sábado, 12 de outubro de 2019

Instrumentum laboris do Sínodo é destinado a ser destruído



É sempre assim. Um Sínodo dos Bispos parte dum documento de trabalho que serve de ponto de partida para as intervenções nas Congregações Gerais e nos grupos de trabalho. Não se trata dum texto sinodal, mas dum texto instrumental.
Por isso, as críticas suscitadas pelo Instrumentum laboris com vista ao Sínodo para a região amazónica ou são um sinal de que os críticos não estão habituados à sinodalidade e entendem que o sínodo seria só para confirmar o trabalho preparatório do Sínodo alegadamente elaborado na oficina vaticana ou tentam condicionar o debate na Aula sinodal em virtude das temáticas que se anunciam.
Ora, o documento preparatório não é um produto da Cúria Romana, mas um instrumento elaborado com base na auscultação às bases do universo sobre o qual a assembleia sinodal se vai pronunciar e estribado na metodologia do Ver, Julgar e Agir, ou seja, analisar a realidade, com suas potencialidades e fragilidades, confrontá-la com o Evangelho e abrir pistas de ação, mas nada sendo dado por concluído. Não vá pensar-se, como dizia o Cardeal Cerejeira aquando da partida para Roma para o Concílio, que os trabalhos seriam breves, pois era só ouvir e aprovar o que o Vaticano tinha feito. E parece que alguns temas iam a levar esse caminho, de modo que, ao darem conta do trabalho feito ao Papa São João XXIII, ele terá dito, “pois, mas eu queria que fosse o Concílio a debater estes temas”.
Ora, independentemente do que for decidido, o instrumento de trabalho não pode (na fidelidade à auscultação) deixar de enunciar as temáticas, mesmo que aparentemente pouco ortodoxas. É preciso ter fé no Espírito Santo que guia a Igreja e nas virtualidades do caminho sinodal.  
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Nos últimos meses, diferentes cardeais e bispos assumiram uma postura crítica sobre o documento de trabalho ou Instrumentum laboris do Sínodo da Amazónia.
O Bispo Emérito de Marajó (Brasil), Dom José Luis Azcona, que serviu nesta jurisdição amazónica durante quase 30 anos, escreveu vários artigos críticos sobre o documento. Num deles, criticou o papel da REPAM (Rede Eclesial Pan-Amazónica), que, em sua opinião, se baseia num “pensamento único” que é “ameaçador” para o caminho da sinodalidade e unidade eclesial do Brasil. Disse também que a Amazónia, pelo menos no Brasil, “não é mais católica” e lamentou a ausência no documento de trabalho de referências a Cristo crucificado na evangelização dos povos da região.
No início de setembro de 2019, os cardeais Walter Brandmüller e Raymond Burke escreveram uma carta aos outros membros do Colégio de Cardeais, fazendo uma grave denúncia sobre alguns pontos do documento de trabalho.
O Cardeal Brandmüller advertiu:
As formulações nebulosas do Instrumentum, como a pretendida criação de novos ministérios eclesiásticos para as mulheres e, sobretudo, a ordenação presbiteral dos chamados viri probati, suscitam a forte suspeita de que será colocado em questão até mesmo o celibato sacerdotal”.
Não se vê, porém, que a ordenação sacerdotal dos viri probati impeça o curso do celibato sacerdotal para quem se comprometer com este valor. Não se pode dizer que tenham faltado as vocações sacerdotais religiosas apoiadas nos valores evangélicos da pobreza voluntária obediência inteira e castidade perpétua só porque os padres diocesanos não se vinculam a esse valores como um todo ou que os padres casados provindos de outras confissões cristãs tenham sido obstáculo para os outros, nem os casados a quem foi conferida a ordem do diaconado impediram ou dificultaram a ordenação de diáconos celibatários, mormente se são destinados ao ministério presbiteral.    
Entretanto, em julho deste ano, o Cardeal Gerard Müller, Prefeito emérito da Congregação para a Doutrina da Fé, também fez uma crítica ao documento de trabalho, especificando, por exemplo, que no texto “os significados dos termos-chave não são explicados e são utilizados de maneira inflada”. Especificamente, cita conceitos pouco explicados, como “caminho sinodal”, “desenvolvimento integral”, “Igreja samaritana, sinodal e aberta” ou “Igreja de Abertura, Igreja dos Pobres, Igreja da Amazónia”. Em segundo lugar, assegura que “a estrutura do texto apresenta uma volta radical na hermenêutica da teologia católica”. Com efeito, no Instrumentum laboris, “toda a linha de pensamento se torna autorreferencial e circula em torno dos últimos documentos do Magistério do Papa Francisco, com algumas escassas referências ao Papa São João Paulo II e Bento XVI”. E o purpurado escreveu:
Talvez o desejo era mostrar uma especial lealdade ao Papa, ou acreditaram talvez ser possível evitar os desafios do trabalho teológico quando se fazem constantes referências a palavras-chave conhecidas, e frequentemente repetidas, que os autores denominam, de maneira bastante incompetente de o mantra de Francisco”.
Nas últimas semanas, o Cardeal Jorge Urosa, Arcebispo emérito de Caracas (Venezuela), enviou à ACI Prensa, agência em espanhol do Grupo ACI, três artigos e uma breve declaração sobre o Sínodo da Amazónia. No primeiro, destacou as fortalezas e as falhas dos Sínodo, com a intenção de que os padres sinodais ajudem a melhorar estas últimas; no segundo, explicou que o Instrumentum laboris “não é um documento para uma assembleia de ONGs, mas de um Sínodo eclesial, de uma assembleia muito importante da Igreja para a ajudar a viver melhor a sua missão, para revitalizar a Igreja lá e no mundo inteiro, para o qual devemos apresentar novos caminhos de evangelização autêntica”; e, no terceiro, o Arcebispo Emérito de Caracas especificou as razões pelas quais não se podem ordenar homens casados nem mulheres. 
O Cardeal Urosa também fez uma declaração na qual explicou que “uma análise do Instrumento Laboris não é para atacar o Sínodo, mas para contribuir para o seu sucesso”. E observou:
O Sínodo é muito importante e quero contribuir modestamente, para que seja um sucesso na evangelização, na revitalização da Igreja e na defesa da Amazónia e de seus habitantes. As observações são direcionadas ao texto, que, na minha opinião, pode e deve ser melhorado.”.
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Antes da abertura dos trabalhos sinodais, o Cardeal Lorenzo Baldisseri, Secretário-Geral do Sínodo, explicou em conferência de imprensa, na manhã de de 3 de outubro que o Instrumentum laboris não é documento magisterial ou pontifício. Disse-o em resposta às críticas surgidas.
O Purpurado referiu que o texto é o resultado de 2 anos de trabalho durante os quais “os povos amazónicos foram escutados e os dados dessa expressão foram coligidos não apenas numa única assembleia”, mas em várias, nas quais “os bispos, responsáveis diretos da evangelização, escutam o povo e devem registar isso”. Foram dois anos de preparação e esta é uma síntese.
O Secretário-Geral do Sínodo indicou também que, “se há um cardeal ou um bispo que não concorda e vê que há conteúdos que não correspondem, tudo bem”. Contudo, Baldisseri disse que “é necessário escutar e não julgar, porque (o Instrumentum laboris) não é um documento magisterial”, mas apenas “o documento de trabalho que será entregue aos padres sinodais e que será a base para poder começar os trabalhos e construir o documento final do zero”. E, na sua intervenção daquela manhã, o cardeal italiano disse que, “nas três semanas de trabalho que hoje estão abertas diante de nós, o Instrumentum laboris constituirá o ponto de referência e a base necessária da reflexão e do debate sinodal e não um texto para fazer emendas” e frisou que a função do Instrumentum laboris, “conclui com a elaboração do Documento final, que reunirá os resultados alcançados por esta assembleia e por todo o processo sinodal”.
E, em seu discurso aos participantes do Sínodo da Amazónia, cujos trabalhos começaram na manhã do dia 7 de outubro, o Papa Francisco afirmou que o Instrumentum laboris é um documento “mártir” destinado a ser destruído, confirmando assim o que dissera há alguns dias o Secretário-Geral do Sínodo dos Bispos.
Ao explicar a importância da ação do Espírito Santo no Sínodo, o Santo Padre lembrou que, antes deste evento, foram realizadas “consultas, discussões nas conferências episcopais, elaborou-se no Conselho Pré-sinodal o Instrumentum laboris”, documento que “é um texto mártir destinado a ser destruído, porque é como ponto de partida para o que o Espírito vai fazer em nós”. E, agora, disse, “nós devemos caminhar sob a guia do Espírito Santo”.
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Paralelamente, decorre o evento, chamado “Momentos de Espiritualidade Amazónica”, que é organizado por “Amazónia Casa Comum”, um espaço da REPAM, estabelecido de forma temporária na paróquia de Santa Maria Transpontina, confiada aos Carmelitas (a igreja romana de Santa Maria Transpontina  fica na Via della Conciliazione, a poucos metros do Vaticano). Trata-se dum evento de claro caráter sincrético, em que se mesclam tradições indígenas da Amazónia com referências cristãs.
Assim, a título de exemplo, dá-se conta do ritual de 8 e 9 de outubro.
O ato do dia 8 começou às 9,45 horas. Dentro da igreja e diante do local onde fica o Santíssimo Sacramento e junto ao altar principal, estenderam uns panos e uma rede colorida com diversos objetos (como pequenas canoas, imagens de aves, instrumentos, estatuetas, tigelas com alimentos, entre outros); e, no centro, um cesto de palha dentro do qual estava a imagem de uma mulher grávida nua. Esta imagem foi usada no ritual realizado pela REPAM e pela Ordem dos Franciscanos Menores nos Jardins do Vaticano, a 4 de outubro, diante do Papa, e na oração com a qual começaram os trabalhos do Sínodo na Basílica de São Pedro, no dia 7. E foi descrita por Vatican News como “Nossa Senhora da Amazónia”. Do mesmo modo, foram usados nessa cerimónia vários dos objetos mencionados. Entre os participantes, havia várias religiosas católicas, uma sacerdotisa anglicana, vários frades franciscanos, leigos e indígenas da Amazónia.
O evento começou com uma mulher a chamar os participantes para formarem um círculo em torno dos objetos depositados no chão. Cada um carregava na mão um objeto como os descritos. Pediu que todos dessem os braços e iniciou uma série de cânticos e discursos com referências à natureza, à criação, expressões como “todos somos um”, com mensagens cristãs como “fomos criados à imagem e semelhança de Deus”, e algumas leituras bíblicas. A direção do evento passava de pessoa para pessoa. Num momento, os participantes depositaram os objetos no pano como oferendas. Em seguida, os indígenas colocaram terra amazónica no cesto de palha. Depois, tiraram os sapatos, ajoelharam e inclinaram-se, tocando o chão com a cabeça. Um indígena aproximou-se do cesto, pegou nas mãos parte da terra e elevou-a ao alto dizendo algumas palavras em voz baixa. E, para concluir o ato, leu-se um fragmento do livro do Êxodo, em que Deus, na sarça ardente, pede a Moisés que tire os sapatos, porque está em solo sagrado.
Alguns participantes explicaram que os objetos simbolizavam os dons de Deus.
À pergunta sobre se esta era uma cerimónia cristã ou amazónica, responderam que as duas coisas são iguais.
O ato do dia 9 começou no átrio da igreja com alguns cantos e, em seguida, os participantes caminharam dentro do templo onde continuou o ritual, no qual se destacou a participação de Dom Raúl Vera, Bispo de Saltillo (México). Uma vez dentro do templo e em frente ao altar do Santíssimo Sacramento, alguns dos participantes levantaram uma canoa na qual uma jovem estava sentada. Como no dia anterior, nesta área havia vários elementos da Amazónia, como a imagem de Nossa Senhora da Amazónia. Para concluir o evento, rezaram o Pai-Nosso, a Ave-Maria e fizeram uma reflexão com uma leitura bíblica.
Alguns participantes indicaram que o ritual varia ao longo dos dias, a fim de mostrar como é a “espiritualidade amazónica”.
Em várias capelas da igreja, os responsáveis ​​de “Amazónia Casa Comum”, iniciativa da REPAM, estabeleceram exposições sobre os mártires amazónicos. No chão das capelas, colocaram outros objetos, fotos e imagens relacionadas à Amazónia e aos problemas da região.
Numa delas, também pode ser visto um cartaz no qual querem representar as palavras do Papa Francisco na encíclica Laudato Si’: Tudo está conectado”. Para isso, utilizam a fotografia de uma mulher indígena que, com um braço segura seu filho e, com o outro, amamenta um leitão. Ao seu redor, uma seta direciona o olhar para a fotografia do filho com as palavras “outro-eu”.
Do filho vem outra seta na direção da fotografia do leitão com as palavras “outro-natureza-cosmos”. Por último, a seta direciona-se para a fotografia da mãe sob a palavra “Eu”. E, por meio de uma seta de mudança de direção, explica-se que o processo pode ser inverso.
A iniciativa “Amazónia Casa Comum”, realizada na igreja de Santa Maria em Transpontina, contrasta com as palavras pronunciadas em 17 de junho pelo Cardeal Lorenzo Baldisseri, secretário-geral do Sínodo dos Bispos, durante a apresentação do Instrumentum laboris do Sínodo. Na ocasião, o Cardeal rejeitou que o Sínodo da Amazónia possa abrir alguma possibilidade de uma igreja sincrética na Amazónia, na qual se possa dar lugar a sensibilidades filosóficas ou religiosas de origem pagã. O Cardeal assegurou que não via “nenhum sincretismo” no Sínodo e que no Instrumentum laboris ou documento de trabalho “fala-se de Jesus, fala-se da criação...” e que, “se há alguma filosofia, ou outras religiões que falam da Criação, isso não significa que, se falamos da Criação. há sincretismo”.
Em texto enviado à ACI Digital, Dom José Luis Azcona, bispo emérito de Marajó, no Delta do Amazonas no Brasil, explicou que a iniciativa “Amazónia Casa Comum” pode ser “um ponto de escândalo para toda a Igreja, desde Roma e com ocasião do Sínodo”. Com efeito, se alguns elementos invocados estão ligados à feitiçaria ou à idolatria, mesmo que naturalista – incompatíveis com o Evangelho – não podem ser incorporados nas celebrações litúrgicas ou em expressões meramente religiosas. Não obstante, o Sínodo só pode iluminar com o Evangelho a realidade amazónica se a conhecer. E os destinatários devem ter a oportunidade de interiorizar que Jesus Cristo derrotou todas as forças do mal pela sua obra redentora e que, exaltado sobre todas elas, mantém para sempre e de modo absoluto a sua soberania de Senhor.
Se calhar, é positivo que, além dos “Momentos de espiritualidade amazónica”, se tenham desencadeado outros eventos, como conferências e exposições em diferentes locais em Roma e em outras cidades da Itália por ocasião do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia.
Esperemos pelo documento final e pela subsequente exortação apostólica.
2019.10.12 – Louro de Carvalho

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