quero fazer isto, fazer, fazer... Sim, devemos, os sacerdotes, todos nós devemos
fazer coisas e a primeira tarefa é anunciar o Evangelho, mas protegê-lo,
proteger o centro, a fonte, de onde brota esta missão, que é propriamente o dom
que recebemos gratuitamente do Senhor.”.
Também os
ministros são administradores do dom, mas não são empresários, pois não podem
tomar decisões a bel-prazer ou segundo as regras do governo de empresa, muito
menos segundo as leis de mercado. Por isso, a oração final de Francisco ao
Senhor foi para que “nos ajude a proteger
o dom, a ver o nosso ministério primeiramente como um dom, depois um serviço”,
para não o arruinarmos e para “não nos tornarmos ministros empresários, ou
simples executores” e tantas coisas que afastam da contemplação do dom e do
Senhor, “que nos deu o dom do ministério”. Esta é uma graça que o Pontífice
pediu para todos os presentes, mas especialmente para aqueles que festejam os
25 anos de ordenação.
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No dia 20, o Papa, frisando que o bispo deve
estar próximo do povo de Deus para não cair em ideologias, pediu orações pelos sacerdotes e bispos, a quem
exortou a quatro “formas” de proximidade. Os bispos devem estar próximos de
Deus com a oração, próximos dos seus sacerdotes, próximos entre si e próximos do
povo de Deus.
A reflexão papal
foi inspirada nas leituras da Liturgia destes dois dias, concentrando-se nos
conselhos que o apóstolo Paulo dá ao jovem bispo Timóteo: conselhos que
prosseguem, depois, na segunda Carta.
No dia 19,
no centro desses conselhos estava a exortação à vivência do ministério como um
dom, ao passo que, no dia 20, o cerne da reflexão foi o dinheiro e a intriga,
“os murmúrios, as discussões estúpidas” – coisas que enfraquecem a vida
ministerial. E Francisco avisou que, se e quando um ministro – seja sacerdote,
diácono ou bispo – começa a apegar-se ao dinheiro”, une-se à raiz de todos os
males. E, evocando a passagem da 1.ª Carta a Timóteo (1Tm 6,2c-12), em que Paulo recorda que a avidez do dinheiro é a
raiz de todos os males, o Santo Padre afirmou que “o diabo entra pelo bolso”, como
diziam as velhinhas do seu tempo.
Depois, Francisco
concentrou-se nos conselhos que o apóstolo dá a Timóteo e a todos os ministros
nas duas cartas. São chamados a serem próximos não só os bispos, mas também os
sacerdotes e os diáconos.
Antes de
mais, o bispo “é um homem de proximidade com Deus”. E o Pontífice recordou que,
quando os apóstolos, para melhor serviço das viúvas e órfãos, “inventaram” os
diáconos, para explicar bem tudo isso, Pedro ressalta que “a nós” cabe “a
oração e o anúncio da Palavra”. Assim ficamos a saber que “a primeira tarefa dum bispo é rezar”: rezar “dá força” e desperta
“a consciência deste dom, que não devemos ignorar, que é o ministério”. O mesmo
se deve dizer do sacerdote e do diácono: ativo, sim, mas sempre próximo de Deus
pela oração.
A segunda
proximidade à qual o bispo é chamado é a dos seus sacerdotes e diáconos, os
seus colaboradores, que são os vizinhos mais próximos. Vincando que “é preciso
amar primeiro o seu próximo, que são os seus sacerdotes e os diáconos”, o Papa observou:
“É triste quando um bispo esquece os seus
sacerdotes. É triste ouvir as lamentações de sacerdotes que dizem: ‘Liguei para
o bispo, preciso de um encontro para dizer algo, e a secretária disse-me que
está tudo lotado nos próximos três meses e não podia...’. Um bispo que sente
esta proximidade dos sacerdotes, se sabe que um sacerdote ligou hoje, no máximo
amanhã deveria chamá-lo, porque ele tem o direito de conhecer, de saber que tem
um pai. Proximidade dos sacerdotes.
A pari, os sacerdotes e os
diáconos devem estar e sentir-se próximos do seu bispo, cultivando a comunhão
com ele e, por ele, com toda a Igreja.
Depois, os bispos devem estar próximos uns dos outros, estando em
comunhão e apoiando-se. E os sacerdotes e os diáconos devem viver esta
proximidade entre si, não as divisões. “O diabo entra ali para dividir o
presbitério, para dividir” – avisou o Pontífice.
Assim,
advertiu o Papa, começam os grupinhos que “dividem por ideologias”, “por
simpatias”. Por fim, Francisco proclamou que a quarta proximidade é ao povo de
Deus, frisando:
“Na segunda Carta, Paulo começa por dizer a
Timóteo que não se esqueça da sua mãe e da sua avó, isto é, que não se esqueça
de onde ele saiu, de onde o Senhor o tirou. Não se esqueça do seu povo, não se
esqueça das suas raízes! E agora, como bispo e como sacerdote, é preciso estar
sempre perto do povo de Deus. Quando um bispo se afasta do povo de Deus, acaba
numa atmosfera de ideologias que nada têm a ver com o ministério: não é um
ministro, não é um servo. Esqueceu-se do dom, gratuito, que lhe foi dado.”.
Isto mesmo pode ser dito do sacerdote e do diácono que, mais do que
estar perto do seu povo, pode querer incutir nele as suas ideias ou as ideias
do grupo ideológico com que mais pensa identificar-se.
Em conclusão,
o Papa voltou a pedir que não se esqueçam estas quatro “proximidades”,
incluindo a do colégio episcopal e presbiteral: “a proximidade com Deus, a
oração; a proximidade do bispo aos sacerdotes e dos sacerdotes com o bispo e
dos sacerdotes entre si e dos bispos entre si, ou seja, a proximidade filial
com Deus e fraternal ou paternal no bispo e nos sacerdotes”. E a “proximidade
ao povo de Deus”. E exorta, com determinação, a rezar para que os bispos e os
sacerdotes tenham essa proximidade, “com os seus líderes”: “aqueles que os conduzem
pelo caminho da salvação”. “Teria a
curiosidade de perguntar-vos”, continua o Papa, “se vós rezais pelos bispos ou se apenas os criticais”. E foi
concreto ao interpelar a todos:
“Vós rezais pelos vossos sacerdotes, pelo
pároco, pelo vice-pároco, ou apenas os criticais? Devemos rezar pelos
sacerdotes e pelos bispos, porque todos nós – o Papa é um bispo – saibamos
conservar o dom, não negligenciar este dom que nos foi dado,-com esta
proximidade.”.
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Por
analogia e em comunhão com Espírito, também os leigos devem considerar a
vocação batismal como um dom a proteger e a disponibilizar ao serviço dos
outros apostolicamente. E devem cultivar estas quatro proximidades: com Deus
pela oração; com o sacerdote e o bispo em comunhão eclesial hierárquica,
usufruindo do carisma ministerial colocado em proveito de todos; a proximidade
dentro do grupo familiar, amical ou apostólico; e a proximidade com toda a
Igreja e com todos os homens, a começar pelos mais próximos e pelos que mais
precisam.
2019.09.20 –
Louro de Carvalho
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