A liturgia do 26.º domingo do Tempo Comum no Ano C propõe-nos a reflexão
sobre a nossa relação com os bens deste mundo, incitando a vê-los, não como nossa
pertença em exclusivo, mas como dons que Deus colocou nas nossas mãos para os
administrarmos e partilharmos, com gratuitidade e amor. Com efeito, os dons não
são nossos, mas de Deus e de todos os irmãos.
***
Na 1.ª leitura (Am 6,1a.4-7), Amós denuncia violentamente a classe dirigente ociosa,
que vive no luxo à custa da exploração dos pobres, não se preocupando
minimamente com o sofrimento e a miséria dos humildes. O profeta oriundo de
Técua, que era pastor e plantador de sicómoros, anuncia que Deus não pactua com
a situação, pois este sistema de egoísmo e injustiça não tem nada a ver com o
projeto que Deus sonhou para os homens e para o mundo.
Estamos em
meados do séc. VIII a.C. (cerca
de 762 a.C.), no reino
do Norte (Israel). As conquistas de Jeroboão II
criaram bem-estar, riqueza, prosperidade; porém, esta situação de desafogo não
beneficia toda a nação, mas apenas um grupo privilegiado (o dos nobres, cortesãos, militares,
grandes latifundiários e comerciantes sem escrúpulos). Nasceu e cresceu uma classe
dirigente poderosa, cada vez mais rica, a viver instalada no luxo, a explorar
os pobres e que, apoiada por juízes corruptos, comete ilegalidades e
prepotências. À margem, está o numeroso grupo dos pobres, vítimas inocentes e
silenciosas dum sistema que gera injustiça, miséria, sofrimento, opressão.
Neste contexto, o “profeta da justiça social” faz ouvir a sua denúncia
profética do luxo e da luxúria das classes dominantes face a um povo abalado
pela catástrofe da injustiça social e da invasão assíria. Por isso, esses ricaços
sairão para o exílio na frente dos deportados. E o Profeta evoca ironicamente a
gloriosa história antiga: os ricos, porque têm uma cítara para tocar, acham que
são cantores como David. E lembram-se de que a Samaria é a casa de José, mas
esquecem-se de que José distribuía alimento aos de sua casa.
O texto assumido para a 1.ª leitura pertence ao género
literário dos “ais” (v. 1). Começa com a interjeição “hwy”, habitualmente usada em lamentações fúnebres. Corresponde ao
grito das carpideiras a acompanhar o cortejo fúnebre. É o terceiro “ai” de Amós; os outros dois aparecem em
Am 5,7 (a propósito da
justiça e dos tribunais)
e em Am 5,18 (a propósito
do culto). Os profetas
utilizam normalmente esta palavra como introdução a um oráculo que anuncia o
castigo: indica que certas pessoas ou grupos se encontram às portas da morte
por causa dos seus pecados.
Temos, neste caso, a classe dirigente, rica e indolente, que
vive comodamente nos palácios da capital, que esbanja em luxos, que vive numa
perpétua festa. São parasitas que se deitam “em leitos de marfim”, que comem
alimentos selecionados, que bebem vinhos raros em excesso, que usam perfumes
importados, que se divertem a ouvir música e a compor canções. O mais grave (embora Amós não o expresse claramente
aqui) é que todo este
luxo e esbanjamento resultam da exploração dos mais pobres e das rapinas e
prepotências cometidas contra os fracos. De resto, esta classe rica e indolente
vive egoisticamente mergulhada no seu mundo cómodo e não se preocupa
minimamente com a miséria e o sofrimento que aflige os seus irmãos. Os pobres
trabalham duramente, numa existência cheia de dores, trabalhos e misérias, para
sustentarem a indolência e o luxo da classe dirigente.
É evidente que Deus não está disposto a pactuar com isto. A classe
dominante da Samaria está a infringir gravemente os mandamentos da “Aliança” e
Deus não aceita ser cúmplice dos que mantêm um elevado nível de vida à custa do
sangue e das lágrimas dos pobres. Por isso, o castigo chegará em forma de
exílio numa terra estrangeira. As elites têm que ir ao cativeiro para
aprenderem a justiça e o direito. O profeta refere-se à queda da Samaria nas
mãos dos assírios de Salamanasar V, em 721 a.C., e à partida da classe dirigente
para o cativeiro na Assíria.
O trecho de
Amós, uma contundente censura de Amós à “sociedade de consumo” de Jerusalém e da
Samaria aplica-se como uma luva ao nosso tempo. Até parece que o filme da
história se repete na sociedade atual tão consumista, tão voltada para o luxo
desnecessário e para o prazer desenfreado, insensível aos muitos problemas
provocados pela pobreza e exclusão. Campeiam os mesmos vícios que Amós denuncia
nas classes ricas e ociosas e em quantos se deixam arrastar pelo desejo de ter,
comprando coisas supérfluas e impondo sacrifícios à família para pagar as suas
manias de grandeza, gastando de forma descontrolada para pagar os vícios (pequenos ou grandes), sem pensarem nas necessidades dos
que dependem de si. Até os religiosos e religiosas com voto de pobreza gastam,
às vezes, de forma supérflua, esquecendo que vivem das ofertas generosas de
pessoas que têm menos do que eles. Pede-se, então, parcimónia no viver, no
comer, no vestir e no beber e o não esquecimento dos pobres através de ação em
concreto.
***
A
insensibilidade ao sofrimento das pessoas mais humildes, excluídas e pobres,
que estão na margem da sociedade, é também o tema da parábola do rico avarento
e epulão e de Lázaro que lemos no Evangelho desta dominga (Lc 16,19-31). Continua o Evangelho a reflexão
sobre o uso das riquezas que são dons de Deus e que, assim, devem ser postas ao
serviço de todos. Jesus pede que tenhamos presente a dialética entre o eterno e
o temporal. Aos que põem a finalidade da sua vida nos bens temporais não é
fácil convencerem-se da sublimidade dos bens eternos. Assim já nos ensinou a
Bem-Aventurada Virgem Maria no Magnificat
(cântico da exultação
da alma no Senhor, da gratidão laudante e da misericórdia): “Depôs do trono os poderosos e elevou os
humildes; encheu de bens os famintos e mandou embora os ricos de mãos vazias” (cf Lc 1,52-53).
Na parábola do rico e de Lázaro, Lucas faz catequese sobre a posse dos
bens. Na perspetiva lucana, a riqueza é um pecado, pois supõe a apropriação, em
benefício próprio, de dons que Deus destina a todos os homens. Por isso, o rico
é condenado e o pobre Lázaro recompensado.
Ora, todos somos
convidados a refletir sobre a misericórdia, especialmente, na dialética do rico
e do pobre, do eterno e do transitório e, sobretudo, da misericórdia e da
justiça, que devem andar de mãos dadas e unidas.
Em termos de texto evangélico, a parábola é exclusiva do Evangelho de
Lucas, mas é uma narrativa comum a outras literaturas e com o mesmo escopo: a
moderação no uso das riquezas e a atenção aos pobres. Só que Jesus dá-lhe uma
modelação escatológica própria. Assim, resulta que o trecho mais original da perícopa é a
parte que fala dos irmãos do rico, isto é, aquelas pessoas que vivem neste
mundo à semelhança do rico da parábola. Original é também o nome dado ao pobre.
É a única parábola do Evangelho em que o protagonista tem um nome próprio:
Lázaro – o que é simbólico, pois “Lázaro” significa “Deus
ajuda”.
Por via de
regra o pobre é anónimo ou pouco nos interessa como se chama. Mas Jesus dá-lhe um
nome, valoriza-o. O rico é quem fica sem nome. Como os ricos são conhecidos
pelo nome, os leitores da parábola deram-lhe um nome: chamaram-no Epulão, que
significa “comilão”. Os irmãos do Epulão, o rico deste
mundo transitório, que também não têm nomes, não ouviram Moisés e os profetas.
Por isso, em nada ouviriam quem viesse da visão beatífica, porque já não ouviram
aos profetas. Moisés ensinou como seguir uma vida santa: tinha uma série de
obrigações para com os pobres, sobretudo os órfãos e viúvas e alguns profetas
haviam sido muito explícitos na defesa dos pobres e dos excluídos.
Moisés e os
profetas da antiga Lei ensinaram com clareza. Muitos não os escutaram. Mas um
morto ressuscitado não seria um professor melhor. Jesus ressuscitou dos mortos
e não sabemos se é mais escutado que Moisés e os antigos profetas. De facto, continuam
as riquezas do mundo, que pertencem a todos, acumuladas nas mãos de
pouquíssimos. Continuam os nossos olhos a contemplar versões gigantescas da
parábola do Epulão e de Lázaro.
Assim, a parábola
projeta-nos para a vida na presença de Deus, nas alegrias eternas. Na vida
presente somos livres de viver como queremos: no altruísmo ou no egoísmo, na
virtude ou no pecado. A morte não apaga tudo, como gostariam alguns que assim acontecesse.
A morte revela-nos o sentido da vida. É a morte, que o Evangelho chama de “fim dos tempos”, que fixa o destino futuro da
criatura humana, destino eterno que depende de como vivemos o pequeno espaço de
tempo na terra. E Deus julga-nos, após a morte,
pelas escolhas que fizemos na vida presente. Quem é egoísta ou deixa de lado os
pobres terá um julgamento à altura dos seus atos. A liberdade é dos maiores
dons que Deus nos concede. Mas ela tem margens que a limitam: os preceitos
divinos, que nos foram ensinados pelos profetas, pelo Evangelho. A vida
presente, portanto, é decisiva. É nela que jogamos o nosso destino, é nela que
escolhemos a eternidade.
Na perspetiva teológica de Lucas, a riqueza – legítima ou
ilegítima – é sempre culpada. Os bens não pertencem a ninguém em particular,
nem sequer àqueles que trabalharam duramente para se apossarem de uma grossa
fatia dos bens que Deus pôs no mundo. São dons de Deus, postos à disposição de
todos os seus filhos, para serem partilhados e para assegurarem uma vida digna
a todos. Quem se apodera – ainda que legitimamente – desses bens em benefício próprio,
sem os partilhar, defrauda o projeto de Deus. Quem usa os bens para ter uma
vida luxuosa e sem cuidados, esquecendo-se das necessidades dos outros homens,
defrauda os seus irmãos que vivem na miséria. Nesta história, Jesus ensina que
não somos donos dos bens que Deus pôs nas nossas mãos, ainda que os tenhamos
adquirido de forma legítima: somos administradores, encarregados de partilhar
com os irmãos o que pertence a todos. Esquecer isto é viver de forma egoísta e,
por isso, merece o destino os “tormentos”.
Por via de
regra, os ricos são infelizes, porque se rodeiam de bens como se de uma
fortaleza se tratasse. São incomunicáveis. Vivem a defender-se a si e às “suas”
riquezas. Os pobres não têm nada a perder. Por isso, as mãos mais pobres são as
que mais se abrem para tudo dar.
Neste mundo
de competição, a riqueza transforma as pessoas em concorrentes. A riqueza não é
vista como gestão do que deve servir para todos, mas como conquista e expressão
de status. Tal atitude marca a riqueza
financeira, a riqueza cultural e a riqueza afetiva.
A aventura do
amor, inaugurada por Cristo e prosseguida depois dele, convidando o homem a
consentir ativamente na lei da liberdade, causou, de facto, mudança progressiva
nas relações dos homens. O Evangelho não nos ensina nada sobre revolução.
Tentar construir uma teologia da revolução a partir do Evangelho é iludir-se e
não captar o essencial.
Os cristãos,
conquistados pela aventura do amor e só na medida que aceitam vivê-la como
Cristo e em seu seguimento, estarão atentos em fazer com que ela não degenere
em novas opressões e em novo legalismo. Deus faz opção pelos pobres. Não elege
a pobreza pela pobreza, mas a pobreza pela grandeza de generosidade, perdão e
amor. Deus, enfim, não exige que os ricos se desfaçam dos bens, mas que sejam
generosos e que os seus bens aproveitem aos mais necessitados através da
partilha voluntária, ditada pela boa consciência.
***
A 2.ª leitura (1 Tim 6,11-16), apesar de não apresentar uma relação direta com o
tema, concorre para ele, alicerçando no lado espiritual. Traça o perfil do “homem
de Deus”, que é alguém que ama os irmãos, que é paciente, que é brando, que é justo
e que transmite fielmente a proposta de Jesus. Poderíamos, também, acrescentar
que é alguém que não vive para si, mas que vive para partilhar tudo o que é e
que tem com os irmãos.
Paulo fala do
testemunho de Cristo neste mundo, que não é pacífico. É luta: o bom combate que
devemos travar até ao fim para vivermos para sempre com Aquele que possui o fim
da História.
Este trecho paulino apresenta as virtudes dos líderes da comunidade. Os ministros da Igreja
devem cuidar do tema da avareza, que chega a abalar a fé. Por isso, todos os
que servem o Evangelho devem cultivar as virtudes, procurando de um modo
autêntico serem fiéis à profissão de fé que manifestaram e que lhes foi confiada
por Jesus Cristo até à consumação dos tempos. Tudo isso, porque a Igreja está
no tempo do seu crescimento e deve, ontem, hoje e sempre, conservar o que lhe é
confiado. Paulo opõe ao ideal de vida dos falsos cristãos (cf 1Tm 6,3-10) a elevação moral dos verdadeiros
discípulos de Cristo (cf
1Tm 6,11-16), que
Timóteo, como bispo, deve tornar exemplar em sua própria vida.
No contexto da 1.ª carta de Paulo a Timóteo a comunidade sofre
a influência de “falsos mestres”, que difundem doutrinas estranhas. Os “falsos
mestres” são orgulhosos, ignorantes, discutem questões sem importância,
fomentam a inveja, a discórdia, os insultos, as suspeitas injustas, as invejas
e ciúmes e estão preocupados com as questões do lucro (cf 1Tm 6,4-6). Neste “ambiente” é importante sublinhar as caraterísticas
do verdadeiro discípulo, através de quem a verdadeira fé é transmitida.
O “homo Dei” (homem de Deus) deve cultivar a justiça, a piedade,
a fé, o amor, a perseverança, a doçura. Tem de ser paciente e manso, diante das
dificuldades que o serviço apostólico levanta. Deve guardar o mandamento do
Senhor – isto é, a verdade da fé transmitida pela tradição apostólica. No
respeitante ao seu perfil, tudo se resume no amor para com os irmãos (é este amor que nos eleva para o amor
de Deus), no entusiasmo
pelo ministério e na capacidade de transmitir a verdadeira doutrina, herdada
dos apóstolos. E o texto termina com um hino litúrgico que apresenta Deus como
o Senhor dos senhores, o único soberano, O que possui a imortalidade, a glória
e o poder universal. É uma solene doxologia que provém do repertório das
orações usadas nas sinagogas judaicas do mundo grego e que apresenta Deus em
contraste com os falsos deuses e com os títulos humanos atribuídos a reis e
imperadores.
O “homo
Dei” vive com entusiasmo a fé, ama os irmãos, trata a todos com doçura,
paciência, e mansidão e dá testemunho da verdadeira doutrina de Jesus, sem se
deixar seduzir e desviar pelas modas ou pelos interesses próprios. A proposta
feita a Timóteo deve, sobretudo, caraterizar a vida dos que têm
responsabilidades na animação das comunidades cristãs. Os animadores das nossas
comunidades devem pautar a sua vida e o seu ministério pelo amor, mansidão,
paciência e capacidade de doar a vida e de servir os irmãos.
Quem ama não
suporta a sorte de quem é vítima da fome, da miséria, da doença e da guerra. E,
enquanto clama junto dos poderosos sobre a condição de quem sofre,
compromete-se na missão.
2019.09.29 –
Louro de Carvalho
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