quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Tancos entrou na campanha eleitoral para fazer estrago político


Tancos é um caso militar que testemunha a situação de um corpo de exército, que devia estar coeso, seguro e forte, mas que tinha uma grande arsenal entregue a si próprio e à sua sorte.
O poder político não descativa, com a necessária facilidade, verbas para a proteção e segurança das instalações de material de guerra. E o exército, ramo antigamente numeroso das forças armadas, que, por imperativo constitucional, se subordinam ao poder político (não quer dizer que se devam sujeitar), à falta de verbas, improvisa. Segundo o Público, não funcionava“sistema de videovigilância”; estavam avariados “os sensores de movimento”; estavam inoperacionais “o sistema de deteção sísmica que se ativava com o peso e o de vibração, na rede exterior; estavam degradadas “as duas redes, exterior e interior”; era insuficiente “a iluminação em toda a zona”; e não funcionavam “os projetores nas torres de vigia”. Por outro lado, “as rondas também eram poucas e não existiam alarmes sonoros ou de iluminação junto aos paióis, bem como qualquer equipamento que permitisse visão noturna”.
Era um arsenal militar desmilitarizado, entregue a uma tecnologia inepta e falida.
Entretanto, o vazio da desmilitarização dos paióis nacionais que tinham material de guerra (que se guarda sobretudo com pessoas: o resto seriam meios auxiliares) deu azo a uma cena de furto de material. Esse episódio grotesco – o maior assalto de sempre de armamento militar em Portugal, que faz esquecer os vários à PSP – começou, pelos vistos, com uma dívida de mil euros e mobilizou personagens sem grande currículo: o João Paulinho (que terá organizado o assalto), o Laranjinha, o Nando, o Caveirinha e o Paulo Lemos, conhecido por Fechaduras.
O Pisca ouviu o sobrinho, que cumpria o serviço militar em Tancos, lamentar-se das péssimas condições de segurança dos Paióis Nacionais de Tancos (PNT).
E, aquando do planeamento do assalto, o grupo apercebeu-se de que nenhum dos componentes sabia rebentar com uma fechadura. Face a esta inépcia, pediram ajuda ao Fechaduras, alcunha que granjeou por alegadamente conseguir abrir qualquer fechadura. E este, depois de ter ensinado os amigos a abrir uma fechadura, ter-se-á arrependido do envolvimento no golpe por ter prometido à mãe que não seria preso. Piedade filial, não?!
O arrependido terá telefonado a uma procuradora do DIAP (departamento de investigação e ação penal) do Porto, a contar que um grupo estava a planear um assalto, não se recordando do nome do local onde iria ocorrer tal assalto. Então as vias judiciárias começaram a investigação antes de o assalto ter acontecido. Movida pelos alertas do Fechaduras, a PJ (Polícia Judiciária) tentou pôr alguns dos suspeitos sob escuta para evitar o suposto assalto. Porém, o JIC (juiz de instrução criminal) Ivo Rosa impediu-lho por considerar “demasiados vagos” os factos para poderem ser autorizadas as medidas de investigação pedidas pelo MP (Ministério Público). É caso para nos interrogarmos se outra fosse a deliberação de Rosa, o assalto a Tancos nem teria ocorrido. Quer dizer que o caso que põe militares e políticos de rastos afinal é um caso de polícia e de justiça.
É muito interessante que o episódio do assalto, que está ainda por provar em tribunal, e a decisão de Rosa tenham surgido em 2017, na varanda das eleições para as autarquias locais.
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Este juiz madeirense é conotado com uma visão excessivamente garantística da Justiça e de exagero do princípio de que a dúvida beneficia os suspeitos. Desagrada recorrentemente ao MP e os procuradores debatem-se com o facto de todos os casos que lhe cabe tratar enfrentarem dificuldade de êxito nas investigações. São de recordar os casos da EDP e do BES e agora o que se pode ou não esperar da Operação Marquês. Escrevia o Público, este fim de semana, que os procuradores Rosário Teixeira e Vítor Pinto acusam Ivo Rosa de “minar” o processo que envolve o ex-Primeiro-Ministro José Sócrates e alertam para “consequências catastróficas” dos atrasos no envio dos recursos dos procuradores para o Tribunal da Relação.
Não é de todo descabida a feliz reação da defesa de Sócrates quando soube que o sorteio da Operação Marquês calhou, na fase de instrução, a Ivo Rosa e não a Carlos Alexandre. É de questionar porque ainda se mantém o TCIC (Tribunal Central de Instrução Criminal) onde os processos ou caem nas mãos do dito superjuiz Carlos Alexandre ou do polémico juiz Ivo Rosa. A sorte ou o azar dum suspeito não deveria depender da relação que um juiz tenha com o MP nem mesmo de correntes académicas mais ou menos garantísticas da Justiça.
Porém, os programas eleitorais dos partidos para as eleições legislativas nada prometem a este respeito. Mas até ao dia 6 de outubro, o caso do furto das armas de Tancos entrou na campanha eleitoral como uma bomba, com os estilhaços a atingirem Belém e São Bento.
Ora, este caso militar e judiciário também já foi tratado politicamente. Com efeito, depois de o então CEME (Chefe do Estado-Maior do Exército) ter suspendido os comandantes das 5 unidades militares que vigiavam os PNT, para não perturbarem o inquérito interno, e de os ter restituído aos cargos, o mesmo CEME e o então CEMGFA (Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas)
Confessaram a inteira responsabilidade perante o Ministro da tutela, o Primeiro-Ministro e o Chefe de Estado.
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Todavia, o grotesco do caso não terminou. O João Paulino, não sabendo o que fazer com o material ainda não traficado e suspeitando que estava prestes a ser apanhado e socorrendo-se de antigas amizades no exército e na GNR, prontificou-se a entregar o material. E a PJM (Polícia Judiciária Militar), que ficou defraudada por a PGR Marques Vidal a ter retirado da investigação do furto, alegadamente por o episódio ter contornos de terrorismo, e a ter entregado à PJ, quis protagonizar a cena da recuperação do material furtado. Guerra de polícias, com suspeita e desejo de abolição da PJM!
Este passou a ser o ato mais badalado desta comédia-drama por que passou a instituição militar, quase fazendo esquecer o furto, cujo alvo passou a ser o comummente dito poder político. E, neste, destacou-se o então Ministro da Defesa Nacional, que putativamente sabia do caso da encenação e lhe terá dado cobertura tutelar. Ora, sabendo do episódio o ministro, era natural que o Primeiro-Ministro também soubesse, bem como o Presidente da República. Mas acusar o chefe do Governo e o Chefe de Estado implicava investigação para a qual seria necessária autorização do Supremo Tribunal de Justiça e teria de correr pelo MP a ele adstrito. E o MP ainda quis ouvir como testemunhas Costa e Marcelo, ao que o diretor do DCIAP se opôs, dada a dignidade institucional das personalidades em causa dado não ver nessa audição relevância para o processo. Assim, pelos vistos, foi posta de parte a inquirição destas duas personalidades e ficaram por fazer 48 perguntas a oficiais generais, o que desgostou os procuradores do processo. Exigiram despacho escrito e pode estar aqui uma das razões por que a acusação veio para a ribalta em plena campanha eleitoral.
Como refere José Sócrates (em quem agora poucos acreditam, embora o ouçam por conveniência), o argumento de que o prazo não podia ser ultrapassado porque um dos arguidos já não podia estar mais tempo em prisão preventiva é muito fraco. Com efeito, bastava libertá-lo para aguardar julgamento em liberdade. Mas, de facto, se quem diz mal do PS leva, quem se mete com o MP não fica sem a “justa” resposta. E, quanto às perguntas não feitas, recordemos o Freeport!  
Entretanto, veio a fase política institucional. Uma CPI (comissão parlamentar de inquérito) às cenas de Tancos junto da qual depuseram várias entidades, entre as quais o então Ministro de Defesa e o Primeiro-Ministro (este depôs por escrito) produziu um relatório, o qual, pela informação que foi recolhida em sede da CPI, concluiu pela ilibação dos governantes. Porém, esse relatório não foi votado favoravelmente pelos partidos posicionados à direita: PSD e CDS. Provavelmente nunca acreditaram que a fase política passasse. Apenas adormeceu.
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Conhecida, em plena campanha eleitoral, a acusação do MP, reviveu em cheio o lado político. 
À esquerda, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa parecem arrependidos por terem ajudado a aprovar no Parlamento as conclusões da CPI que ilibava o ex-Ministro da Defesa Azeredo Lopes; à direita, o CDS entretém-se com o seu recurso favorito: propor mais uma CPI.
Mas, enquanto diz que, a ser verdade o que o MP refere, os governantes mentiram à CPI, Catarina Martins quer Tancos fora da campanha eleitoral. Jerónimo de Sousa atira que ninguém está acima da lei. E os partidos à esquerda insistem nas propostas para futuro e secundarizam as cenas da novela .
Rui Rio começou por afirmar solenemente seguir o princípio que tem seguido internamente nos casos de justiça no PSD e não “julgar” Azeredo Lopes antes de este ser condenado pela Justiça. Não obstante, em fase seguinte, considerou ser “pouco crível” que o ex-Ministro da Defesa não tivesse avisado António Costa do encobrimento do furto. Quer dizer que deu o dito por não dito. E Costa zurziu em Rio a acusação de faltar à palavra e enveredar pelo julgamento na tasca e na praça pública em substituição do julgamento pelos tribunais.
São precipitados os julgamentos na praça pública e, em concreto, é injusto o raciocínio linear do “se Azeredo Lopes sabia, também António Costa sabia” e o de que, “se o ex-chefe da Casa Militar, o tenente-general João Cordeiro, sabia de alguma coisa, também Marcelo Rebelo de Sousa sabia”. É estranho ouvir escutas de Tancos com referências a um “papagaio-mor do reino” e deduzir que seja uma referência ao Presidente da República. São ditos que se toleram em conversas de taberna, não em diligências sérias de um processo judicial. Mas quem será o papagaio-mor? Nunca um conjunto indefinido de comentadores como pretende alguém!
A acusação do MP a 23 arguidos – complementada com a extração de certidões para instauração de mais processos-crime a outras entidades, nomeadamente o ex-chefe da Casa Militar do Presidente da República – caiu que nem uma luva no colo dos dois partidos oposicionistas que nunca desistiram de encarar os factos de ponto de vista estritamente político, parecendo que o ângulo judicial será um acessório sem grande relevância.
É óbvio que o caso é essencialmente policial e judicial, embora com contornos políticos, como ficou entredito, pois a tutela sabia ou tinha de saber, embora pouco pudesse fazer, exceto levar os responsáveis à demissão. E isso aconteceu: demitiu-se o CEME por motivos militares e de desconforto político; tinham-se demitido o chefe da Casa Militar do Presidente e o chefe de gabinete do ministro (estes por motivos pessoais, que dão para tudo, ou por estarem à beira da reforma); e veio a demitir-se o ministro para não criar problemas ao funcionamento e imagem do exército.
Mais se começou a concluir que, se o Governo sabia, também o Chefe de Estado sabia da encenação da entrega combinada do material furtado. Ora, este que tinha exigido publicamente a investigação a fundo custe o que custar, doa a quem doer, sentiu-se na obrigação deprimente de, a partir de Nova Iorque, onde dizia estar a defender a posição de Portugal, vir clamar por inocência, assegurando que o Presidente não é criminoso. E ele sabe que um cidadão só pode se considerado criminoso após decisão judicial condenatória transitada em julgado.  Mas, como se sentiu picado, reagiu a quente.      
É que ter-se-á instalado entre Belém e São Bento nos últimos dias o ambiente de intriga palaciana. Belém suspeita que São Bento quereria envolver o nome do Presidente neste caso para desviar atenções do PS em plena campanha eleitoral. Os socialistas não creem que Belém esteja inocente na forma como o caso Tancos entrou na campanha. Aliás, como era explicável que São Bento tivesse conhecimento da encenação e Belém não? Em todo o caso, Costa veio a terreiro garantir que o Presidente está acima de qualquer suspeita. Tinha que ser. É política e judicialmente correto que Presidente e chefe do Governo não tenham conhecimento da tramoia.  
E há quem alvitre uma vingança de quadros do MP em razão do processo de nomeação da Procuradora Geral da República que sucedeu Joana Marques Vidal, preferida por aquele órgão.
A investigação a Tancos começou por ser liderada pela PJM, mas passou, por decisão de Joana Marques Vidal, para a PJ apesar das variadas tentativas, junto do Governo e de Belém, de reverter essa decisão. Esse período coincidiu com a decisão de Costa de não reconduzir Marques Vidal, decisão secundada por Marcelo. E a ironia reside no facto de estarem de candeias às avessas precisamente por causa de Tancos.
Na CPI, Marques Vidal sugeriu um estudo aprofundado sobre “até que ponto se justifica a PJM como órgão de polícia criminal autónomo para investigar” os crimes “estritamente militares”. Do seu ponto de vista, já que “esses crimes são apreciados em tribunais comuns”, não vê utilidade “em serem investigados por um órgão autónomo”. É caso para perguntar, em paralelo, se os crimes de grande complexidade são apreciados em tribunais de comarca, para quê o DCIAP (Departamento Central de investigação e Ação Penal) e TCIC (Tribunal Central de Investigação Criminal)?
É óbvio que há dualidade de critérios: não pode haver PJM, mas pode haver auxiliares militares de procuradores e juízes militares para apreciação dos crimes estritamente militares, como há DCIAP e TCIC. E há dualidade de critérios: o MP não acusou o Fechaduras porque se arrependeu e colaborou com a PJ, mas acusou o Paulino, que se arrependeu e quis entregar o material. O mérito da colaboração com as autoridades deveria ser apreciado pelos tribunais e não pelo MP. Mas, quando o pepino nasce torto, tarde ou nunca se endireita.
E querem uns fazer disto um caso essencialmente político; e outros, um caso exclusivamente judicial! Quem ganhará com isto a 6 de outubro? Quem ganhará nos tribunais? 
2019.10.03 – Louro de Carvalho

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