domingo, 29 de setembro de 2019

Contundente censura à sociedade de consumo, opção pelos pobres


A liturgia do 26.º domingo do Tempo Comum no Ano C propõe-nos a reflexão sobre a nossa relação com os bens deste mundo, incitando a vê-los, não como nossa pertença em exclusivo, mas como dons que Deus colocou nas nossas mãos para os administrarmos e partilharmos, com gratuitidade e amor. Com efeito, os dons não são nossos, mas de Deus e de todos os irmãos.
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Na 1.ª leitura (Am 6,1a.4-7), Amós denuncia violentamente a classe dirigente ociosa, que vive no luxo à custa da exploração dos pobres, não se preocupando minimamente com o sofrimento e a miséria dos humildes. O profeta oriundo de Técua, que era pastor e plantador de sicómoros, anuncia que Deus não pactua com a situação, pois este sistema de egoísmo e injustiça não tem nada a ver com o projeto que Deus sonhou para os homens e para o mundo.
Estamos em meados do séc. VIII a.C. (cerca de 762 a.C.), no reino do Norte (Israel). As conquistas de Jeroboão II criaram bem-estar, riqueza, prosperidade; porém, esta situação de desafogo não beneficia toda a nação, mas apenas um grupo privilegiado (o dos nobres, cortesãos, militares, grandes latifundiários e comerciantes sem escrúpulos). Nasceu e cresceu uma classe dirigente poderosa, cada vez mais rica, a viver instalada no luxo, a explorar os pobres e que, apoiada por juízes corruptos, comete ilegalidades e prepotências. À margem, está o numeroso grupo dos pobres, vítimas inocentes e silenciosas dum sistema que gera injustiça, miséria, sofrimento, opressão. Neste contexto, o “profeta da justiça social” faz ouvir a sua denúncia profética do luxo e da luxúria das classes dominantes face a um povo abalado pela catástrofe da injustiça social e da invasão assíria. Por isso, esses ricaços sairão para o exílio na frente dos deportados. E o Profeta evoca ironicamente a gloriosa história antiga: os ricos, porque têm uma cítara para tocar, acham que são cantores como David. E lembram-se de que a Samaria é a casa de José, mas esquecem-se de que José distribuía alimento aos de sua casa.
O texto assumido para a 1.ª leitura pertence ao género literário dos “ais” (v. 1). Começa com a interjeição “hwy”, habitualmente usada em lamentações fúnebres. Corresponde ao grito das carpideiras a acompanhar o cortejo fúnebre. É o terceiro “ai” de Amós; os outros dois aparecem em Am 5,7 (a propósito da justiça e dos tribunais) e em Am 5,18 (a propósito do culto). Os profetas utilizam normalmente esta palavra como introdução a um oráculo que anuncia o castigo: indica que certas pessoas ou grupos se encontram às portas da morte por causa dos seus pecados.
Temos, neste caso, a classe dirigente, rica e indolente, que vive comodamente nos palácios da capital, que esbanja em luxos, que vive numa perpétua festa. São parasitas que se deitam “em leitos de marfim”, que comem alimentos selecionados, que bebem vinhos raros em excesso, que usam perfumes importados, que se divertem a ouvir música e a compor canções. O mais grave (embora Amós não o expresse claramente aqui) é que todo este luxo e esbanjamento resultam da exploração dos mais pobres e das rapinas e prepotências cometidas contra os fracos. De resto, esta classe rica e indolente vive egoisticamente mergulhada no seu mundo cómodo e não se preocupa minimamente com a miséria e o sofrimento que aflige os seus irmãos. Os pobres trabalham duramente, numa existência cheia de dores, trabalhos e misérias, para sustentarem a indolência e o luxo da classe dirigente.
É evidente que Deus não está disposto a pactuar com isto. A classe dominante da Samaria está a infringir gravemente os mandamentos da “Aliança” e Deus não aceita ser cúmplice dos que mantêm um elevado nível de vida à custa do sangue e das lágrimas dos pobres. Por isso, o castigo chegará em forma de exílio numa terra estrangeira. As elites têm que ir ao cativeiro para aprenderem a justiça e o direito. O profeta refere-se à queda da Samaria nas mãos dos assírios de Salamanasar V, em 721 a.C., e à partida da classe dirigente para o cativeiro na Assíria.
O trecho de Amós, uma contundente censura de Amós à “sociedade de consumo” de Jerusalém e da Samaria aplica-se como uma luva ao nosso tempo. Até parece que o filme da história se repete na sociedade atual tão consumista, tão voltada para o luxo desnecessário e para o prazer desenfreado, insensível aos muitos problemas provocados pela pobreza e exclusão. Campeiam os mesmos vícios que Amós denuncia nas classes ricas e ociosas e em quantos se deixam arrastar pelo desejo de ter, comprando coisas supérfluas e impondo sacrifícios à família para pagar as suas manias de grandeza, gastando de forma descontrolada para pagar os vícios (pequenos ou grandes), sem pensarem nas necessidades dos que dependem de si. Até os religiosos e religiosas com voto de pobreza gastam, às vezes, de forma supérflua, esquecendo que vivem das ofertas generosas de pessoas que têm menos do que eles. Pede-se, então, parcimónia no viver, no comer, no vestir e no beber e o não esquecimento dos pobres através de ação em concreto.
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A insensibilidade ao sofrimento das pessoas mais humildes, excluídas e pobres, que estão na margem da sociedade, é também o tema da parábola do rico avarento e epulão e de Lázaro que lemos no Evangelho desta dominga (Lc 16,19-31). Continua o Evangelho a reflexão sobre o uso das riquezas que são dons de Deus e que, assim, devem ser postas ao serviço de todos. Jesus pede que tenhamos presente a dialética entre o eterno e o temporal. Aos que põem a finalidade da sua vida nos bens temporais não é fácil convencerem-se da sublimidade dos bens eternos. Assim já nos ensinou a Bem-Aventurada Virgem Maria no Magnificat (cântico da exultação da alma no Senhor, da gratidão laudante e da misericórdia): “Depôs do trono os poderosos e elevou os humildes; encheu de bens os famintos e mandou embora os ricos de mãos vazias” (cf Lc 1,52-53).
Na parábola do rico e de Lázaro, Lucas faz catequese sobre a posse dos bens. Na perspetiva lucana, a riqueza é um pecado, pois supõe a apropriação, em benefício próprio, de dons que Deus destina a todos os homens. Por isso, o rico é condenado e o pobre Lázaro recompensado.
Ora, todos somos convidados a refletir sobre a misericórdia, especialmente, na dialética do rico e do pobre, do eterno e do transitório e, sobretudo, da misericórdia e da justiça, que devem andar de mãos dadas e unidas.
Em termos de texto evangélico, a parábola é exclusiva do Evangelho de Lucas, mas é uma narrativa comum a outras literaturas e com o mesmo escopo: a moderação no uso das riquezas e a atenção aos pobres. Só que Jesus dá-lhe uma modelação escatológica própria. Assim, resulta que o trecho mais original da perícopa é a parte que fala dos irmãos do rico, isto é, aquelas pessoas que vivem neste mundo à semelhança do rico da parábola. Original é também o nome dado ao pobre. É a única parábola do Evangelho em que o protagonista tem um nome próprio: Lázaro – o que é simbólico, pois “Lázaro” significa “Deus ajuda”. 
Por via de regra o pobre é anónimo ou pouco nos interessa como se chama. Mas Jesus dá-lhe um nome, valoriza-o. O rico é quem fica sem nome. Como os ricos são conhecidos pelo nome, os leitores da parábola deram-lhe um nome: chamaram-no Epulão, que significa “comilão”. Os irmãos do Epulão, o rico deste mundo transitório, que também não têm nomes, não ouviram Moisés e os profetas. Por isso, em nada ouviriam quem viesse da visão beatífica, porque já não ouviram aos profetas. Moisés ensinou como seguir uma vida santa: tinha uma série de obrigações para com os pobres, sobretudo os órfãos e viúvas e alguns profetas haviam sido muito explícitos na defesa dos pobres e dos excluídos.
Moisés e os profetas da antiga Lei ensinaram com clareza. Muitos não os escutaram. Mas um morto ressuscitado não seria um professor melhor. Jesus ressuscitou dos mortos e não sabemos se é mais escutado que Moisés e os antigos profetas. De facto, continuam as riquezas do mundo, que pertencem a todos, acumuladas nas mãos de pouquíssimos. Continuam os nossos olhos a contemplar versões gigantescas da parábola do Epulão e de Lázaro.
Assim, a parábola projeta-nos para a vida na presença de Deus, nas alegrias eternas. Na vida presente somos livres de viver como queremos: no altruísmo ou no egoísmo, na virtude ou no pecado. A morte não apaga tudo, como gostariam alguns que assim acontecesse. A morte revela-nos o sentido da vida. É a morte, que o Evangelho chama de “fim dos tempos”, que fixa o destino futuro da criatura humana, destino eterno que depende de como vivemos o pequeno espaço de tempo na terra. E Deus julga-nos, após a morte, pelas escolhas que fizemos na vida presente. Quem é egoísta ou deixa de lado os pobres terá um julgamento à altura dos seus atos. A liberdade é dos maiores dons que Deus nos concede. Mas ela tem margens que a limitam: os preceitos divinos, que nos foram ensinados pelos profetas, pelo Evangelho. A vida presente, portanto, é decisiva. É nela que jogamos o nosso destino, é nela que escolhemos a eternidade.
Na perspetiva teológica de Lucas, a riqueza – legítima ou ilegítima – é sempre culpada. Os bens não pertencem a ninguém em particular, nem sequer àqueles que trabalharam duramente para se apossarem de uma grossa fatia dos bens que Deus pôs no mundo. São dons de Deus, postos à disposição de todos os seus filhos, para serem partilhados e para assegurarem uma vida digna a todos. Quem se apodera – ainda que legitimamente – desses bens em benefício próprio, sem os partilhar, defrauda o projeto de Deus. Quem usa os bens para ter uma vida luxuosa e sem cuidados, esquecendo-se das necessidades dos outros homens, defrauda os seus irmãos que vivem na miséria. Nesta história, Jesus ensina que não somos donos dos bens que Deus pôs nas nossas mãos, ainda que os tenhamos adquirido de forma legítima: somos administradores, encarregados de partilhar com os irmãos o que pertence a todos. Esquecer isto é viver de forma egoísta e, por isso, merece o destino os “tormentos”.
Por via de regra, os ricos são infelizes, porque se rodeiam de bens como se de uma fortaleza se tratasse. São incomunicáveis. Vivem a defender-se a si e às “suas” riquezas. Os pobres não têm nada a perder. Por isso, as mãos mais pobres são as que mais se abrem para tudo dar.
Neste mundo de competição, a riqueza transforma as pessoas em concorrentes. A riqueza não é vista como gestão do que deve servir para todos, mas como conquista e expressão de status. Tal atitude marca a riqueza financeira, a riqueza cultural e a riqueza afetiva.
A aventura do amor, inaugurada por Cristo e prosseguida depois dele, convidando o homem a consentir ativamente na lei da liberdade, causou, de facto, mudança progressiva nas relações dos homens.  O Evangelho não nos ensina nada sobre revolução. Tentar construir uma teologia da revolução a partir do Evangelho é iludir-se e não captar o essencial.
Os cristãos, conquistados pela aventura do amor e só na medida que aceitam vivê-la como Cristo e em seu seguimento, estarão atentos em fazer com que ela não degenere em novas opressões e em novo legalismo. Deus faz opção pelos pobres. Não elege a pobreza pela pobreza, mas a pobreza pela grandeza de generosidade, perdão e amor. Deus, enfim, não exige que os ricos se desfaçam dos bens, mas que sejam generosos e que os seus bens aproveitem aos mais necessitados através da partilha voluntária, ditada pela boa consciência.
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A 2.ª leitura (1 Tim 6,11-16), apesar de não apresentar uma relação direta com o tema, concorre para ele, alicerçando no lado espiritual. Traça o perfil do “homem de Deus”, que é alguém que ama os irmãos, que é paciente, que é brando, que é justo e que transmite fielmente a proposta de Jesus. Poderíamos, também, acrescentar que é alguém que não vive para si, mas que vive para partilhar tudo o que é e que tem com os irmãos.
Paulo fala do testemunho de Cristo neste mundo, que não é pacífico. É luta: o bom combate que devemos travar até ao fim para vivermos para sempre com Aquele que possui o fim da História.
Este trecho paulino apresenta as virtudes dos líderes da comunidade. Os ministros da Igreja devem cuidar do tema da avareza, que chega a abalar a fé. Por isso, todos os que servem o Evangelho devem cultivar as virtudes, procurando de um modo autêntico serem fiéis à profissão de fé que manifestaram e que lhes foi confiada por Jesus Cristo até à consumação dos tempos. Tudo isso, porque a Igreja está no tempo do seu crescimento e deve, ontem, hoje e sempre, conservar o que lhe é confiado. Paulo opõe ao ideal de vida dos falsos cristãos (cf 1Tm 6,3-10) a elevação moral dos verdadeiros discípulos de Cristo (cf 1Tm 6,11-16), que Timóteo, como bispo, deve tornar exemplar em sua própria vida.
No contexto da 1.ª carta de Paulo a Timóteo a comunidade sofre a influência de “falsos mestres”, que difundem doutrinas estranhas. Os “falsos mestres” são orgulhosos, ignorantes, discutem questões sem importância, fomentam a inveja, a discórdia, os insultos, as suspeitas injustas, as invejas e ciúmes e estão preocupados com as questões do lucro (cf 1Tm 6,4-6). Neste “ambiente” é importante sublinhar as caraterísticas do verdadeiro discípulo, através de quem a verdadeira fé é transmitida.
O “homo Dei” (homem de Deus) deve cultivar a justiça, a piedade, a fé, o amor, a perseverança, a doçura. Tem de ser paciente e manso, diante das dificuldades que o serviço apostólico levanta. Deve guardar o mandamento do Senhor – isto é, a verdade da fé transmitida pela tradição apostólica. No respeitante ao seu perfil, tudo se resume no amor para com os irmãos (é este amor que nos eleva para o amor de Deus), no entusiasmo pelo ministério e na capacidade de transmitir a verdadeira doutrina, herdada dos apóstolos. E o texto termina com um hino litúrgico que apresenta Deus como o Senhor dos senhores, o único soberano, O que possui a imortalidade, a glória e o poder universal. É uma solene doxologia que provém do repertório das orações usadas nas sinagogas judaicas do mundo grego e que apresenta Deus em contraste com os falsos deuses e com os títulos humanos atribuídos a reis e imperadores.
O “homo Dei”  vive com entusiasmo a fé, ama os irmãos, trata a todos com doçura, paciência, e mansidão e dá testemunho da verdadeira doutrina de Jesus, sem se deixar seduzir e desviar pelas modas ou pelos interesses próprios. A proposta feita a Timóteo deve, sobretudo, caraterizar a vida dos que têm responsabilidades na animação das comunidades cristãs. Os animadores das nossas comunidades devem pautar a sua vida e o seu ministério pelo amor, mansidão, paciência e capacidade de doar a vida e de servir os irmãos.
Quem ama não suporta a sorte de quem é vítima da fome, da miséria, da doença e da guerra. E, enquanto clama junto dos poderosos sobre a condição de quem sofre, compromete-se na missão.
2019.09.29 – Louro de Carvalho

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