“Perseguidos e
Esquecidos?” é o título do novo relatório
da AIS (Fundação Ajuda à Igreja que Sofre) sobre
os cristãos oprimidos por causa da sua fé, que mostra claramente que o cristianismo é a
religião mais perseguida em todo o mundo, sendo que em alguns locais podemos
falar mesmo de um “genocídio”.
A
este respeito, Catarina
Martins Bettencourt, responsável pelo secretariado nacional da AIS em Portugal
lamenta que o Ocidente feche os olhos à violação dos direitos humanos na China,
pondo à frente os negócios e as relações comerciais e diz que o acordo da Santa
Sé com Pequim não garantiu mais liberdade religiosa aos católicos chineses,
antes pelo contrário.
Em entrevista à Renascença
e à Ecclesia – conduzida por Ângela Roque (Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia) –, de cujos conteúdos mais relevantes se dá conta,
explica tudo.
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Tendo começado por ser questionada sobre o alheamento dos média e dos
responsáveis políticos em relação à perseguição religiosa e à falta de
liberdade de culto, refere haver uma cada vez maior “maior perceção e
preocupação das entidades oficiais, das instâncias internacionais para esta
questão da liberdade religiosa, e em particular para o que está acontecer com
os cristãos”. Todavia, sente-se “que é muito pouco e que muitas vezes a
comunidade cristã acaba por ficar relegada para um segundo plano, não tem a
expressão nem a dimensão”. E aponta:
“Por tudo o que se passa no mundo, pela
forma como os nossos governantes também lidam com estas questões, vemos que não
conseguem ainda falar abertamente da perseguição aos cristãos. Muitas vezes há
pruridos em defender a comunidade cristã por poder parecer que estamos a
favorecer uma comunidade em detrimento de outra.”.
Quanto a essa perceção
entre nós, observa:
“Em Portugal
também, muitas vezes é difícil falar desta questão dos cristãos. Enquanto
instituição sentimos que precisamos de continuar a falar mais, de trazer cada
vez mais estes assuntos para os meios de comunicação social, para que as
pessoas estejam alertadas de que esta não é uma coisa do passado, é uma coisa
de hoje, que há perseguição, que há muitos países onde não há liberdade
religiosa e não se pode exprimir livremente o nosso credo. E ao mesmo tempo
dizer com clareza – e os números e todos os factos que temos apontam para isso
– que a comunidade cristã é mais perseguida hoje em dia.”.
No atinente ao facto de ter
sido Paulo Portas a apresentar este relatório, que relevou a importância do
trabalho da AIS para garantir que os cristãos não são esquecidos, disse esperar
que a sua presença tenha impacto, pois trata-se de “um homem que tem estado ativo no meio político, que
continua ativo nos meios de comunicação social”. E acentua:
“É preciso trazer esta questão para os media,
para o público em geral, dizer a todos claramente que o cristianismo é o
mais perseguido e que precisamos de fazer alguma coisa. Porque estamos a
assistir ao fim da presença da comunidade cristã em muitos países do mundo, e
isto deveria preocupar a todos porque, a partir do momento em que não temos
liberdade de expressão da nossa fé, as outras liberdades ou já se perderam, ou
estão em risco de se perder.”.
Depois, assegura que “é preciso olhar para estas questões da fé e da religião como um assunto
que é um assunto público que deve ser debatido”.
Interpelada sobre o impacto
dos relatórios periódicos da AIS, encarece a
importância destes relatórios (que são o testemunho do dia-a-dia de sofrimento de
muitos cristãos no mundo), a ponto de ter havido declarações das Nações Unidas,
de alguns governos do mundo. Menciona a declaração da própria ONU do Dia Internacional das Vítimas da Violência
em Relação à sua Religião ou Crença (22 agosto). E acrescenta:
“Tudo isto resulta do lobby que tem sido
feito pela AIS e por outras instituições no sentido de levar estes relatórios e
estes testemunhos, trazer pessoas dos vários países que estão a sofrer e
levá-los a estas instâncias. E isto tem sido muito importante para
alertar e para despertar as consciências dos governantes de que é preciso olhar
para isto, que a realidade não é o que se passa no nosso gabinete ou no nosso
continente, que há muito mais para além disso. (…) E só com esses relatórios,
com factos, é que conseguimos alertar as pessoas.”.
Refere que este relatório
vai ser apresentado às autoridades portuguesas e espera o convite do Parlamento
para a AIS discutir o tema com os deputados. E explica:
“Temos feito esse esforço de levar estes
documentos ao Parlamento, às instâncias de Governo, ao Presidente da República,
para que eles tenham consciência do que se está a passar e também possam, na
medida do possível, exercer a sua pressão junto das entidades internacionais,
de forma que este tema seja debatido e sejam tomadas medidas. Porque é disso
que se fala neste relatório, que temos de tomar medidas concretas para poder
ajudar estas comunidades que sofrem e que estão a ser perseguidas nos seus
países.”.
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Falando de conteúdos do relatório em concreto, diz que
o mais surpreendente “foi comprovar que poderíamos estar a assistir ao fim da
presença da comunidade cristã no Iraque e talvez na Síria”. Com efeito, os
números são dramáticos: aponta-se “para apenas 150 mil, com possibilidade de
serem menos, fala-se de 120 mil, ou seja, estamos praticamente sem presença da
comunidade cristã no Iraque”, quando em 2003 eram 1 milhão e meio.
Ora, a presença cristã “é
uma presença histórica, vem do início do cristianismo e a comunidade caldeia,
por exemplo, ainda hoje reza o Pai Nosso em aramaico”, afirmam os
entrevistadores. E Catarina Martins, começando por anuir, diz:
“Em aramaico, sim. No fundo é o fim
das nossas raízes enquanto comunidade cristã no ocidente, e infelizmente o que
nós escrevemos há quatro anos parece agora concretizar-se pelos factos. E é bom
frisar que este relatório – que quem quiser pode consultar no nosso site –
acaba em julho de 2019, portanto, de julho até hoje, outubro de 2019, a
situação ainda se deteriorou mais, tanto no Iraque como na Síria.”.
Confessa que não se sabe do
impacto adicional que a intervenção militar na Síria possa ter sobre esta comunidade cristã, que é cada vez mais
pequena. E, anotando que o relatório aponta para um decréscimo de 90% da
comunidade cristã no Iraque (“nos últimos anos, no período de uma geração caiu 90%”), verifica:
“Estamos a assistir a dias históricos,
tristes mas históricos, no sentido de que estamos a assistir ao desaparecimento
desta comunidade. É um facto marcante neste relatório.”.
Explicando a não perceção do predito impacto (houve morte
de civis, fuga de cristãos), aduz:
“Isso não está incluído no último relatório,
porque aconteceu agora, mas os relatos que temos é que nalgumas zonas onde a
comunidade cristã estava presente, mais uma vez, foram obrigados a fugir e a ir
para outras zonas. Continuam a ser uma comunidade pequena e continuam a ser uma
comunidade desprotegida. Os últimos relatos que recebemos mostram que a Igreja
está preocupada com a situação, com qual será o impacto destes ataques numa
comunidade tão pequena e que, provavelmente, vai tentar fugir e escapar de
novo. É mais um fator que fará aumentar o êxodo e deixar de vez o Médio
Oriente.”.
É certo que há territórios
em que já se iniciara um processo de reconstrução e de regresso dos cristãos. Questionada
se isso pode estar em causa, expõe:
“Nas zonas em que nós estamos a ajudar,
neste momento, à reconstrução e ao regresso, ainda não está em causa. Não
sabemos, efetivamente, o que vai acontecer, pelo que temos de esperar. O que
sabemos, porque recebemos essa informação da Igreja local, é que já há pequenas
comunidades – em zonas historicamente cristãs, mas para as quais os cristãos
ainda não tinham voltado –, pequenos grupos que ainda resistiam e que tiveram
de sair desta vez.”.
E não deixa de assinalar como outro facto marcante “a
mudança de continente, ou de zona do mundo, onde há maior perseguição”. Na
verdade, se nos últimos anos “o Médio Oriente era a grande preocupação da
Fundação AIS, era onde havia maior perseguição aos cristãos”, neste relatório,
no período analisado, “vemos que há um desvio para a Ásia”, com os ataques do
Sri Lanka e das Filipinas e com a situação a deteriorar-se na China.
***
Porém, sendo a Ásia o
continente menos seguro neste momento para os cristãos, não deixa de ser
preocupante o que se mantém relativamente
à África.
Refere a entrevistada, como conclusão muito
importante, “que neste período houve uma grande preocupação da comunidade
internacional para esta questão da perseguição”, mas que poderá, infelizmente, “ter
sido tarde para estas comunidades, se olharmos para o que está a acontecer no
Iraque e na Síria”. E faz votos para que não seja demasiado tarde para as
outras comunidades cristãs “que estão a passar neste momento o mesmo que o
Iraque e a Síria já passaram”.
De facto, a derrota
aparente do autoproclamado Estado Islâmico no Iraque e na Síria não foi a tempo
de evitar males maiores em termos de destruição do cristianismo. Diz Catarina
Martins:
“Há muitas famílias que regressaram às suas
casas, às suas terras de origem, mas temos problemas gravíssimos de segurança,
a comunidade cristã continua a não se sentir segura. Temos problemas
gravíssimos de emprego para os cristãos, e continuamos a sentir pressão,
porque está neste momento a ser discutida uma nova Constituição no Iraque em
que as minorias ficam ainda mais desprotegidas do que foram até agora.”.
Neste contexto, a Igreja preocupa-se seriamente em perceber
qual será o futuro destes poucos que restam, até que ponto é que a pressão exercida
durante anos pelo autoproclamado Estado Islâmico marcou o ponto final da
presença desta comunidade, apesar de todos os esforços.
Sendo estas comunidades
alvo de quem quer atacar o Ocidente (isto é, a
pertença cristã é vista como ocidentalismo), a entrevistada, ao ser
questionada como o Ocidente olha para estas minorias, disse:
“Muitas vezes esquecemo-nos. Dou um exemplo:
no domingo de Páscoa, quando houve os ataques no Sri Lanka, na missa aonde fui
o padre nem sequer falou nisso. E este é apenas um exemplo, provavelmente isto
repetiu-se em várias paróquias, em vários países da Europa.”.
Releva que o Estado Islâmico perdeu o território, mas
não perdeu a força, a ideologia que se mantêm nestes territórios, o que “é o
mais perigoso” por ser “o mais difícil de controlar”. Com efeito, um ataque a
estas comunidades é como se fosse um ataque ao Ocidente, mas “estamos muitas
vezes distraídos com as nossas coisas” e “não
olhamos para isto como sendo uma coisa nossa, não sentimos que nos estão a
atacar a nós também, como cristãos, como comunidade”.
***
Sobre a postura do Vaticano
e do Papa Francisco (A AIS é uma fundação
pontifícia, dependente da Santa Sé), frisa que receberam o relatório e os dados são
do seu conhecimento. E de Francisco vinca:
“Tem sido, de facto, uma pessoa
extraordinária, neste sentido de nos alertar para o que se está a passar no
mundo, de nos chamar a atenção enquanto cristãos: há comunidades que estão a
sofrer e nós, como cristãos, temos este dever de nos lembrar deles, de rezar
por eles, apoiá-los na nossa solidariedade e nas nossas orações. Isso tem sido
extraordinário para chamar a atenção, porque muitas vezes estes ataques que
acontecem pela África, pela Ásia, passam como que despercebidos no Ocidente.”.
Quanto à China, indica que os
dados “apontam para o aumento da perseguição aos cristãos”, apesar do acordo
entre Pequim e o Vaticano para a nomeação de bispos. E explana:
“Os dados de que nós dispomos (…) apontam
para uma deterioração da situação. Hoje é mais difícil, apesar de haver um
acordo provisório, a presença da comunidade cristã. Tem havido como que uma
‘limpeza’ dos símbolos, uma pressão sobre a comunidade cristã muito grande, nos
últimos tempos, maior até do que antes do acordo. Isto são factos que podemos
mostrar: a situação piorou para a comunidade cristã na China nos últimos dois
anos.”.
E a razão de os ocidentais
se calarem quanto ao não respeito pelos direitos humanos e, em particular, o da
liberdade religiosa prende-se com a força do dinheiro, que “acaba por falar
mais alto”. E a responsável
pelo secretariado nacional da AIS em Portugal observa:
“As relações
económicas acabam por ter uma força muito grande, não vemos os governos nem as
instâncias internacionais a falar desta questão abertamente ou a dizer ‘não há
negócios, não há relações comerciais e económicas se não houver respeito pelos
Direitos Humanos’ na China”.
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Falando da África,
onde o cristianismo está a crescer e há muitas vocações, mas a situação é
crítica em termos de perseguição religiosa, desenvolve:
“Neste relatório mostramos que a situação
piorou na República Centro-Africana, mas temos a Nigéria, o Sudão, o Egito,
onde tudo se mantém igual. Não houve alterações significativas, a situação
manteve-se dramática: não piorou, mas também não melhorou. Continuamos a
assistir à presença de grupos radicais, que atuam de uma forma impune, com
algum esquecimento do Ocidente…”.
Refere que, no caso da
Nigéria, o Boko Haram, que já surgiu há 10 anos, “continua a atuar, a provocar o deslocamento de milhares e milhares de
pessoas, continua a provocar a morte, a destruir aldeias”. Porém, no Ocidente
continuamos “a não olhar para a África, um continente riquíssimo, com muitas
potencialidades” e que, “em termos de Igreja, é um continente muito vivo, com
muitas vocações, mas que continua a sofrer, diariamente, estas perseguições”.
Sobre a complicação das
coisas por via da ameaça radical islâmica e dos conflitos tribais, frisa:
“Há muitas dificuldades para as comunidades,
além das questões económicas: são países riquíssimos, mas com uma corrupção
enorme, em que muitas vezes as pessoas acabam por ser expulsas porque vivem em
zonas onde poderá haver exploração. É um conjunto de fatores (…) que faz com
que seja o continente com o maior número de deslocados e o maior número de
pessoas pobres.”.
É, pois, “um continente com muito potencial, mas que
está sozinho, muitas vezes, a tentar combater estes grupos radicais, que querem
construir um califado e ser um continente islâmico”.
No atinente à presença da
Igreja Católica e da AIS, refere:
“Na
apresentação do relatório esteve connosco o padre Gideon, da Nigéria, que veio
exatamente da diocese mais mártir do país, Maiduguri, onde o Boko Haram nasceu
e está muito ativo, ainda. Ele falou-nos da importância da AIS, e disse uma
coisa muito bonita: ‘o título deste relatório é «Perseguidos e Esquecidos?». Nós somos perseguidos, mas não somos
esquecidos pela AIS’.”.
E a ajuda da AIS não é
apenas ajuda pastoral, “porque neste
momento, para se poder ajudar pastoralmente uma comunidade, primeiro tem que se
alimentar, que ter segurança”. É, de facto, “necessário ajudar, ter espaços
para que as pessoas se encontrem, apoiar a parte da formação e da mobilidade
para os padres”. E diz Catarina Bettencourt:
“Nós somos um bocadinho da Nigéria, que é um
país enorme, onde as necessidades são muitas. A AIS tem estado presente,
naquilo que a Igreja necessita, porque essa é uma forma de as comunidades
cristãs conseguirem continuar a estar presentes, nos seus países.”.
Em relação aos projetos que
a AIS está a apoiar, neste momento, contabiliza:
“Em 2018, apoiámos cerca de 5 mil projetos,
em 145 países. Há sempre esta generosidade, foram cerca de 80 milhões de euros
que nós enviámos para estes países, em projetos concretos de ajuda pastoral:
construção de igrejas, de locais de apoio às paróquias, de ajuda à mobilidade,
à formação, à comunicação social. Porque em muitos destes países as distâncias
são tão grandes que é preciso o apoio da comunicação social. E, depois, a parte
de emergência, da sobrevivência das próprias pessoas, que é fundamental.”.
E diz que “tudo
isto se vai materializando com a generosidade dos benfeitores, em Portugal e um
pouco por todo o mundo”.
Referindo que a
contribuição de Portugal tem sido significativa e que tem aumentado, sempre,
verifica esta cada vez maior preocupação
por estas necessidades da parte dos portugueses, pois se “não estamos bem” –
diz – “há muitos que estão pior do que eu e eu tenho de ajudar”.
Releva o testemunho do Padre Gideon, que enaltece o
apoio extraordinário da AIS a nível psicológico, de tratamento das pessoas, e
que contou como é difícil, especialmente para as mulheres, e as mulheres cristãs
são uma vítima ainda maior: “muitas foram raptadas, estiveram dois, três anos
com o Boko Haram, foram violadas e, quando regressam, as suas famílias, muitas
vezes, não as aceitam, porque vêm com filhos que são filhos de terroristas”. E a
mensagem que o Bispo de Maiduguri enviou foi:
“Sem a ajuda da Igreja, de instituições como
a AIS, não seria possível que eles estivessem vivos e se mantivessem presentes
no sítio onde querem estar, porque nasceram ali, viveram ali e têm o direito de
ali estar”.
***
Há efetivamente muitos que se preocupam e que ajudam,
mas as necessidades são grandes e cada vez mais e maiores. Por isso, todas as
ajudas são bem-vindas. E, sobretudo, importa travar a perseguição e o subdesenvolvimento
e anular as estruturas sociais, políticas e económicas de pecado. A instauração
da paz passa por aí. E a esperança de que a ordem mundial mudará para melhor tem
que se manter viva.
2019.10.25 – Louro de Carvalho
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