Não é convincente a asserção de hoje, dia 10 de
outubro, da Procuradora-Geral
da República de que o Ministério Público (MP) “não se pauta por critérios políticos” e que, no caso da acusação do
processo de Tancos, foi simplesmente cumprida a lei.
Com efeito, admitindo que o MP não tem objetivos
de baralhação da cena política, não deixa de ser verdade que os procuradores
conhecem o calendário político e sabem que o tempo em que dão a conhecer
publicamente os seus atos não é anódino, ao menos da parte dos potenciais
aproveitadores dos casos. E, no atinente ao cumprimento da lei, há muitas
formas de a cumprir e de a contornar. O artigo de Sócrates no Expresso diário diz – e bem – que é um a
argumento muito fraco a invocação de que o prazo de prisão preventiva estava a
expirar para alguns arguidos. Na verdade, Sócrates é pouco tido em conta
presentemente, o que não quer dizer que não tenha razão em algo do que diz, até
porque os seus juristas não dormem. Mas o MP já tem encontrado formas de
ultrapassar prazos legais e, se havia arguidos que não podiam continuar em
prisão preventiva, restava o termo de identidade e residência, se já não havia
perigo de fuga, de perturbação do inquérito e de continuação da prática de
crime. De resto, é de perguntar se ainda continuam presos depois da acusação ou
se já aguardam o julgamento em liberdade.
Sobre a data
em que foi conhecida a acusação de Tancos (durante a campanha eleitoral), Lucília Gago assegurou que o MP não tem que
“atender a esse tipo de timings”.
Assim o assegurou à Lusa quando
questionada sobre a data em que foi conhecida a acusação do caso de Tancos:
“O Ministério Público não se pauta, obviamente, por critérios políticos
nem tem que atender a esse tipo de timings. Tudo o que envolva a
avaliação política das situações é para outra dimensão que não o Ministério
Público.”.
Se a
política não esgota os casos de comportamento dos governantes, também a justiça
não pode ignorar que alguns dos seus atos têm repercussões políticas e passíveis
de serem utilizadas como ama de arremesso político-partidário.
O ex-Ministro
da Defesa Azeredo Lopes é acusado de abuso de poder, denegação de justiça,
prevaricação e favorecimento pessoal. O despacho de acusação do caso foi
conhecido a 26 de setembro, véspera de terminar o prazo máximo de prisão
preventiva de 7 arguidos e, segundo Lucília Gago, “foi cumprida a lei, foi
considerado que havia condições para o encerramento do caso e foi isso que
aconteceu”. Ora, ninguém acredita que o MP não soubesse que este facto, vertido
em definitivo para acusação, não fosse aproveitado por militantes
antissocialistas na campanha eleitoral. E, como se exige que os demais órgãos
de soberania não perturbem o funcionamento do poder judiciário, também se exige
que este não perturbe os momentos fortes da reformulação do poder político qua tali. É uma questão de bom senso. E
o processo de Tancos foi um tema incontornável da campanha eleitoral para as
legislativas com os líderes do PS e do PSD envolvidos numa troca direta de
palavras depois de ter sido conhecida a acusação.
***
Por outro
lado, Lucília Gago considerou que o diretor do DCIAP (Departamento
Central de Investigação e Ação Penal) fez uso
das funções diretivas ao impedir a inquirição do Presidente da República e do
Primeiro-Ministro no caso, tendo a intervenção de Albano Pinto surgido “num
contexto processual e factual que mais não foram do que o exercício das funções
diretivas que lhe estão cometidas”. Com efeito, segundo nota da
Procuradoria-Geral da República, “na
sequência da análise a que direta e aprofundadamente procedeu, o diretor do
DCIAP concluiu, perante os elementos constantes dos autos, que tais inquirições
não revestiam relevância para as finalidades do inquérito nem tão pouco se
perfilavam como imprescindíveis para o apuramento dos crimes objeto de
investigação, dos seus agentes e da sua responsabilidade”.
Na verdade,
a Procuradoria-Geral da República (PGR) havia revelado que, na fase final do inquérito, foi equacionada, mas
depois afastada, “a pertinência da inquirição como testemunhas do Presidente da
República e do Primeiro-Ministro”.
Porém, a
distonia, pelo menos aparente, entre os procuradores titulares do processo e o
diretor do DCIAP – se a Procuradoria-Geral diz que estes concordaram como o
diretor do DCIAP, vozes sussurravam que houve forte protesto – não fica sem ser
abordada. Assim, a Procuradora-Geral da República revelou que é “matéria
relevante e interessante a dicotomia entre autonomia do Ministério Público e os
poderes hierárquicos” e avançou que este tema será analisado e discutido em
reunião do Conselho Superior do Ministério Público, no próximo dia 22.
E, garantindo
que não teve conhecimento prévio nem intervenção sobre a tomada de posição do
diretor do DCIAP, a Procuradora-Geral da República frisou que a decisão de
Albano Pinto “se circunscreveu aos seus
poderes de direção” do departamento. Por seu turno, a nota da PGR adiantava
também:
“O diretor do DCIAP entendeu, ponderada também a data limite para o
encerramento do inquérito, que tais diligências não deveriam ter lugar, o que
mereceu a anuência dos magistrados titulares”.
Não
obstante, o facto de terem sido abolidas do processo mais de quarenta perguntas
a fazer a generais, deixa no ar a dúvida se não eram relevantes ou se tinham
efeitos políticos e de que sentido. Ora, para bem da verdade, que serve a
justiça, tudo o que se entende que deve ser questionado, deve sê-lo
efetivamente. Caso contrário, é legítimo pôr em causa a sanidade processual e a
sustentabilidade duma futura decisão de pronúncia ou não e mesmo de condenação
ou de absolvição.
***
Entretanto,
a justiça prossegue os seus termos.
O prazo para
abertura de instrução do caso de furto e recuperação de armas de Tancos foi prolongado
para 30 dias, segundo disse à Lusa
fonte ligada ao processo. O prazo
inicial era de 20 dias após a notificação da acusação, que foi conhecida
em 26 de setembro, mas o juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa
decidiu prolongá-lo por mais 10.
O ex-Ministro
da Defesa Azeredo Lopes, o major Vasco Brazão e o coronel Luís Vieira, ambos da
Polícia Judiciária Militar (PJM), todos
arguidos no processo, manifestaram a intenção de requerer a abertura de
instrução – uma fase processual facultativa na qual um juiz avalia se há
indícios suficientes para levar os arguidos a julgamento.
O furto de
material de guerra foi divulgado pelo Exército a 29 de junho de 2017. Quatro
meses depois, a PJM revelou o aparecimento do material furtado, na região da
Chamusca, a 20 quilómetros de Tancos, em colaboração de elementos do núcleo de
investigação criminal da GNR de Loulé. E o MP acusou 23 pessoas de terrorismo,
associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de
documentos, tráfico de influência, abuso de poder, recetação e detenção de arma
proibida. Nove dos 23 arguidos são acusados de planear e executar o furto e os
restantes 14, entre eles, Azeredo Lopes, são acusados da encenação que esteve
na base da recuperação do equipamento. Aguarda-se se e quantos serão
pronunciados para julgamento após o debate instrutório.
O caso
abalou as Forças Armadas, levou à demissão de Azeredo Lopes em 2018 e a
polémica em torno do furto, tornado público pelo Exército em 29 de junho de
2017 com a indicação de que ocorrera no dia anterior, subiu de tom depois da
aparente recuperação do material na região da Chamusca, no distrito de
Santarém, em outubro de 2017, numa operação da PJM.
***
Também a
política continua a tratar o caso à sua maneira. E, se a campanha eleitoral,
para o bem e para o mal, foi por ele condicionada, os agentes políticos parecem
não descansar sobre Tancos. Para já, a Comissão Permanente da Assembleia da
República, ainda em funções, que substitui o Plenário, procedeu ao debate após
as eleições legislativas – debate a que nenhum membro do Governo compareceu e em
que os partidos da direita exigiram respostas de Costa e os da esquerda puseram
a hipótese de uma nova CPI (comissão parlamentar de inquérito).
No plano
político a CPI ao caso de Tancos concluiu, em julho de 2019, que o ex-Ministro
da Defesa, Azeredo Lopes, “secundarizou” o que sabia sobre a investigação da PJM,
logo não o responsabilizou politicamente. Porém, no plano criminal, o MP acusou-o,
em setembro de 2019, de “crimes de abuso de poder, denegação de justiça,
prevaricação e favorecimento pessoal praticado por funcionário”, considerando
que ele sabia da operação. Para tal, dispôs duma prova fundamental que nunca
chegou ao Parlamento: as SMS trocadas com um deputado socialista em que o
ex-governante assume que sabia de tudo.
Foi com
referência a estas mensagens que Fernando Negrão, pelo PSD, iniciou o debate
deste dia 9 de outubro na Comissão Permanente da Assembleia da República.
Segundo o deputado, as mensagens que agora estão no processo-crime e que foram
trocadas com o deputado socialista Tiago Barbosa Ribeiro, mostram que Azeredo
Lopes “sabia e aceitou o plano de
‘recuperação’ das armas desaparecidas do paiol de Tancos”. E é daqui,
afirmou, que nasce a “vertente política do caso”: Se Azeredo Lopes sabia, como
é que António Costa desconhecia?
Para o PS
esta vertente política não foi mais que uma “arma de arremesso político”
disparada em plena campanha eleitoral. E o deputado Filipe Neto Brandão disse que,
passado o “frenesim eleitoral”, deve o caso permanecer nas mãos dos tribunais.
Não obstante, o PS está disponível para uma solução política que não foi
verdadeiramente referida, com todas as suas letras, pelo PSD: uma nova comissão
parlamentar de inquérito às responsabilidades políticas do caso.
Do seu lado,
o PSD considera que, em “circunstâncias normais”, o Ministro da Defesa devia
ter informado o seu Primeiro-Ministro de tudo o que sabia sobre Tancos. Mas,
segundo acusa, Costa “teima em não responder”. E há perguntas que lhe têm que
ser feitas, passando depois a descrevê-las. O PSD quer saber como Costa avalia
a atuação do seu ex-Ministro da Defesa e quando soube e o que sabia sobre
Tancos. “Se sabia e nada fez, foi
conivente. Se não sabia, algo de estranho se passa no governo”. Disse-o
Fernando Negrão, referindo que os portugueses têm que o saber. Uma
“dúvida política” que tem que ser esclarecida.
Apesar de
recordar que o caso já foi alvo de uma CPI, a que António Costa respondeu por
escrito, o PSD considera que as conclusões foram completamente “branqueadoras
das responsabilidades políticas do governo”.
Para o PS,
que manifestou, antes de intervir, algumas dúvidas sobre qual o deputado que avançaria
para falar, não deve o Parlamento substituir-se à “avaliação judicial” (mas penso que
pode trata-lo em paralelo). O
deputado Filipe Neto Brandão lembra que, de facto, o MP tirou conclusões
diferentes da CPI, a que ele próprio presidiu. Em discurso preparado, que
depois foi entregue aos jornalistas, o deputado disse que não se pode concluir
que foram “proferidas falsas declarações no âmbito da CPI” e explicou:
“As declarações prestadas na CPI por vários depoentes, desde oficiais
generais ao ex-titular da pasta da Defesa Nacional não permitem sustentar a
factualidade que a comunicação social nos diz ter sido invocada pelo Ministério
Público”.
Aliás,
Filipe Neto Brandão atira mesmo a Assunção Cristas, “ainda” líder do CDS, por
ter sugerido publicamente que o Parlamento devia entregar oficiosamente ao MP
depoimentos que ele não pediu. E, lembrando que o MP apenas pediu ao Parlamento
quatro depoimentos, apesar de todos os demais serem públicos, interroga: “Que pode isso representar senão uma
tentativa de ingerência ou censura ao modo como o MP conduziu as diligências do
inquérito?”.
Telmo
Correia, do CDS, também presente na maior parte das sessões da CPI, cujo
partido votou contra no relatório final, disse que resultou claro na comissão
que a PJM tinha feito uma investigação ilegal e que encenou a operação de recuperação
das armas na Chamusca.
E Filipe
Neto Brandão, que referiu várias vezes o princípio democrático da separação de
poderes e o princípio da presunção de inocência do ex-ministro (que poderá
não ser levado a julgamento), disse que
o PS estará disponível, mesmo assim, para uma CPI se esta for requerida. Aliás,
foi o único partido que o disse de forma tão clara nesta sessão: “Se uma nova CPI sobre Tancos vier, assim, a
ser requerida, viabilizá-la-emos”.
Porém, Telmo
Correia vaticina:
“Se forem para uma segunda comissão de inquérito como foram para a
primeira, não se vai chegar a conclusão nenhuma”.
Da parte do
PCP, António Filipe deixou claro que agora deve ser a justiça a trabalhar no
caso. Já o BE pôs a hipótese de se alterarem as conclusões do relatório final
da CPI, o que não faz sentido pois o seu trabalho terminou. Só outra comissão
pode chegar a conclusões diferentes.
Além da
mensagem de telemóvel referida pelo PSD, o MP descobriu alguns encontros entre
o então Ministro da Defesa, Azeredo Lopes, e o diretor da PJM, Luís Vieira. Perante
o Parlamento, tanto o governante como o diretor da PJM, referiram que, após o
furto ao paiol de Tancos, estiveram juntos em agosto de 2017, quando Luís Vieira lhe entregou um documento com
uma posição jurídica (do penalista Rui Pereira) que fundamentava que a investigação ao assalto em Tancos devia ser da
competência da PJM e que tinha sido erradamente entregue à PJ (Vieira diz
que garante que apenas recebeu um telefonema, esclareceu uma dúvida e nunca
diria tal coisa). Depois, a 18 de outubro, deu-lhe conta da
recuperação das armas pedindo que o comunicado fosse emitido pelo próprio
Ministério da Defesa. E, a 20 de
outubro, terá sido uma reunião no Ministério da Defesa, com o chefe de
gabinete de Azeredo Lopes, em que Vieira e o investigador major Brazão,
entregaram um documento sobre a operação que tinham feito. Segundo o MP, no
entanto, os encontros entre ambos foram mais.
Para o PSD,
neste debate, segundo o deputado Duarte Marques, é estranho que “um assunto tão
polémico” não tenha sido “partilhado com o Primeiro-Ministro”. “Ou o Governo
andava em roda livre, ou António Costa tinha conhecimento e foi conivente”,
disse o socialdemocrata.
***
Enfim, o
folhetim prossegue política e judicialmente. Os poderes são separados, mas o
caso não permite a saída nem da esfera da justiça, nem da esfera da política. Cada
uma deve tratá-lo segundo os seus critérios, mas o debate não pode ser
silenciado nem num campo nem noutro e devem ser respeitados os tempos de uma e
outra esfera.
2019.10.10 –
Louro de Carvalho
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