segunda-feira, 21 de outubro de 2019

“Cada um de nós tem, melhor, é uma missão nesta terra”


É a grande asserção que o Papa Francisco proferiu quase no final da homilia da Missa a que presidiu na Basílica de São Pedro, hoje, dia 20 de outubro, Dia Mundial das Missões, no contexto do Mês Missionário Extraordinário. 
A celebração caraterizada pela comunhão dos povos na Basílica de São Pedro foi especialmente animada pela genuína participação do coro e orquestra “Palmarito e Urubichà”, da Bolívia.
A emoldurar teologicamente o mandato da Igreja em saída, plasmado no enunciado que tem o imperativo do verbo “ir” à cabeça – “Ide e ensinai todas as nações” –, o Santo Padre quis tomar, da Liturgia da Palavra desta Missa pela Evangelização dos Povos (Is 2,1-5; 2Tm 2,1-8; Mt 29,19a-20b), três classes gramaticais de palavras: o nome “monte”, o verbo “subir” e o pronome quantificador “todos”. Fê-lo para encorajar o testemunho de milhares de missionários no mundo e convocar-nos a todos para a missão.
Do monte fala Isaías quando profetiza que todas as nações acorrerão ao monte do Templo do Senhor, que se erguerá sobre no cimo das montanhas e se elevará no alto das colinas. E o monte surge no Evangelho após a Ressurreição na Galileia dos gentios, habitada por muitas populações diferentes. E disse o Pontífice que “o monte parece ser o lugar onde Deus gosta de marcar encontro com toda a humanidade” e connosco em concreto. É o caso do Sinai, onde Deus comunica os mandamentos como suporte da Aliança; do Carmelo, onde Elias desafiou os sacerdotes de Baal e fez descer fogo do céu contra soldados inimigos a soldo do rei Acaz ou onde  a mulher sunamita que perdera o filho foi encontrar-se com o profeta Eliseu; do lugar onde Jesus proclamou as Bem-aventuranças; do Tabor, onde Se transfigurou; do Gólgota, onde deu a vida; do monte das Oliveiras onde rezou antes de padecer; e do monte onde abençoou os discípulos, lhes deu o mandato missionário e se despediu para subir ao Céu.
No dizer de Francisco, o monte diz-nos que “somos chamados a aproximar-nos de Deus e dos outros”, no silêncio e na oração, afastando-nos das “maledicências e boatos poluentes”. Ali, os irmãos, “vistos do monte, aparecem-nos noutra perspetiva, a de Deus que chama todos os povos”, ou seja, vistos de cima, “aparecem-nos no seu todo e descobre-se que a harmonia da beleza só é dada pelo conjunto”. E orador pontifício prosseguiu:
O monte lembra-nos que os irmãos e as irmãs não devem ser selecionados, mas abraçados com o olhar e sobretudo com a vida. O monte liga Deus e os irmãos num único abraço, o da oração. (…) A missão começa no monte: lá se descobre aquilo que conta.”.
A luz deste ensinamento, o Papa Francisco quer que se interrogue cada um de nós “no coração deste mês missionário”:
Para mim, o que é que conta na vida? Quais são as altitudes para onde tendo?”.
Depois, anota que à palavra “monte” vem associado o verbo “subir. Com efeito, Isaías exorta: “Vinde, subamos à montanha do Senhor” (2,3). Na verdade, nós “nascemos para chegar às alturas encontrando Deus e os irmãos”. Para tanto, é preciso subir, deixando uma vida horizontal, lutando contra a força de gravidade do egoísmo, realizando um êxodo do próprio ‘eu’ – o que “requer esforço, mas é a única maneira para ver tudo melhor”, pois o único modo possível para abarcar monte é seguir a vereda sempre em subida.
Ora, para subir, é preciso alijar o que não serve – porque não subimos carregados de coisas – e há na nossa vida tantas coisas que são ninharias e empecilho para a caminhada e, sobretudo, para a subida. E Bergoglio extrapola daqui o segredo da missão:
Para partir é preciso deixar, para anunciar é preciso renunciar. O anúncio credível é feito, não de bonitas palavras, mas de vida boa: uma vida de serviço, que sabe renunciar a tantas coisas materiais que empequenecem o coração, tornam as pessoas indiferentes e as fecham em si mesmas; uma vida que se separa das inutilidades que atafulham o coração e encontra tempo para Deus e para os outros.”.
Em consonância, sugere a autointerrogação:
Como procede a minha subida? Sei renunciar às bagagens pesadas e inúteis do mundanismo para subir ao monte do Senhor? Faço a minha estrada subindo à minha custa ou trepando sobre os outros?”.
E passa ao pronome “todos”, a terceira palavra selecionada, que em Dia Mundial das Missões ressoa como a mais forte e que prevalece nas Leituras assumidas para a liturgia desta efeméride: “todas as nações”, diz Isaías (2,2); “todos os povos”, repetimos no Salmo 98 (2b); Deus “quer que todos os homens sejam salvos”, escreve Paulo (1Tm 2,4); “ide, fazei discípulos de todos os povos”, pede Jesus (Mt 28,19). E comenta o Bispo de Roma:
O Senhor obstina-Se a repetir este ‘todos’. Sabe que somos teimosos a repetir ‘meu’ e ‘nosso’: as minhas coisas, a nossa nação, a nossa comunidade... e Ele não Se cansa de repetir ‘todos’. Todos, porque ninguém está excluído do seu coração, da sua salvação; todos, para que o nosso coração ultrapasse as alfândegas humanas, os particularismos baseados nos egoísmos que não agradam a Deus. Todos, porque cada qual é um tesouro precioso e o sentido da vida é dar aos outros este tesouro. Eis a missão: subir ao monte para rezar por todos, e descer do monte para se doar a todos.”.
Subir implica vir a descer e tornar a subir. Neste sentido, Francisco diz-nos que “o cristão está sempre em movimento, em saída”, o mandato evangélico é “ide”. E ir implica não esperar retorno nem compensação, como implica ir “ao encontro de todos, e não apenas dos seus, do seu grupinho”. “O cristão vai ter com os outros” – afirma o Pastor Supremo, que explicita:
A testemunha de Jesus nunca se sente em crédito do reconhecimento de outros, mas em dívida de amor com quem não conhece o Senhor. A testemunha de Jesus vai ao encontro. Jesus diz também a ti: ‘Vai; não percas a ocasião de testemunhar!’. Irmão, irmã, o Senhor espera de ti o testemunho que ninguém pode dar em tua vez. ‘Oxalá consigas identificar a palavra, a mensagem de Jesus que Deus quer dizer ao mundo com a tua vida (...), e assim a tua preciosa missão não fracassará’ (Gaudete et exsultate, 24).”.
Por outro lado, para ir ao encontro de todos, segundo as instruções do Senhor, uma só e muito simples e necessária: fazer discípulos, mas “discípulos d’Ele, não nossos”. Por isso, a homilia papal vinca:
A Igreja só anuncia bem, se viver como discípula. E o discípulo segue dia a dia o Mestre e partilha com os outros a alegria do discipulado. Não conquistando, obrigando, fazendo prosélitos, mas testemunhando, colocando-se ao mesmo nível – discípulo com os discípulos –, oferecendo amorosamente o amor que recebemos.”.
É preciso mostrar, antes de mais e acima de tudo, que “Deus ama a todos e não se cansa jamais de ninguém”. E este testemunho diz respeito a todos e cada um de nós, pois “cada um de nós tem, melhor, é uma missão nesta terra” (Evangelii gaudium, 273). E o Papa concluiu encorajando a cada um dos cristãos – bispos, sacerdotes, diáconos, religiosos, religiosas, leigos e leigas:
Estamos aqui para testemunhar, abençoar, consolar, erguer, transmitir a beleza de Jesus. Coragem! Ele espera muito de ti! O Senhor prova uma espécie de ânsia por aqueles que ainda não sabem que são filhos amados pelo Pai, irmãos pelos quais deu a vida e o Espírito Santo. Queres acalmar a ânsia de Jesus? Vai com amor ao encontro de todos, porque a tua vida é uma missão preciosa: não é um peso a suportar, mas um dom a oferecer. Coragem! Sem medo, vamos ao encontro de todos!”.
De facto, a não é um peso a suportar, mas um dom a oferecer.
***
Concluída a celebração da Santa Missa, às 12 horas, o Santo Padre dirigiu-se à janela do seu gabinete no Palácio Apostólico para recitar o Angelus com os fiéis e peregrinos reunidos na Praça de São Pedro.
Nesta altura, a sua alocução sobre o Dia Mundial das Missões partiu dos textos da Liturgia da Palavra deste 29.º domingo do Tempo Comum no Ano C e não dos da Missa celebrada na Basílica. Assim, referiu que a 2.ª Leitura (2Tm 3,14 – 4,2) nos propõe a exortação de Paulo ao seu fiel colaborador Timóteo:
Proclama a Palavra, insiste a propósito e fora de propósito, argumenta, ameaça e exorta com toda a magnanimidade e doutrina”. 
Vincando que este Dia Mundial das Missões é ocasião propícia para cada batizado tomar mais viva consciência da necessidade de cooperar na proclamação da Palavra, no anúncio do Reino de Deus com um renovado empenho, evocou a centenária Carta Apostólica Maximum illud, do Papa Bento XV, que deu novo impulso à responsabilidade missionária de toda a Igreja. Nela, o 258.º Papa da Igreja Católica “advertiu para a necessidade de requalificar evangelicamente a missão no mundo de modo que fosse purificada de qualquer incrustação colonial e livre dos condicionamentos das políticas expansionistas das nações europeias”.  
Tal advertência tem hoje, segundo Francisco, plena atualidade e “estimula a superar a tentação de todo o fechamento autorreferencial e toda a forma de pessimismo pastoral, para nos abrir à jubilosa novidade do Evangelho”.
Disse o Santo Padre que, num tempo de globalização – que devia ser solidária e respeitadora da particularidade dos povos, mas que, ao invés, quer impor a homogeneização e sofre dos velhos conflitos de poder que alimentam guerras e fragilizam o planeta – os crentes são chamados a levar doravante, com novo vigor, a boa notícia de que “em Jesus a misericórdia vence o pecado, a esperança vence o medo, a fraternidade vence a hostilidade”, pois “Cristo é a nossa paz e n’Ele é superada toda a divisão, só Ele é a salvação de todo o homem e de todo o povo”.
Mas o Pontífice não se esqueceu de alertar para o suporte da vida cristã e, consequentemente, a condição indispensável de toda a missão: a oração, que implica, no dizer do Padre José Gregório Valente, missionário passionista, a escuta de Deus, a escuta dos homens, a escuta do coração. E Francisco, ancorado na 1.ª Leitura (Ex 17, 8-13) e no Evangelho (Lc 18,1-8) propõe “uma oração fervorosa e incessante”, segundo o ensinamento de Jesus na parábola “sobre a necessidades rezar sempre, sem desfalecimento. E sustenta:
A oração é o primeiro sustentáculo do povo de Deus para os missionários, rica de afeto e de gratidão para a sua difícil tarefa de anunciar e dar a luz e a graça do Evangelho àqueles e àquelas ainda não o receberam. É ainda uma bela ocasião para nos interrogarmos: ‘Eu rezo pelos missionários? Rezo pelos que vão a longes terras para levar a Palavra de Deus com o seu testemunho?”.
Por fim, rogou a Maria, Mãe de todos os povos, que acompanhe e proteja sempre os missionários do Evangelho.
***
Após o Angelus, evocou a beatificação do mártir Alfredo Cremonesi, sacerdote missionário do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras, morto na Birmânia, em 1953. Foi um infatigável apóstolo de paz e zelosa testemunha do Evangelho, até ao derramamento de sangue. Que o seu exemplo nos torne agentes de fraternidade e missionários corajosos em todos os ambientes e a sua intercessão sustente quantos se afadigam hoje a semear o Evangelho no mundo.
Saudou os peregrinos provenientes da Itália e de vários outros países. E mencionou, em particular: a comunidade peruana de Roma, congregada em torno da imagem do Senhor dos Milagres; as Irmãs Enfermeiras da Addolorata (Nossa Senhora das Dores), que celebraram o seu Capítulo Geral; os que participam na marcha “Restiamo umani” (continuemos a ser humanos), tendo percorrido, nos últimos meses, cidades e territórios da Itália a promover um confronto construtivo sobre inclusão e acolhimento; e os jovens da Ação Católica italiana, por ocasião dos 50 anos da ACR. A estes pediu que sejam protagonistas alegres e generosos na evangelização, sobretudo entre os seus coetâneos e garantiu que a Igreja confia neles e nelas.
2019.10.20 – Louro de Carvalho

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