É sempre assim. Um Sínodo dos Bispos parte dum documento
de trabalho que serve de ponto de partida para as intervenções nas Congregações
Gerais e nos grupos de trabalho. Não se trata dum texto sinodal, mas dum texto
instrumental.
Por isso, as críticas suscitadas pelo Instrumentum
laboris com vista ao
Sínodo para a região amazónica ou são um sinal de que os críticos não estão
habituados à sinodalidade e entendem que o sínodo seria só para confirmar o
trabalho preparatório do Sínodo alegadamente elaborado na oficina vaticana ou
tentam condicionar o debate na Aula sinodal em virtude das temáticas que se
anunciam.
Ora, o
documento preparatório não é um produto da Cúria Romana, mas um instrumento elaborado
com base na auscultação às bases do universo sobre o qual a assembleia sinodal
se vai pronunciar e estribado na metodologia do Ver, Julgar e Agir, ou seja, analisar a realidade, com suas potencialidades
e fragilidades, confrontá-la com o Evangelho e abrir pistas de ação, mas nada sendo
dado por concluído. Não vá pensar-se, como dizia o Cardeal Cerejeira aquando da
partida para Roma para o Concílio, que os trabalhos seriam breves, pois era só
ouvir e aprovar o que o Vaticano tinha feito. E parece que alguns temas iam a
levar esse caminho, de modo que, ao darem conta do trabalho feito ao Papa São João
XXIII, ele terá dito, “pois, mas eu queria que fosse o Concílio a debater estes
temas”.
Ora,
independentemente do que for decidido, o instrumento de trabalho não pode (na fidelidade
à auscultação) deixar de enunciar
as temáticas, mesmo que aparentemente pouco ortodoxas. É preciso ter fé no Espírito
Santo que guia a Igreja e nas virtualidades do caminho sinodal.
***
Nos últimos
meses, diferentes cardeais e bispos assumiram uma postura crítica sobre o
documento de trabalho ou Instrumentum
laboris do Sínodo da Amazónia.
O Bispo
Emérito de Marajó (Brasil), Dom José
Luis Azcona, que serviu nesta jurisdição amazónica durante quase 30 anos,
escreveu vários artigos críticos sobre o documento. Num deles, criticou o papel
da REPAM (Rede Eclesial Pan-Amazónica), que, em
sua opinião, se baseia num “pensamento único” que é “ameaçador” para o
caminho da sinodalidade e unidade eclesial do Brasil. Disse também que a Amazónia,
pelo menos no Brasil, “não é mais católica” e lamentou a ausência no
documento de trabalho de referências a Cristo crucificado na evangelização dos
povos da região.
No início de
setembro de 2019, os cardeais Walter Brandmüller e Raymond Burke escreveram uma
carta aos outros membros do Colégio de Cardeais, fazendo uma grave
denúncia sobre alguns pontos do documento de trabalho.
O Cardeal
Brandmüller advertiu:
“As formulações nebulosas do Instrumentum, como a pretendida criação
de novos ministérios eclesiásticos para as mulheres e, sobretudo, a ordenação
presbiteral dos chamados viri probati,
suscitam a forte suspeita de que será colocado em questão até mesmo o celibato
sacerdotal”.
Não se vê,
porém, que a ordenação sacerdotal dos viri
probati impeça o curso do celibato sacerdotal para quem se comprometer com
este valor. Não se pode dizer que tenham faltado as vocações sacerdotais
religiosas apoiadas nos valores evangélicos da pobreza voluntária obediência inteira
e castidade perpétua só porque os padres diocesanos não se vinculam a esse
valores como um todo ou que os padres casados provindos de outras confissões cristãs
tenham sido obstáculo para os outros, nem os casados a quem foi conferida a
ordem do diaconado impediram ou dificultaram a ordenação de diáconos celibatários,
mormente se são destinados ao ministério presbiteral.
Entretanto,
em julho deste ano, o Cardeal Gerard Müller, Prefeito emérito da
Congregação para a Doutrina da Fé, também fez uma crítica ao documento de
trabalho, especificando, por exemplo, que no texto “os significados dos termos-chave não são explicados e são utilizados de
maneira inflada”. Especificamente, cita conceitos pouco explicados, como
“caminho sinodal”, “desenvolvimento integral”, “Igreja samaritana, sinodal
e aberta” ou “Igreja de Abertura, Igreja dos Pobres, Igreja da Amazónia”. Em
segundo lugar, assegura que “a estrutura do texto apresenta uma volta radical
na hermenêutica da teologia católica”. Com efeito, no Instrumentum laboris, “toda a linha de pensamento se torna
autorreferencial e circula em torno dos últimos documentos do Magistério do
Papa Francisco, com algumas escassas referências ao Papa São João Paulo II
e Bento XVI”. E o purpurado escreveu:
“Talvez o desejo era mostrar uma especial
lealdade ao Papa, ou acreditaram talvez ser possível evitar os desafios do
trabalho teológico quando se fazem constantes referências a palavras-chave
conhecidas, e frequentemente repetidas, que os autores denominam, de maneira
bastante incompetente de o mantra de
Francisco”.
Nas últimas
semanas, o Cardeal Jorge Urosa, Arcebispo emérito de Caracas (Venezuela), enviou à ACI Prensa,
agência em espanhol do Grupo ACI,
três artigos e uma breve declaração sobre o Sínodo da Amazónia. No primeiro,
destacou as fortalezas e as falhas dos Sínodo, com a intenção de que os padres
sinodais ajudem a melhorar estas últimas; no segundo, explicou que o Instrumentum laboris “não é um documento
para uma assembleia de ONGs, mas de um Sínodo eclesial, de uma assembleia muito
importante da Igreja para a ajudar a viver melhor a sua missão, para
revitalizar a Igreja lá e no mundo inteiro, para o qual devemos apresentar
novos caminhos de evangelização autêntica”; e, no terceiro, o Arcebispo Emérito
de Caracas especificou as razões pelas quais não se podem ordenar homens
casados nem mulheres.
O Cardeal
Urosa também fez uma declaração na qual explicou que “uma análise do Instrumento Laboris não é para atacar o
Sínodo, mas para contribuir para o seu sucesso”. E observou:
“O Sínodo é muito importante e quero
contribuir modestamente, para que seja um sucesso na evangelização, na
revitalização da Igreja e na defesa da Amazónia e de seus habitantes. As
observações são direcionadas ao texto, que, na minha opinião, pode e deve ser
melhorado.”.
***
Antes da
abertura dos trabalhos sinodais, o Cardeal Lorenzo Baldisseri, Secretário-Geral
do Sínodo, explicou em conferência de imprensa, na manhã de de 3 de outubro que
o Instrumentum laboris não é documento
magisterial ou pontifício. Disse-o em resposta às críticas surgidas.
O Purpurado
referiu que o texto é o resultado de 2 anos de trabalho durante os quais “os
povos amazónicos foram escutados e os dados dessa expressão foram coligidos não
apenas numa única assembleia”, mas em várias, nas quais “os bispos,
responsáveis diretos da evangelização, escutam o povo e devem registar isso”.
Foram dois anos de preparação e esta é uma síntese.
O
Secretário-Geral do Sínodo indicou também que, “se há um cardeal ou um bispo que não concorda e vê que há conteúdos que
não correspondem, tudo bem”. Contudo, Baldisseri disse que “é necessário escutar e não julgar,
porque (o Instrumentum laboris) não é um documento magisterial”, mas apenas “o
documento de trabalho que será entregue aos padres sinodais e que será a base
para poder começar os trabalhos e construir o documento final do zero”. E, na sua
intervenção daquela manhã, o cardeal italiano disse que, “nas três semanas de
trabalho que hoje estão abertas diante de nós, o Instrumentum laboris constituirá o ponto de referência e a base
necessária da reflexão e do debate sinodal e não um texto para fazer emendas” e
frisou que a função do Instrumentum
laboris, “conclui com a elaboração do Documento final, que reunirá os
resultados alcançados por esta assembleia e por todo o processo sinodal”.
E, em seu discurso
aos participantes do Sínodo da Amazónia, cujos trabalhos começaram na manhã do
dia 7 de outubro, o Papa Francisco afirmou que o Instrumentum laboris é um documento “mártir” destinado a ser
destruído, confirmando assim o que dissera há alguns dias o Secretário-Geral do
Sínodo dos Bispos.
Ao explicar
a importância da ação do Espírito Santo no Sínodo, o Santo Padre lembrou que,
antes deste evento, foram realizadas “consultas, discussões nas conferências
episcopais, elaborou-se no Conselho Pré-sinodal o Instrumentum laboris”, documento que “é um texto mártir destinado a
ser destruído, porque é como ponto de partida para o que o Espírito vai fazer
em nós”. E, agora, disse, “nós devemos
caminhar sob a guia do Espírito Santo”.
***
Paralelamente,
decorre o evento, chamado “Momentos de Espiritualidade Amazónica”, que é organizado por “Amazónia Casa Comum”, um espaço da REPAM,
estabelecido de forma temporária na paróquia de Santa Maria Transpontina,
confiada aos Carmelitas (a igreja romana de
Santa Maria Transpontina fica na Via della Conciliazione, a poucos metros do Vaticano). Trata-se dum evento de claro
caráter sincrético, em que se mesclam tradições indígenas da Amazónia com
referências cristãs.
Assim, a título de exemplo, dá-se conta do ritual de 8 e 9 de
outubro.
O ato do dia 8 começou às 9,45 horas. Dentro da igreja e
diante do local onde fica o Santíssimo Sacramento e junto ao altar principal,
estenderam uns panos e uma rede colorida com diversos objetos (como pequenas canoas, imagens de aves,
instrumentos, estatuetas, tigelas com alimentos, entre outros); e, no centro,
um cesto de palha dentro do qual estava a imagem de uma mulher grávida nua.
Esta imagem foi
usada no ritual realizado pela REPAM e pela Ordem dos Franciscanos Menores nos
Jardins do Vaticano, a 4 de outubro, diante do Papa, e na oração com a qual
começaram os trabalhos do Sínodo na Basílica de São Pedro, no dia 7. E foi
descrita por Vatican News como “Nossa Senhora da Amazónia”. Do mesmo
modo, foram usados nessa cerimónia vários dos objetos mencionados. Entre os
participantes, havia várias religiosas católicas, uma sacerdotisa anglicana,
vários frades franciscanos, leigos e indígenas da Amazónia.
O evento começou
com uma mulher a chamar os participantes para formarem um círculo em torno dos
objetos depositados no chão. Cada um carregava na mão um objeto como os
descritos. Pediu que todos dessem os braços e iniciou uma série de cânticos e discursos
com referências à natureza, à criação, expressões como “todos somos um”, com mensagens cristãs como “fomos criados à imagem e semelhança de Deus”, e algumas leituras
bíblicas. A direção do evento passava de pessoa para pessoa. Num momento, os
participantes depositaram os objetos no pano como oferendas. Em seguida, os indígenas
colocaram terra amazónica no cesto de palha. Depois, tiraram os sapatos,
ajoelharam e inclinaram-se, tocando o chão com a cabeça. Um indígena aproximou-se
do cesto, pegou nas mãos parte da terra e elevou-a ao alto dizendo algumas
palavras em voz baixa. E, para concluir o ato, leu-se um fragmento do livro do
Êxodo, em que Deus, na sarça ardente, pede a Moisés que tire os sapatos, porque
está em solo sagrado.
Alguns
participantes explicaram que os objetos simbolizavam os dons de Deus.
À pergunta
sobre se esta era uma cerimónia cristã ou amazónica, responderam que as duas
coisas são iguais.
O ato do dia 9 começou no
átrio da igreja com alguns cantos e, em seguida, os participantes caminharam dentro
do templo onde continuou o ritual, no qual se destacou a participação de Dom
Raúl Vera, Bispo de Saltillo (México). Uma vez
dentro do templo e em frente ao altar do Santíssimo Sacramento, alguns dos
participantes levantaram uma canoa na qual uma jovem estava sentada. Como no
dia anterior, nesta área havia vários elementos da Amazónia, como a imagem de
Nossa Senhora da Amazónia. Para concluir o evento, rezaram o Pai-Nosso, a
Ave-Maria e fizeram uma reflexão com uma leitura bíblica.
Alguns
participantes indicaram que o ritual varia ao longo dos dias, a fim de mostrar
como é a “espiritualidade amazónica”.
Em várias capelas da igreja,
os responsáveis de “Amazónia Casa Comum”, iniciativa da REPAM, estabeleceram
exposições sobre os mártires amazónicos. No chão das capelas, colocaram outros objetos,
fotos e imagens relacionadas à Amazónia e aos problemas da região.
Numa delas, também pode
ser visto um cartaz no qual querem representar as palavras do Papa Francisco na
encíclica Laudato Si’: “Tudo está conectado”. Para isso,
utilizam a fotografia de uma mulher indígena que, com um braço segura seu filho
e, com o outro, amamenta um leitão. Ao seu redor, uma seta direciona o olhar
para a fotografia do filho com as palavras “outro-eu”.
Do filho vem
outra seta na direção da fotografia do leitão com as palavras “outro-natureza-cosmos”. Por último, a
seta direciona-se para a fotografia da mãe sob a palavra “Eu”. E, por meio de uma seta de mudança de direção, explica-se que
o processo pode ser inverso.
A iniciativa “Amazónia
Casa Comum”, realizada na igreja de Santa Maria em Transpontina, contrasta com
as palavras pronunciadas em 17 de junho pelo Cardeal Lorenzo Baldisseri,
secretário-geral do Sínodo dos Bispos, durante a apresentação do Instrumentum laboris do Sínodo. Na
ocasião, o Cardeal rejeitou que o Sínodo da Amazónia possa abrir alguma
possibilidade de uma igreja sincrética na Amazónia, na qual se possa
dar lugar a sensibilidades filosóficas ou religiosas de origem pagã. O Cardeal
assegurou que não via “nenhum sincretismo” no Sínodo e que no Instrumentum laboris ou documento de
trabalho “fala-se de Jesus, fala-se da criação...” e que, “se há alguma
filosofia, ou outras religiões que falam da Criação, isso não significa que, se
falamos da Criação. há sincretismo”.
Em texto
enviado à ACI Digital, Dom José Luis
Azcona, bispo emérito de Marajó, no Delta do Amazonas no Brasil, explicou que a
iniciativa “Amazónia Casa Comum” pode ser “um ponto de escândalo para toda a
Igreja, desde Roma e com ocasião do Sínodo”. Com efeito, se alguns elementos invocados
estão ligados à feitiçaria ou à idolatria, mesmo que naturalista –
incompatíveis com o Evangelho – não podem ser incorporados nas celebrações
litúrgicas ou em expressões meramente religiosas. Não obstante, o Sínodo só
pode iluminar com o Evangelho a realidade amazónica se a conhecer. E os destinatários
devem ter a oportunidade de interiorizar que Jesus Cristo derrotou todas as
forças do mal pela sua obra redentora e que, exaltado sobre todas elas, mantém
para sempre e de modo absoluto a sua soberania de Senhor.
Se calhar, é
positivo que, além dos “Momentos de espiritualidade amazónica”, se tenham desencadeado
outros eventos, como conferências e exposições em diferentes locais em Roma e
em outras cidades da Itália por ocasião do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia.
Esperemos pelo
documento final e pela subsequente exortação apostólica.
2019.10.12 – Louro de Carvalho
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