sexta-feira, 25 de outubro de 2019

“Perseguidos e Esquecidos?”


Perseguidos e Esquecidos?” é o título do novo relatório da AIS (Fundação Ajuda à Igreja que Sofre) sobre os cristãos oprimidos por causa da sua fé, que mostra claramente que o cristianismo é a religião mais perseguida em todo o mundo, sendo que em alguns locais podemos falar mesmo de um “genocídio”. 
A este respeito, Catarina Martins Bettencourt, responsável pelo secretariado nacional da AIS em Portugal lamenta que o Ocidente feche os olhos à violação dos direitos humanos na China, pondo à frente os negócios e as relações comerciais e diz que o acordo da Santa Sé com Pequim não garantiu mais liberdade religiosa aos católicos chineses, antes pelo contrário.
Em entrevista à Renascença e à Ecclesia conduzida por Ângela Roque (Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia) –, de cujos conteúdos mais relevantes se dá conta, explica tudo.
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Tendo começado por ser questionada sobre o alheamento dos média e dos responsáveis políticos em relação à perseguição religiosa e à falta de liberdade de culto, refere haver uma cada vez maior “maior perceção e preocupação das entidades oficiais, das instâncias internacionais para esta questão da liberdade religiosa, e em particular para o que está acontecer com os cristãos”. Todavia, sente-se “que é muito pouco e que muitas vezes a comunidade cristã acaba por ficar relegada para um segundo plano, não tem a expressão nem a dimensão”. E aponta:
Por tudo o que se passa no mundo, pela forma como os nossos governantes também lidam com estas questões, vemos que não conseguem ainda falar abertamente da perseguição aos cristãos. Muitas vezes há pruridos em defender a comunidade cristã por poder parecer que estamos a favorecer uma comunidade em detrimento de outra.”.
Quanto a essa perceção entre nós, observa:
Em Portugal também, muitas vezes é difícil falar desta questão dos cristãos. Enquanto instituição sentimos que precisamos de continuar a falar mais, de trazer cada vez mais estes assuntos para os meios de comunicação social, para que as pessoas estejam alertadas de que esta não é uma coisa do passado, é uma coisa de hoje, que há perseguição, que há muitos países onde não há liberdade religiosa e não se pode exprimir livremente o nosso credo. E ao mesmo tempo dizer com clareza – e os números e todos os factos que temos apontam para isso – que a comunidade cristã é mais perseguida hoje em dia.”.
No atinente ao facto de ter sido Paulo Portas a apresentar este relatório, que relevou a importância do trabalho da AIS para garantir que os cristãos não são esquecidos, disse esperar que a sua presença tenha impacto, pois trata-se de “um homem que tem estado ativo no meio político, que continua ativo nos meios de comunicação social”. E acentua:
É preciso trazer esta questão para os media, para o público em geral, dizer a todos claramente que o cristianismo  é o mais perseguido e que precisamos de fazer alguma coisa. Porque estamos a assistir ao fim da presença da comunidade cristã em muitos países do mundo, e isto deveria preocupar a todos porque, a partir do momento em que não temos liberdade de expressão da nossa fé, as outras liberdades ou já se perderam, ou estão em risco de se perder.”.
Depois, assegura que “é preciso olhar para estas questões da fé e da religião como um assunto que é um assunto público que deve ser debatido”.
Interpelada sobre o impacto dos relatórios periódicos da AIS, encarece a importância destes relatórios (que são o testemunho do dia-a-dia de sofrimento de muitos cristãos no mundo), a ponto de ter havido declarações das Nações Unidas, de alguns governos do mundo. Menciona a declaração da própria ONU do Dia Internacional das Vítimas da Violência em Relação à sua Religião ou Crença (22 agosto). E acrescenta:
Tudo isto resulta do lobby que tem sido feito pela AIS e por outras instituições no sentido de levar estes relatórios e estes testemunhos, trazer pessoas dos vários países que estão a sofrer e levá-los a estas instâncias. E isto tem sido  muito importante para alertar e para despertar as consciências dos governantes de que é preciso olhar para isto, que a realidade não é o que se passa no nosso gabinete ou no nosso continente, que há muito mais para além disso. (…) E só com esses relatórios, com factos, é que conseguimos alertar as pessoas.”.
Refere que este relatório vai ser apresentado às autoridades portuguesas e espera o convite do Parlamento para a AIS discutir o tema com os deputados. E explica:
Temos feito esse esforço de levar estes documentos ao Parlamento, às instâncias de Governo, ao Presidente da República, para que eles tenham consciência do que se está a passar e também possam, na medida do possível, exercer a sua pressão junto das entidades internacionais, de forma que este tema seja debatido e sejam tomadas medidas. Porque é disso que se fala neste relatório, que temos de tomar medidas concretas para poder ajudar estas comunidades que sofrem e que estão a ser perseguidas nos seus países.”.
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Falando de conteúdos do relatório em concreto, diz que o mais surpreendente “foi comprovar que poderíamos estar a assistir ao fim da presença da comunidade cristã no Iraque e talvez na Síria”. Com efeito, os números são dramáticos: aponta-se “para apenas 150 mil, com possibilidade de serem menos, fala-se de 120 mil, ou seja, estamos praticamente sem presença da comunidade cristã no Iraque”, quando em 2003 eram 1 milhão e meio.
Ora, a presença cristã “é uma presença histórica, vem do início do cristianismo e a comunidade caldeia, por exemplo, ainda hoje reza o Pai Nosso em aramaico”, afirmam os entrevistadores. E Catarina Martins, começando por anuir, diz:
“Em aramaico, sim. No fundo é o fim das nossas raízes enquanto comunidade cristã no ocidente, e infelizmente o que nós escrevemos há quatro anos parece agora concretizar-se pelos factos. E é bom frisar que este relatório – que quem quiser pode consultar no nosso site – acaba em julho de 2019, portanto, de julho até hoje, outubro de 2019, a situação ainda se deteriorou mais, tanto no Iraque como na Síria.”.
Confessa que não se sabe do impacto adicional que a intervenção militar na Síria possa ter sobre esta comunidade cristã, que é cada vez mais pequena. E, anotando que o relatório aponta para um decréscimo de 90% da comunidade cristã no Iraque (“nos últimos anos, no período de uma geração caiu 90%”), verifica:
Estamos a assistir a dias históricos, tristes mas históricos, no sentido de que estamos a assistir ao desaparecimento desta comunidade. É um facto marcante neste relatório.”.
Explicando a não perceção do predito impacto (houve morte de civis, fuga de cristãos), aduz:
Isso não está incluído no último relatório, porque aconteceu agora, mas os relatos que temos é que nalgumas zonas onde a comunidade cristã estava presente, mais uma vez, foram obrigados a fugir e a ir para outras zonas. Continuam a ser uma comunidade pequena e continuam a ser uma comunidade desprotegida. Os últimos relatos que recebemos mostram que a Igreja está preocupada com a situação, com qual será o impacto destes ataques numa comunidade tão pequena e que, provavelmente, vai tentar fugir e escapar de novo. É mais um fator que fará aumentar o êxodo e deixar de vez o Médio Oriente.”.
É certo que há territórios em que já se iniciara um processo de reconstrução e de regresso dos cristãos. Questionada se isso pode estar em causa, expõe:
Nas zonas em que nós estamos a ajudar, neste momento, à reconstrução e ao regresso, ainda não está em causa. Não sabemos, efetivamente, o que vai acontecer, pelo que temos de esperar. O que sabemos, porque recebemos essa informação da Igreja local, é que já há pequenas comunidades – em zonas historicamente cristãs, mas para as quais os cristãos ainda não tinham voltado –, pequenos grupos que ainda resistiam e que tiveram de sair desta vez.”.
E não deixa de assinalar como outro facto marcante “a mudança de continente, ou de zona do mundo, onde há maior perseguição”. Na verdade, se nos últimos anos “o Médio Oriente era a grande preocupação da Fundação AIS, era onde havia maior perseguição aos cristãos”, neste relatório, no período analisado, “vemos que há um desvio para a Ásia”, com os ataques do Sri Lanka e das Filipinas e com a situação a deteriorar-se na China.
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Porém, sendo a Ásia o continente menos seguro neste momento para os cristãos, não deixa de ser preocupante o que se mantém relativamente à África.
Refere a entrevistada, como conclusão muito importante, “que neste período houve uma grande preocupação da comunidade internacional para esta questão da perseguição”, mas que poderá, infelizmente, “ter sido tarde para estas comunidades, se olharmos para o que está a acontecer no Iraque e na Síria”. E faz votos para que não seja demasiado tarde para as outras comunidades cristãs “que estão a passar neste momento o mesmo que o Iraque e a Síria já passaram”.
De facto, a derrota aparente do autoproclamado Estado Islâmico no Iraque e na Síria não foi a tempo de evitar males maiores em termos de destruição do cristianismo. Diz Catarina Martins:
Há muitas famílias que regressaram às suas casas, às suas terras de origem, mas temos problemas gravíssimos de segurança, a comunidade cristã continua a não se sentir segura. Temos problemas gravíssimos de emprego para os cristãos, e continuamos a sentir pressão, porque está neste momento a ser discutida uma nova Constituição no Iraque em que as minorias ficam ainda mais desprotegidas do que foram até agora.”.
Neste contexto, a Igreja preocupa-se seriamente em perceber qual será o futuro destes poucos que restam, até que ponto é que a pressão exercida durante anos pelo autoproclamado Estado Islâmico marcou o ponto final da presença desta comunidade, apesar de todos os esforços.
Sendo estas comunidades alvo de quem quer atacar o Ocidente (isto é, a pertença cristã é vista como ocidentalismo), a entrevistada, ao ser questionada como o Ocidente olha para estas minorias, disse:
Muitas vezes esquecemo-nos. Dou um exemplo: no domingo de Páscoa, quando houve os ataques no Sri Lanka, na missa aonde fui o padre nem sequer falou nisso. E este é apenas um exemplo, provavelmente isto repetiu-se em várias paróquias, em vários países da Europa.”.
Releva que o Estado Islâmico perdeu o território, mas não perdeu a força, a ideologia que se mantêm nestes territórios, o que “é o mais perigoso” por ser “o mais difícil de controlar”. Com efeito, um ataque a estas comunidades é como se fosse um ataque ao Ocidente, mas “estamos muitas vezes distraídos com as nossas coisas” e “não olhamos para isto como sendo uma coisa nossa, não sentimos que nos estão a atacar a nós também, como cristãos, como comunidade”.
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Sobre a postura do Vaticano e do Papa Francisco (A AIS é uma fundação pontifícia, dependente da Santa Sé), frisa que receberam o relatório e os dados são do seu conhecimento. E de Francisco vinca:
Tem sido, de facto, uma pessoa extraordinária, neste sentido de nos alertar para o que se está a passar no mundo, de nos chamar a atenção enquanto cristãos: há comunidades que estão a sofrer e nós, como cristãos, temos este dever de nos lembrar deles, de rezar por eles, apoiá-los na nossa solidariedade e nas nossas orações. Isso tem sido extraordinário para chamar a atenção, porque muitas vezes estes ataques que acontecem pela África, pela Ásia, passam como que despercebidos no Ocidente.”.
Quanto à China, indica que os dados “apontam para o aumento da perseguição aos cristãos”, apesar do acordo entre Pequim e o Vaticano para a nomeação de bispos. E explana:
Os dados de que nós dispomos (…) apontam para uma deterioração da situação. Hoje é mais difícil, apesar de haver um acordo provisório, a presença da comunidade cristã. Tem havido como que uma ‘limpeza’ dos símbolos, uma pressão sobre a comunidade cristã muito grande, nos últimos tempos, maior até do que antes do acordo. Isto são factos que podemos mostrar: a situação piorou para a comunidade cristã na China nos últimos dois anos.”.
E a razão de os ocidentais se calarem quanto ao não respeito pelos direitos humanos e, em particular, o da liberdade religiosa prende-se com a força do dinheiro, que “acaba por falar mais alto”. E a responsável pelo secretariado nacional da AIS em Portugal observa:
As relações económicas acabam por ter uma força muito grande, não vemos os governos nem as instâncias internacionais a falar desta questão abertamente ou a dizer ‘não há negócios, não há relações comerciais e económicas se não houver respeito pelos Direitos Humanos’ na China”.
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Falando da África, onde o cristianismo está a crescer e há muitas vocações, mas a situação é crítica em termos de perseguição religiosa, desenvolve:
Neste relatório mostramos que a situação piorou na República Centro-Africana, mas temos a Nigéria, o Sudão, o Egito, onde tudo se mantém igual. Não houve alterações significativas, a situação manteve-se dramática: não piorou, mas também não melhorou. Continuamos a assistir à presença de grupos radicais, que atuam de uma forma impune, com algum esquecimento do Ocidente…”.
Refere que, no caso da Nigéria, o Boko Haram, que já surgiu há 10 anos, “continua a atuar, a provocar o deslocamento de milhares e milhares de pessoas, continua a provocar a morte, a destruir aldeias”. Porém, no Ocidente continuamos “a não olhar para a África, um continente riquíssimo, com muitas potencialidades” e que, “em termos de Igreja, é um continente muito vivo, com muitas vocações, mas que continua a sofrer, diariamente, estas perseguições”.
Sobre a complicação das coisas por via da ameaça radical islâmica e dos conflitos tribais, frisa:
Há muitas dificuldades para as comunidades, além das questões económicas: são países riquíssimos, mas com uma corrupção enorme, em que muitas vezes as pessoas acabam por ser expulsas porque vivem em zonas onde poderá haver exploração. É um conjunto de fatores (…) que faz com que seja o continente com o maior número de deslocados e o maior número de pessoas pobres.”.
É, pois, “um continente com muito potencial, mas que está sozinho, muitas vezes, a tentar combater estes grupos radicais, que querem construir um califado e ser um continente islâmico”.
No atinente à presença da Igreja Católica e da AIS, refere:
Na apresentação do relatório esteve connosco o padre Gideon, da Nigéria, que veio exatamente da diocese mais mártir do país, Maiduguri, onde o Boko Haram nasceu e está muito ativo, ainda. Ele falou-nos da importância da AIS, e disse uma coisa muito bonita: ‘o título deste relatório é «Perseguidos e Esquecidos?». Nós somos perseguidos, mas não somos esquecidos pela AIS’.”.
E a ajuda da AIS não é apenas ajuda pastoral, “porque neste momento, para se poder ajudar pastoralmente uma comunidade, primeiro tem que se alimentar, que ter segurança”. É, de facto, “necessário ajudar, ter espaços para que as pessoas se encontrem, apoiar a parte da formação e da mobilidade para os padres”. E diz Catarina Bettencourt:
Nós somos um bocadinho da Nigéria, que é um país enorme, onde as necessidades são muitas. A AIS tem estado presente, naquilo que a Igreja necessita, porque essa é uma forma de as comunidades cristãs conseguirem continuar a estar presentes, nos seus países.”.
Em relação aos projetos que a AIS está a apoiar, neste momento, contabiliza:
Em 2018, apoiámos cerca de 5 mil projetos, em 145 países. Há sempre esta generosidade, foram cerca de 80 milhões de euros que nós enviámos para estes países, em projetos concretos de ajuda pastoral: construção de igrejas, de locais de apoio às paróquias, de ajuda à mobilidade, à formação, à comunicação social. Porque em muitos destes países as distâncias são tão grandes que é preciso o apoio da comunicação social. E, depois, a parte de emergência, da sobrevivência das próprias pessoas, que é fundamental.”.
E diz que “tudo isto se vai materializando com a generosidade dos benfeitores, em Portugal e um pouco por todo o mundo.
Referindo que a contribuição de Portugal tem sido significativa e que tem aumentado, sempre, verifica esta cada vez maior preocupação por estas necessidades da parte dos portugueses, pois se “não estamos bem” – diz – “há muitos que estão pior do que eu e eu tenho de ajudar”.
Releva o testemunho do Padre Gideon, que enaltece o apoio extraordinário da AIS a nível psicológico, de tratamento das pessoas, e que contou como é difícil, especialmente para as mulheres, e as mulheres cristãs são uma vítima ainda maior: “muitas foram raptadas, estiveram dois, três anos com o Boko Haram, foram violadas e, quando regressam, as suas famílias, muitas vezes, não as aceitam, porque vêm com filhos que são filhos de terroristas”. E a mensagem que o Bispo de Maiduguri enviou foi:
Sem a ajuda da Igreja, de instituições como a AIS, não seria possível que eles estivessem vivos e se mantivessem presentes no sítio onde querem estar, porque nasceram ali, viveram ali e têm o direito de ali estar”.
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Há efetivamente muitos que se preocupam e que ajudam, mas as necessidades são grandes e cada vez mais e maiores. Por isso, todas as ajudas são bem-vindas. E, sobretudo, importa travar a perseguição e o subdesenvolvimento e anular as estruturas sociais, políticas e económicas de pecado. A instauração da paz passa por aí. E a esperança de que a ordem mundial mudará para melhor tem que se manter viva.
2019.10.25 – Louro de Carvalho

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