quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Volta à ribalta do palco nacional o caso de Tancos



Não é convincente a asserção de hoje, dia 10 de outubro, da Procuradora-Geral da República de que o Ministério Público (MP) “não se pauta por critérios políticos” e que, no caso da acusação do processo de Tancos, foi simplesmente cumprida a lei.
Com efeito, admitindo que o MP não tem objetivos de baralhação da cena política, não deixa de ser verdade que os procuradores conhecem o calendário político e sabem que o tempo em que dão a conhecer publicamente os seus atos não é anódino, ao menos da parte dos potenciais aproveitadores dos casos. E, no atinente ao cumprimento da lei, há muitas formas de a cumprir e de a contornar. O artigo de Sócrates no Expresso diário diz – e bem – que é um a argumento muito fraco a invocação de que o prazo de prisão preventiva estava a expirar para alguns arguidos. Na verdade, Sócrates é pouco tido em conta presentemente, o que não quer dizer que não tenha razão em algo do que diz, até porque os seus juristas não dormem. Mas o MP já tem encontrado formas de ultrapassar prazos legais e, se havia arguidos que não podiam continuar em prisão preventiva, restava o termo de identidade e residência, se já não havia perigo de fuga, de perturbação do inquérito e de continuação da prática de crime. De resto, é de perguntar se ainda continuam presos depois da acusação ou se já aguardam o julgamento em liberdade.
Sobre a data em que foi conhecida a acusação de Tancos (durante a campanha eleitoral), Lucília Gago assegurou que o MP não tem que “atender a esse tipo de timings”. Assim o assegurou à Lusa quando questionada sobre a data em que foi conhecida a acusação do caso de Tancos:
O Ministério Público não se pauta, obviamente, por critérios políticos nem tem que atender a esse tipo de timings. Tudo o que envolva a avaliação política das situações é para outra dimensão que não o Ministério Público.”.
Se a política não esgota os casos de comportamento dos governantes, também a justiça não pode ignorar que alguns dos seus atos têm repercussões políticas e passíveis de serem utilizadas como ama de arremesso político-partidário.
O ex-Ministro da Defesa Azeredo Lopes é acusado de abuso de poder, denegação de justiça, prevaricação e favorecimento pessoal. O despacho de acusação do caso foi conhecido a 26 de setembro, véspera de terminar o prazo máximo de prisão preventiva de 7 arguidos e, segundo Lucília Gago, “foi cumprida a lei, foi considerado que havia condições para o encerramento do caso e foi isso que aconteceu”. Ora, ninguém acredita que o MP não soubesse que este facto, vertido em definitivo para acusação, não fosse aproveitado por militantes antissocialistas na campanha eleitoral. E, como se exige que os demais órgãos de soberania não perturbem o funcionamento do poder judiciário, também se exige que este não perturbe os momentos fortes da reformulação do poder político qua tali. É uma questão de bom senso. E o processo de Tancos foi um tema incontornável da campanha eleitoral para as legislativas com os líderes do PS e do PSD envolvidos numa troca direta de palavras depois de ter sido conhecida a acusação.
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Por outro lado, Lucília Gago considerou que o diretor do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal) fez uso das funções diretivas ao impedir a inquirição do Presidente da República e do Primeiro-Ministro no caso, tendo a intervenção de Albano Pinto surgido “num contexto processual e factual que mais não foram do que o exercício das funções diretivas que lhe estão cometidas”. Com efeito, segundo nota da Procuradoria-Geral da República, “na sequência da análise a que direta e aprofundadamente procedeu, o diretor do DCIAP concluiu, perante os elementos constantes dos autos, que tais inquirições não revestiam relevância para as finalidades do inquérito nem tão pouco se perfilavam como imprescindíveis para o apuramento dos crimes objeto de investigação, dos seus agentes e da sua responsabilidade”.
Na verdade, a Procuradoria-Geral da República (PGR) havia revelado que, na fase final do inquérito, foi equacionada, mas depois afastada, “a pertinência da inquirição como testemunhas do Presidente da República e do Primeiro-Ministro”.
Porém, a distonia, pelo menos aparente, entre os procuradores titulares do processo e o diretor do DCIAP – se a Procuradoria-Geral diz que estes concordaram como o diretor do DCIAP, vozes sussurravam que houve forte protesto – não fica sem ser abordada. Assim, a Procuradora-Geral da República revelou que é “matéria relevante e interessante a dicotomia entre autonomia do Ministério Público e os poderes hierárquicos” e avançou que este tema será analisado e discutido em reunião do Conselho Superior do Ministério Público, no próximo dia 22.
E, garantindo que não teve conhecimento prévio nem intervenção sobre a tomada de posição do diretor do DCIAP, a Procuradora-Geral da República frisou que a decisão de Albano Pinto “se circunscreveu aos seus poderes de direção” do departamento. Por seu turno, a nota da PGR adiantava também:
O diretor do DCIAP entendeu, ponderada também a data limite para o encerramento do inquérito, que tais diligências não deveriam ter lugar, o que mereceu a anuência dos magistrados titulares”.
Não obstante, o facto de terem sido abolidas do processo mais de quarenta perguntas a fazer a generais, deixa no ar a dúvida se não eram relevantes ou se tinham efeitos políticos e de que sentido. Ora, para bem da verdade, que serve a justiça, tudo o que se entende que deve ser questionado, deve sê-lo efetivamente. Caso contrário, é legítimo pôr em causa a sanidade processual e a sustentabilidade duma futura decisão de pronúncia ou não e mesmo de condenação ou de absolvição.
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Entretanto, a justiça prossegue os seus termos.
O prazo para abertura de instrução do caso de furto e recuperação de armas de Tancos foi prolongado para 30 dias, segundo disse à Lusa fonte ligada ao processo. O prazo inicial era de 20 dias após a notificação da acusação, que foi conhecida em 26 de setembro, mas o juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu prolongá-lo por mais 10.
O ex-Ministro da Defesa Azeredo Lopes, o major Vasco Brazão e o coronel Luís Vieira, ambos da Polícia Judiciária Militar (PJM), todos arguidos no processo, manifestaram a intenção de requerer a abertura de instrução – uma fase processual facultativa na qual um juiz avalia se há indícios suficientes para levar os arguidos a julgamento.
O furto de material de guerra foi divulgado pelo Exército a 29 de junho de 2017. Quatro meses depois, a PJM revelou o aparecimento do material furtado, na região da Chamusca, a 20 quilómetros de Tancos, em colaboração de elementos do núcleo de investigação criminal da GNR de Loulé. E o MP acusou 23 pessoas de terrorismo, associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de documentos, tráfico de influência, abuso de poder, recetação e detenção de arma proibida. Nove dos 23 arguidos são acusados de planear e executar o furto e os restantes 14, entre eles, Azeredo Lopes, são acusados da encenação que esteve na base da recuperação do equipamento. Aguarda-se se e quantos serão pronunciados para julgamento após o debate instrutório.
O caso abalou as Forças Armadas, levou à demissão de Azeredo Lopes em 2018 e a polémica em torno do furto, tornado público pelo Exército em 29 de junho de 2017 com a indicação de que ocorrera no dia anterior, subiu de tom depois da aparente recuperação do material na região da Chamusca, no distrito de Santarém, em outubro de 2017, numa operação da PJM.
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Também a política continua a tratar o caso à sua maneira. E, se a campanha eleitoral, para o bem e para o mal, foi por ele condicionada, os agentes políticos parecem não descansar sobre Tancos. Para já, a Comissão Permanente da Assembleia da República, ainda em funções, que substitui o Plenário, procedeu ao debate após as eleições legislativas – debate a que nenhum membro do Governo compareceu e em que os partidos da direita exigiram respostas de Costa e os da esquerda puseram a hipótese de uma nova CPI (comissão parlamentar de inquérito).
No plano político a CPI ao caso de Tancos concluiu, em julho de 2019, que o ex-Ministro da Defesa, Azeredo Lopes, “secundarizou” o que sabia sobre a investigação da PJM, logo não o responsabilizou politicamente. Porém, no plano criminal, o MP acusou-o, em setembro de 2019, de “crimes de abuso de poder, denegação de justiça, prevaricação e favorecimento pessoal praticado por funcionário”, considerando que ele sabia da operação. Para tal, dispôs duma prova fundamental que nunca chegou ao Parlamento: as SMS trocadas com um deputado socialista em que o ex-governante assume que sabia de tudo.
Foi com referência a estas mensagens que Fernando Negrão, pelo PSD, iniciou o debate deste dia 9 de outubro na Comissão Permanente da Assembleia da República. Segundo o deputado, as mensagens que agora estão no processo-crime e que foram trocadas com o deputado socialista Tiago Barbosa Ribeiro, mostram que Azeredo Lopes “sabia e aceitou o plano de ‘recuperação’ das armas desaparecidas do paiol de Tancos”. E é daqui, afirmou, que nasce a “vertente política do caso”: Se Azeredo Lopes sabia, como é que António Costa desconhecia?
Para o PS esta vertente política não foi mais que uma “arma de arremesso político” disparada em plena campanha eleitoral. E o deputado Filipe Neto Brandão disse que, passado o “frenesim eleitoral”, deve o caso permanecer nas mãos dos tribunais. Não obstante, o PS está disponível para uma solução política que não foi verdadeiramente referida, com todas as suas letras, pelo PSD: uma nova comissão parlamentar de inquérito às responsabilidades políticas do caso.
Do seu lado, o PSD considera que, em “circunstâncias normais”, o Ministro da Defesa devia ter informado o seu Primeiro-Ministro de tudo o que sabia sobre Tancos. Mas, segundo acusa, Costa “teima em não responder”. E há perguntas que lhe têm que ser feitas, passando depois a descrevê-las. O PSD quer saber como Costa avalia a atuação do seu ex-Ministro da Defesa e quando soube e o que sabia sobre Tancos. “Se sabia e nada fez, foi conivente. Se não sabia, algo de estranho se passa no governo”. Disse-o Fernando Negrão, referindo que os portugueses têm que o saber.  Uma “dúvida política” que tem que ser esclarecida.
Apesar de recordar que o caso já foi alvo de uma CPI, a que António Costa respondeu por escrito, o PSD considera que as conclusões foram completamente “branqueadoras das responsabilidades políticas do governo”.
Para o PS, que manifestou, antes de intervir, algumas dúvidas sobre qual o deputado que avançaria para falar, não deve o Parlamento substituir-se à “avaliação judicial” (mas penso que pode trata-lo em paralelo). O deputado Filipe Neto Brandão lembra que, de facto, o MP tirou conclusões diferentes da CPI, a que ele próprio presidiu. Em discurso preparado, que depois foi entregue aos jornalistas, o deputado disse que não se pode concluir que foram “proferidas falsas declarações no âmbito da CPI” e explicou:
As declarações prestadas na CPI por vários depoentes, desde oficiais generais ao ex-titular da pasta da Defesa Nacional não permitem sustentar a factualidade que a comunicação social nos diz ter sido invocada pelo Ministério Público”.
Aliás, Filipe Neto Brandão atira mesmo a Assunção Cristas, “ainda” líder do CDS, por ter sugerido publicamente que o Parlamento devia entregar oficiosamente ao MP depoimentos que ele não pediu. E, lembrando que o MP apenas pediu ao Parlamento quatro depoimentos, apesar de todos os demais serem públicos, interroga: “Que pode isso representar senão uma tentativa de ingerência ou censura ao modo como o MP conduziu as diligências do inquérito?”.  
Telmo Correia, do CDS, também presente na maior parte das sessões da CPI, cujo partido votou contra no relatório final, disse que resultou claro na comissão que a PJM tinha feito uma investigação ilegal e que encenou a operação de recuperação das armas na Chamusca.
E Filipe Neto Brandão, que referiu várias vezes o princípio democrático da separação de poderes e o princípio da presunção de inocência do ex-ministro (que poderá não ser levado a julgamento), disse que o PS estará disponível, mesmo assim, para uma CPI se esta for requerida. Aliás, foi o único partido que o disse de forma tão clara nesta sessão: “Se uma nova CPI sobre Tancos vier, assim, a ser requerida, viabilizá-la-emos”.
Porém, Telmo Correia vaticina:
Se forem para uma segunda comissão de inquérito como foram para a primeira, não se vai chegar a conclusão nenhuma”.
Da parte do PCP, António Filipe deixou claro que agora deve ser a justiça a trabalhar no caso. Já o BE pôs a hipótese de se alterarem as conclusões do relatório final da CPI, o que não faz sentido pois o seu trabalho terminou. Só outra comissão pode chegar a conclusões diferentes.
Além da mensagem de telemóvel referida pelo PSD, o MP descobriu alguns encontros entre o então Ministro da Defesa, Azeredo Lopes, e o diretor da PJM, Luís Vieira. Perante o Parlamento, tanto o governante como o diretor da PJM, referiram que, após o furto ao paiol de Tancos, estiveram juntos em agosto de 2017, quando Luís Vieira lhe entregou um documento com uma posição jurídica (do penalista Rui Pereira) que fundamentava que a investigação ao assalto em Tancos devia ser da competência da PJM e que tinha sido erradamente entregue à PJ (Vieira diz que garante que apenas recebeu um telefonema, esclareceu uma dúvida e nunca diria tal coisa). Depois, a  18 de outubro, deu-lhe conta da recuperação das armas pedindo que o comunicado fosse emitido pelo próprio Ministério da Defesa. E, a 20 de outubro, terá sido uma reunião no Ministério da Defesa, com o chefe de gabinete de Azeredo Lopes, em que Vieira e o investigador major Brazão, entregaram um documento sobre a operação que tinham feito. Segundo o MP, no entanto, os encontros entre ambos foram mais.
Para o PSD, neste debate, segundo o deputado Duarte Marques, é estranho que “um assunto tão polémico” não tenha sido “partilhado com o Primeiro-Ministro”. “Ou o Governo andava em roda livre, ou António Costa tinha conhecimento e foi conivente”, disse o socialdemocrata.
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Enfim, o folhetim prossegue política e judicialmente. Os poderes são separados, mas o caso não permite a saída nem da esfera da justiça, nem da esfera da política. Cada uma deve tratá-lo segundo os seus critérios, mas o debate não pode ser silenciado nem num campo nem noutro e devem ser respeitados os tempos de uma e outra esfera.
2019.10.10 – Louro de Carvalho

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