Portugal estava até hoje representado
por quatro cardeais: Dom António Marto, Bispo de Leiria-Fátima; Dom Manuel
Clemente, Patriarca de Lisboa; Dom Manuel Monteiro de Castro, Penitenciário-mor
emérito, e Dom José Saraiva Martins, Prefeito emérito da Congregação para as
Causas dos Santos, os dois últimos com mais de 80 anos. Com a nomeação do Arcebispo
Dom José Tolentino de Mendonça, o número passa a cinco, três dos quais eleitores,
ou seja, com idade para votar num eventual conclave.
Com cinco
cardeais – e sem distinguir entre a população católica e não-católica –
Portugal passa a ter cerca de um cardeal por cada dois milhões de habitantes,
ou menos, se contarmos apenas os católicos. Na Europa, entre países comparáveis
com Portugal em termos de matiz religiosa e/ou dimensão demográfica, esse valor
só é superado pela Itália.
Como refere Filipe d'Avillez à Renascença, a Cúria romana mantém um peso enorme de clérigos
italianos – o que não surpreende, tendo em conta que Roma é diocese italiana –
e tem hoje 42 cardeais no colégio cardinalício, ou seja, um para cada 1,4
milhões de italianos. É o maior contingente, que é seguido à distância pelos
Estados Unidos, com 14, e Espanha com 13, respetivamente um para cada 23
milhões de habitantes e um para cada 3,6 milhões. Contudo, a proporção
americana desce para um por cada cinco milhões tendo apenas em conta os católicos.
A Bélgica, por exemplo, com uma população de 11,5 milhões, tem apenas um
cardeal, tal como a Áustria, com uma população de 11 milhões.
França e
Alemanha também têm mais cardeais que Portugal: seis e oito respetivamente.
Mas, como as suas populações são significativamente maiores, a proporção acaba
por ser favorável a Portugal. França tem um cardeal por cada 11 milhões e
Alemanha um para cada 10 milhões de habitantes. Olhando pelo ângulo da
população, Portugal terá cinco vezes mais cardeais que estes dois países. Também
o México tem mais cardeais que Portugal – 6 – mas a proporção é de um para 32
milhões de habitantes.
Conclui-se,
pois, que os países com mais cardeais que Portugal são significativamente
maiores demograficamente, tendo, assim, uma proporção de cardeais por
habitante, ou por habitante católico, menor do que Portugal. Itália, como já
vimos, é a exceção.
Usando o
mesmo princípio da proporcionalidade, há muitos países que têm apenas um
cardeal, mas que se encontram em melhor posição que Portugal e, nessa
perspetiva, o “campeão” dos cardeais seria Marrocos, que passa a ter um cardeal
para uma população de apenas 50 mil católicos (embora tenha nascido em Espanha,
Cristóbal López Romero é arcebispo de Rabat e, por isso, conta como marroquino
para efeitos oficiais). Em termos
de proporção, isso equivale a 200 cardeais para um país de dez milhões. Já Cabo
Verde e Malta, com um cardeal cada, teriam cerca de 200. A extrapolação é
absurda, mas ajuda a colocar em perspetiva a importância para a comunidade
católica marroquina de estar representada no Colégio dos Cardeais.
O caso de
Marrocos é paradigmático da estratégia adotada por Francisco. Países como Santa
Lúcia e Tonga, com populações entre 100 mil e 200 mil pessoas, não imaginariam
ter um cardeal em pontificados anteriores. E outros países, como a República
Centro-Africana, o Burkina Faso ou a Papua Nova Guiné, não obstante terem
populações significativas, eram preteridos por serem muito periféricos. Contudo,
Francisco pretende dar sinais às periferias de que as suas vozes são ouvidas e
valorizadas em Roma, assim como quer fazer do diálogo com o Islão um fator importante
do pontificado, o que se deduz das visitas pastorais que fez a países de
maioria islâmica e dos encontros que mantém com altas figuras desta religião.
Ora, também
no atinente a nomeações de cardeais, o Papa escolheu figuras do mundo islâmico,
onde as populações católicas são reduzidas e até alvo de perseguição. São escolhas
que têm o duplo efeito de valorizar estas comunidades, como sucede no
Paquistão, Bangladesh, Iraque, Marrocos e a Albânia, e de fortalecer os líderes
das comunidades aos olhos dos conterrâneos, que têm de interceder a favor dos
direitos dos seus fiéis.
Quanto a
Portugal, é de questionar se existe uma explicação para termos visto aumentar o
número de elementos portugueses no Sacro Colégio. O estado da Igreja em
Portugal não parece justificar este entusiasmo, pois não difere muito de outros
países ocidentais tradicionalmente católicos. Considerando os cardeais em
questão, verifica-se que dois, os que já ultrapassaram os 80 anos, tendo perdido
direito ao voto em conclave, são da carreira diplomática e da Cúria Romana,
estando mais diretamente ligados ao Vaticano do que à Igreja em Portugal. O
terceiro cardeal português é Dom Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa. A sua nomeação
para o Colégio Cardinalício seria normal, visto que tradicionalmente o Patriarca
de Lisboa será feito cardeal, como sucede com bispos de certas dioceses.
Todavia, com Francisco cedo se percebeu que nem todas as tradições são para
cumprir. Aliás, Francisco ignorou uma bula de um dos seus antecessores ao não fazer
cardeal Dom Manuel logo no primeiro consistório após a sua nomeação como
Patriarca de Lisboa, embora a decisão tenha sido interpretada à luz do facto de
Dom José Policarpo ainda ser vivo e ter idade para votar num conclave nessa
altura.
A tradição
acabou por ser cumprida em 2015. Mas há dioceses supostamente beneficiadas pela
mesma tradição – embora sem bulas – que têm sido sucessivamente ignoradas, como
é o caso do Patriarcado de Veneza, cujo Patriarca foi nomeado em 2012 e ainda
não foi feito cardeal.
A nomeação do
nosso quarto cardeal foi surpreendente. Dom António Marto é o primeiro bispo de
Leiria-Fátima a ser feito cardeal e a decisão foi tomada na sequência da visita
do Papa a Fátima para o centenário das aparições, em 2017. Os sucessores não esperarão
que isto constitua uma tradição a manter só por inerência do cargo. Isto mesmo
sucedeu com a Cátedra do Porto, com o Cardeal Dom Américo.
E o quinto
cardeal português, Dom José Tolentino Mendonça, é também um membro da Cúria
Romana, para a qual foi nomeado em 2018. A surpresa aqui é a forma como o
antigo professor e vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa viu a sua
vida mudar de rumo depois de ter sido convidado a pregar o retiro de Quaresma
do Papa nesse ano. A impressão que deixou junto de Francisco foi tal que o Papa
o nomeou arquivista e bibliotecário do Vaticano, levando-o para Roma. O titular
desses cargos costuma ser feito cardeal e é uma tradição que Francisco cumpre.
Portanto,
mais do que ter Portugal como alvo privilegiado, estão em causa as
personalidades em referência e os serviços que prestam.
***
Na cerimónia
de criação dos novos cardeais, o Papa criticou o “hábito da indiferença” e pediu aos novos cardeais compaixão, que
definiu como “requisito essencial”
para a sua missão.
“A disponibilidade de um purpurado para dar o
seu próprio sangue – significado na cor purpúrea das suas vestes – é certa, quando está enraizada nesta
consciência de ter recebido compaixão e na capacidade de ter compaixão. Caso contrário,
não se pode ser leal”, afirmou o Sumo Pontífice, que acentuou que “muitos comportamentos desleais de homens da
Igreja dependem da falta deste sentimento da compaixão recebida e do hábito de
passar ao largo, do hábito da indiferença”.
Antes da
imposição do barrete cardinalício, o Santo Padre questionou os então futuros
cardeais se têm viva a consciência desta compaixão, que não é uma “coisa facultativa” ou um mero “conselho evangélico”. “É um requisito essencial. Se não me sinto
objeto da compaixão de Deus, não compreendo o seu amor. Não é uma realidade que
se possa explicar, ou a sinto ou não”, prosseguiu o Papa, que acrescentou: “E, se não a sinto, como posso comunicá-la,
testemunhá-la, dá-la?”.
E questionou-se:
“Concretamente, tenho compaixão pelo irmão tal, pelo bispo tal, pelo
padre tal? Ou sempre destruo com a minha atitude de condenação, de indiferença?”.
Antes, o
Papa referiu que, “muitas vezes, os
discípulos de Jesus dão provas de não sentir compaixão”, notando que basicamente dizem “que
se arranjem”. “É uma atitude comum
entre nós, seres humanos, mesmo em pessoas religiosas ou até ligadas ao culto.
A função que desempenhamos não basta para nos fazer compassivos, como demonstra
o comportamento do sacerdote e do levita que, vendo um homem moribundo na beira
da estrada, passaram ao largo”, prosseguiu o Pontífice. E, citando um
excerto do Evangelho de São Lucas (Lc 5,28) a propósito da cura de um de leproso na Galileia que
se ajoelhou diante de Jesus, disse:
“Jesus estende-lhe a mão, toca-o e ordena
que este fique purificado. E, neste gesto e nestas palavras, temos a missão de
Jesus, Redentor do homem: ‘Redentor na compaixão’. Ele encarna a vontade de
Deus de purificar o ser humano doente da lepra do pecado; Ele é a ‘mão
estendida de Deus’, que toca a nossa carne enferma e, fazendo-o, preenche o
abismo da separação”.
E, sobre a natureza
desta compaixão divina, esclareceu:
“Esta compaixão não despontou a certo ponto da
história da salvação. Não! Sempre existiu em Deus, gravada no seu coração de
Pai. Vemo-lo na narração da vocação de Moisés, quando Deus lhe fala da sarça
ardente dizendo: ‘Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o
seu clamor, (...) conheço, na verdade, os seus sofrimentos’ (Ex 3, 7).”.
Francisco
assinalou ainda que aqueles terão dito para consigo “não é da minha competência”, lamentando que haja “sempre justificações – às vezes até se
tornam lei, dando origem a descartados institucionais”.
Para o Papa,
“deste comportamento muito humano,
demasiado humano, derivam estruturas de não compaixão”. Pelo que exortou:
“Peçamos hoje, por intercessão do apóstolo
Pedro, a graça dum coração compassivo, para sermos testemunhas d’Aquele que nos
olhou com misericórdia, escolheu, consagrou e enviou para levar a todos o seu
Evangelho de salvação”.
***
À Renascença,
a 4 de outubro, o novo cardeal declarou ver-se como
“mais um trabalhador” no colégio cardinalício, recusando tratar-se de “uma
questão de peso político, de fazer lobby por isto ou por aquilo”. E disse que
na forma de ser do Papa Francisco “há uma
pulsão nítida do evangelho” e sublinhou que na Igreja “o mais importante é
convergir no essencial”.
Sobre o número de cardeais portugueses e o facto de três serem eleitores
num futuro conclave, desvaloriza essas contabilidades, por desinteressantes e
fixa-se no que um cardeal eleitor pode e deve fazer:
“Tem de escutar a sensibilidade da igreja. Tem de se abrir ao espírito
santo. Tem de fazer uma auscultação profunda do que são as necessidades. Não é
uma questão de peso político, de fazer lobby por isto ou por aquilo. É uma
coisa muito mais profunda e muito mais séria e comprometedora que é no fundo
descobrir aquilo que nos Atos dos Apóstolos é bem claro: o protagonista da Igreja
em cada tempo é o Espírito Santo. Não são os homens. É o espírito santo que
conduz a Igreja.”.
O facto de
ser o Espírito Santo o protagonista da condução da Igreja exige de nós – cardeais,
bispos, sacerdotes, diáconos, religiosos e leigos comprometidos:
“Uma humildade muito grande, um desapego grande, uma capacidade de ler
os sinais dos tempos, uma capacidade de ouvir, uma dimensão comunitária da vida
da igreja”.
E o novel
purpurado confessa:
“Para mim um dos mais belos elogios que se pode fazer a alguém é dizer
que aquela pessoa é mais um. É mais um trabalhador, mais um escritor, mais um
filho, é mais um pai, é mais um. É essa beleza da vida comum que pode ser o sal
da terra, que pode ser o fermento. Caso contrário, o perigo do mundanismo de
que fala o Papa Francisco torna-se de facto uma ameaça muito grande e contamina
se as nossas contabilidades se deixam levar por outros critérios.”.
Sobre a revolução
do Papa Francisco, discorre:
“Não sei se ele começou uma revolução. Ele começou um
ministério, uma missão de conduzir os irmãos, de manter a unidade, de ser o elo
de ligação, de ter múnus, de ter o poder de conduzir e de iluminar a igreja.
Isso não há dúvida de que o Papa Francisco tem feito com um sentido de entrega
extraordinária. Ver como este homem se gasta, como ele procura à sua maneira,
porque cada um tem a sua maneira é belo. Na sua forma de ser, de estar, de
conduzir a Igreja, de a abraçar, há uma pulsão do evangelho tão nítida, que
penso que a igreja do nosso tempo tem de estar muito grata a Deus por este
Pedro que lhe deu que é o Papa Francisco.”.
Quanto a poder dizer-se que é belo o Papa falar de um risco de cisma
referindo-se aos críticos, o Cardeal pôs os pontos nos is:
“O Papa disse que não tinha medo, que é uma coisa diferente. Um pai não
tem medo. O que se espera de um pai ou de um guia é que ele não tenha medo. É
essa confiança que nos mantém unidos, mesmo no meio das dificuldades, das
incertezas, porque este momento da história é de enorme transformação. No meio
disto tudo, manter a confiança é uma coisa muito, muito importante.”.
E falou do
perfil deste Papa e do modo como vê a riqueza das diferenças e o dom da unidade:
“O Papa Francisco é alguém que, de facto, inspira confiança. Quanto ao
resto, ele é muito claro e, repetindo as palavras de Jesus, pede que todos
sejam um. A Igreja tem dois mil anos de história. É uma comunidade muito
polifónica, com sensibilidades espirituais muito diferentes. As diferenças de
sensibilidade nunca foram um problema. São uma riqueza, uma expressão
pneumática da natureza da igreja, da expressão do espírito santo. O importante
é convergir naquilo que é essencial sabendo que a Igreja se mantém unida à
volta de Pedro.”.
Vindo a talho de foice o convite que o Presidente da República lhe fez
para presidir às comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades,
disse confiar que, tal como “tem de
passar o outono, o inverno, a primavera”, há de surgir-lhe “o fio essencial das
palavras”. Ficou “muito comovido com o convite porque, no fundo, a tradição
portuguesa é convidar um cidadão a tomar a palavra e a falar aos outros
concidadãos”, o que “é um gesto democrático muito significativo e que nos ajuda
a criar coesão”.
Sobre as próximas eleições,
salienta que “as eleições são um momento muito belo, muito vital da democracia,
um momento de construção da vida comum” e que “o importante é a participação de
todos na construção do país”. E, sobre a posição dos cristãos, assegura:
“Aí penso que os cristãos não podem ficar ausentes. Têm de contribuir.
Não podem estar ausentes na vida pública, na participação política. Isso é
muito importante. Percebe-se que hoje há uma perceção de que não se pode
simplesmente delegar nas mãos de outros o nosso interesse pela causa pública,
pela construção da história, pelo futuro da humanidade. Uma certa crise da
democracia, que é no fundo a escassa participação dos cidadãos, vai ser
superada, porque as gerações mais novas dão todos os sinais de um empenho muito
maior e isso há de ter um reflexo da participação dos cristãos no espectro
democrático.”.
***
Enfim,
abundam os motivos para acreditarmos e esperarmos que o padre teólogo e poeta,
ora Arcebispo e Cardeal seja um cooperador estrénuo na reforma permanente da
Igreja com simplicidade, humildade, diálogo e eficácia. O Reino de Deus o
postula e o homem de Deus o cumpre.
2019.10.05 –
Louro de Carvalho
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