quarta-feira, 2 de outubro de 2019

“Aperuit illis”


Com a Carta Apostólica Aperuit illissob a forma de Motu Proprio, Francisco institui o “Domingo da Palavra de Deus”. Em conformidade com este documento pontifício,o III Domingo do Tempo Comum de cada ano litúrgico será dedicado à celebração, reflexão e divulgação da Palavra de Deus”.
O Motu Proprio, que responde aos muitos pedidos dos fiéis para que na Igreja se celebrasse o Domingo da Palavra de Deus, foi publicado a 30 de setembro passado, o dia em que a Igreja celebra a memória litúrgica de São Jerónimo, início dos 1.600 anos da morte do insigne tradutor da Bíblia para latim que vincava: “A ignorância das Escrituras é a ignorância de Cristo”.
A Carta Apostólica parte da seguinte passagem do Evangelho de Lucas (Lc 24,45):
Encontrando-se os discípulos reunidos, Jesus aparece-lhes, parte o pão com eles e abre-lhes o entendimento à compreensão das Sagradas Escrituras”.
Ora, no dizer do Sumo Pontífice, o Senhor “revela àqueles homens, temerosos e desiludidos, o sentido do mistério pascal”, ou seja, segundo o desígnio do Pai, “Ele devia sofrer a paixão e ressuscitar dos mortos para oferecer a conversão e o perdão dos pecados”, para o que “promete o Espírito Santo que lhes dará a força para serem testemunhas deste mistério de salvação”.
E, como Jesus abre as mentes para a compreensão das Escrituras, impõe-se na Igreja de discípulos a redescoberta da Palavra de Deus, que, não obstante os esforços desenvolvidos no sentido da sua proclamação, reflexão, estudo aprofundado e leitura para iluminar e enformar a vida, ainda é terreno desconhecido para tantos crentes que a conhecem pela rama ou que mal ouviram falar dela. Assim, o Santo Padre almeja que “possa o domingo dedicado à Palavra fazer crescer no povo de Deus uma religiosa e assídua familiaridade com as sagradas Escrituras, tal como ensinava o autor sagrado já nos tempos antigos: esta palavra ‘está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a praticares’ (Dt 30,14).”.
Francisco estriba-se, por um lado, na 2.ª Carta de Paulo a Timóteo, em que o apóstolo, como que, em testamento espiritual, “recomenda ao seu fiel colaborador que frequente assiduamente a Sagrada Escritura”, porque “toda a Escritura é inspirada por Deus e adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça”. Mas, por outro lado e em conformidade com o discurso de Paulo, apoia-se no Concílio Vaticano II que “deu um grande impulso à redescoberta da Palavra de Deus” sobretudo com a Constituição Dogmática Dei Verbum”, o que pôs a Igreja a refletir sobre a importância da Palavra de Deus, a dar-lhe significativo relevo na liturgia e a perspetivar a reflexão eclesial e eclesiológica à luz da Palavra divina. E, mais perto de nós, Bento XVI convocou o Sínodo, em 2008, sobre o tema “A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja” e escreveu a Exortação Apostólica “Verbum Domini” que “constitui um ensinamento imprescindível para as nossas comunidades” e onde se aprofunda “o caráter performativo da Palavra de Deus, sobretudo quando o seu caráter sacramental emerge na ação litúrgica”.
No dizer do Papa Bergoglio, o Domingo da Palavra de Deus situa-se num período do ano que em Igreja se convida ao reforço dos laços com os judeus e “a rezar pela unidade dos cristãos”. Não se trata, pois de mera coincidência temporal, pois “celebrar o Domingo da Palavra de Deus expressa um valor ecuménico, porque as Sagradas Escrituras indicam para aqueles que se colocam à escuta o caminho a percorrer para alcançar uma unidade autêntica e sólida”. E a Bíblia e o interesse por ela é comum a todas as confissões cristãs.
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Sobre modo de celebrar o Domingo da Palavra de Deus, Francisco exorta a vivê-lo “como um dia solene, podendo entronizar-se o texto sagrado na celebração litúrgica, de modo a tornar evidente aos olhos da assembleia o valor normativo que possui a Palavra de Deus. Também os Bispos poderão celebrar o rito de instituição do ministério de Leitor ou conferir um ministério semelhante, de modo a chamar a atenção para a importância da proclamação da Palavra de Deus na liturgia. Deve, pois, fazer-se todo o esforço possível no sentido de preparar alguns fiéis para serem verdadeiros anunciadores da Palavra com uma preparação adequada. Os párocos poderão encontrar formas de entregar a Bíblia, ou um dos seus livros, a toda a assembleia, para fazer emergir a importância de continuar na vida diária a leitura, o aprofundamento e a oração com a Sagrada Escritura, com particular referência à lectio divina.
Com efeito, como escreve o Pontífice, “A Bíblia não pode ser património só de alguns”, nem “uma coletânea de livros para poucos privilegiados”. Na verdade, “a Bíblia é o livro do povo do Senhor que, escutando-a, passa da dispersão e divisão à unidade”. De facto, a Palavra que nos convoca une-nos e faz de nós “um só povo”.
E o Papa reitera a importância da preparação da homilia, dada a obrigação de explicar a Sagrada Escritura, sem discurso enfatuado e sem divagações despropositadas:
Os Pastores têm a grande responsabilidade de explicar e fazer compreender a todos a Sagrada Escritura (...) com uma linguagem simples e adaptada a quem escuta (...). Para muitos dos nossos fiéis, esta é a única ocasião que têm para captar a beleza da Palavra de Deus e a ver referida à sua vida diária (...). Não se pode improvisar o comentário às leituras sagradas. Sobretudo a nós, pregadores, pede-se o esforço de não nos alongarmos desmesuradamente com homilias enfatuadas ou sobre assuntos não atinentes. Se nos detivermos a meditar e rezar sobre o texto sagrado, então seremos capazes de falar com o coração para chegar ao coração das pessoas que escutam.”.
Evocando o episódio dos discípulos de Emaús, o Santo Padre vinca a indivisível relação entre a Sagrada Escritura e a Eucaristia”. Citando a Constituição Dogmática “Dei Verbum”, que ilustra “a finalidade salvífica, a dimensão espiritual e o princípio da encarnação para a Sagrada Escritura”, o Papa argentino explicita:
A Bíblia não é uma coletânea de livros de história nem de crónicas, mas está orientada completamente para a salvação integral da pessoa. A inegável radicação histórica dos livros contidos no texto sagrado não deve fazer esquecer esta finalidade primordial: a nossa salvação. Tudo está orientado para esta finalidade inscrita na própria natureza da Bíblia, composta como história de salvação na qual Deus fala e age para ir ao encontro de todos os homens e salvá-los do mal e da morte.”.
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E há um elemento fundamental para que a palavra de homens, formulada e passada à escrita verdadeiramente encarnada em contextos culturais, históricos e geográficos, se torne Palavra de Deus e palavra da salvação: o papel do Espírito Santo na Sagrada Escritura. Diz o Papa:
Para alcançar esta finalidade salvífica, a Sagrada Escritura, sob a ação do Espírito Santo, transforma em Palavra de Deus a palavra dos homens escrita à maneira humana. O papel do Espírito Santo na Sagrada Escritura é fundamental. Sem a sua ação, estaria sempre iminente o risco de ficarmos fechados apenas no texto escrito, facilitando uma interpretação fundamentalista, da qual é necessário manter-se longe para não trair o caráter inspirado, dinâmico e espiritual que o texto possui. Como recorda o Apóstolo, ‘a letra mata, enquanto o Espírito dá a vida’.”.
Por isso, se torna oportuna a afirmação dos Padres conciliares “segundo a qual a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita”. Na verdade, com Jesus Cristo, a revelação de Deus alcança a sua realização e plenitude; e o Espírito Santo continua a sua ação. Mas a ação do Espírito Santo não se circunscreve à natureza divinamente inspirada da Sagrada Escritura e aos seus diversos autores. Antes, ela “continua a realizar uma peculiar forma de inspiração, quando a Igreja ensina a Sagrada Escritura, quando o Magistério a interpreta de forma autêntica e quando cada fiel faz dela a sua norma espiritual” – escreve o Papa Francisco. De facto, a fé bíblica funda-se na Palavra viva, não sobre um livro.
Falando sobre a encarnação do Verbo de Deus que “dá forma e sentido à relação entre a Palavra de Deus e a linguagem humana, com as suas condições históricas e culturais”, o Pontífice frisa que “muitas vezes corre-se o risco de separar Sagrada Escritura e Tradição, sem compreender que elas, juntas, constituem a única fonte da Revelação”. Na verdade, a maior parte dos livros bíblicos passaram à escrita após a vivência e o filtro da tradição, que os fixou, sendo que o Espírito Santo lhes deu o aval de inspirados. Assim, “quando a Sagrada Escritura é lida com o mesmo Espírito com que foi escrita, permanece sempre nova”; e “quem se alimenta dia a dia da Palavra de Deus torna-se, como Jesus, contemporâneo das pessoas que encontra; não se sente tentado a cair em nostalgias estéreis do passado, nem em utopias desencarnadas relativas ao futuro”. “Por isso, é necessário que nunca nos abeiremos da Palavra de Deus por mero hábito, mas nos alimentemos dela para descobrir e viver em profundidade a nossa relação com Deus e com os irmãos. A Palavra de Deus apela constantemente para o amor misericordioso do Pai, que pede a seus filhos que vivam na caridade. A Palavra de Deus é capaz de abrir os nossos olhos, permitindo-nos sair do individualismo que leva à asfixia e à esterilidade enquanto abre a estrada da partilha e da solidariedade.
E a carta conclui com uma referência a Maria, a serva do Senhor e a facilitadora da ação da Palavra e que nos acompanha “no caminho do acolhimento da Palavra de Deus”, sendo que “a bem-aventurança de Maria antecede todas as bem-aventuranças pronunciadas por Jesus para os pobres, os aflitos, os mansos, os pacificadores e os que são perseguidos, porque é condição necessária para qualquer outra bem-aventurança”.
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Em entrevista ao Vatican News, o Arcebispo Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, explica os principais temas da Carta Apostólica “Aperuit Illis”, dizendo que “temos necessidade de entrar em confidência constante com as Escrituras Sagradas, caso contrário o coração permanece frio e os olhos permanecem fechados, atingidos como somos por inúmeras formas de cegueira”. Por outro lado, permitindo-nos a leitura constante da Sagrada Escritura abrir os olhos para sair “do individualismo”, também se nos constitui como a chave para nos levar à partilha e à solidariedade.
Ao comentar a Carta, Rino Fisichella, destaca o “valor histórico” da iniciativa do Pontífice para o amadurecimento do povo cristão, definindo-a como “uma oportunidade pastoral” para revigorar o anúncio neste momento histórico cheio de desafios, sendo que a Palavra de Deus se expressa com o testemunho.
Diz o Arcebispo que, apesar de resultar de tantos pedidos de pastores e leigos após o Jubileu da Misericórdia, esta ideia do Papa não é só de agora:
Então, na sua Carta Apostólica ‘Misericordia et Misera’, na conclusão do Jubileu, ele havia acenado a que nas Igrejas, segundo a própria criatividade – porque muito já é feito a esse respeito – fosse instituído um domingo no qual a Palavra de Deus fosse colocada no centro do coração da vida da comunidade cristã, como sinal unitário e assim, dessa maneira, a força da Palavra de Deus para a comunidade poderia emergir ainda mais, mas também a responsabilidade que a comunidade sente de ter de tornar partícipe por meio de uma ação realmente evangelizadora”.
É certo que todos os domingos são da Palavra de Deus. Mas Rino Fisichella, afirmando que o domingo tem um valor histórico, explica:
Cada domingo (…) celebramos o sacrifício de sua Paixão, a morte e o mistério de sua ressurreição. Portanto, a ação litúrgica com a celebração da Eucaristia torna-se o ápice da vida cristã. (…) É verdade que todos os domingos escutamos a Palavra de Deus, mas isso não impede que num domingo a Palavra de Deus possa estar em toda a Igreja, em todas as comunidades cristãs, proclamada com maior solenidade e possa haver uma reflexão particular acompanhada por sinais mais visíveis sobre a importância que essa Palavra tem para a Igreja.”.
Quanto ao valor ecuménico deste domingo, explica o presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização:
O Papa escolheu celebrar este domingo no III Domingo do Tempo Comum, quando todas as leituras que são proclamadas no Evangelho apresentam a figura de Jesus como anunciador do Reino de Deus. Não esqueçamos, porém, que isso ocorre também em um momento temporal em que se celebra, alguns dias antes, o Dia do Diálogo com os Judeus e, em seguida, é celebrada a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. Não esqueçamos, isso não é o mesmo que os Dias Mundiais, como normalmente estamos acostumados a pensar, este é um domingo que, mesmo que apenas uma vez por ano, vale por todo o ano. O Papa diz isso explicitamente: o dia dedicado à Bíblia quer ser não uma vez por ano, mas uma vez por todo o ano, a fim de se tornar mais familiar com o texto sagrado.”.
Depois, Rino Fisichella abordou as três imagens bíblicas apontadas por Francisco. A de Emaús, serve ao Papa para fazer as pessoas compreenderem como, por meio da Palavra do Senhor, Ele acompanha a vida de cada fiel, a vida da Igreja e “queima o coração de cada um de nós quando essa Palavra é proclamada porque fala d’Ele”. A do retorno do povo judeu após o exílio e a redescoberta dos livros da Lei, ressaltando a proclamação então feita no livro de Neemias, que recorda esse momento histórico do povo judeu (com esta imagem indica-se que a Palavra cria um povo e faz com que as pessoas se sintam reunidas para a ouvirem e a viverem e que a palavra proclamada vivida traz a alegria). E, por fim, vem imagem mista da doçura e amargura da Palavra, espelhada no profeta Ezequiel e no Apocalipse, com que o Pontífice nos explica que a Palavra de Deus é doce, mas ao mesmo tempo é amarga porque às vezes não é acolhida, não é vivida ou é rejeitada.
A Carta abunda em indicações concretas aos batizados, mas, como se pode ver lendo-a, também há indicações concretas aos sacerdotes  e aos bispos. O Papa recorda aos sacerdotes o valor da homilia como “ocasião pastoral que não deve ser perdida”, que requer dos sacerdotes o chamamento ao contacto diário com aquela Palavra que depois devem explicar e da qual o povo “tem o direito de ter uma explicação inteligente e coerente que toque a vida e as necessidades presentes em cada um”. E recorda aos bispos que, neste domingo, poderão celebrar, por exemplo, a criação do Ministério da Leitura. Mas o Papa vai mais além e diz que, a partir dos próximos anos, “é bom que o papel de um serviço extraordinário seja mais enfatizado, assim como existe o serviço extraordinário da Comunhão, que também possa haver um ministério e um mandato específico com o qual as pessoas se preparam primeiro para um contacto mais imediato de estudo, de reflexão com a Palavra de Deus, e depois sejam também instituídos e em um ministério extraordinário”. E Fisichella vê aqui “uma provocação pastoral”. Com efeito, sucede em nossas igrejas, que muitas vezes lê a primeira pessoa que achamos disponível. Mas isto não é valorizar devidamente a Palavra de Deus, que “deve encontrar pessoas, mulheres, homens capazes de uma proclamação autêntica” e capaz da “inteligência do texto sagrado”.
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É uma Carta Apostólica que merece ser lida e refletida. A Palavra de Deus merece-o e espera o entusiasmo dos fiéis e o cuidado dos pastores.
2019.09.01 – Louro de Carvalho

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