domingo, 27 de outubro de 2019

A beleza de caminhar juntos para servir


Depois da missa de encerramento do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-amazónica, o Papa recitou o Angelus com os fiéis e peregrinos apinhados na Praça de São Pedro e confidenciou-lhes, na alocução que antecedeu a oração mariana, que os participantes na assembleia sinodal sentiram “a beleza de caminharem juntos para servir”. E vincou que, tendo vindo da Amazónia “o grito dos pobres, junto ao grito da terra”, não podemos fazer de conta que não o ouvimos.
Com efeito, a Liturgia da palavra da Missa celebrada na Basílica de São Pedro de conclusão da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos, no 30.º domingo do Tempo Comum do Ano C, recorda-nos, com a 1.ª Leitura (Sir 35,12-14.16-18), o ponto de partida desta caminhada sinodal: a oração do pobre que “atravessa as nuvens”, pois ‘Deus escuta a oração do oprimido’. O grito dos pobres, com o grito da terra, veio da Amazónia – disse o Pontífice – e com esse grito amazónico vieram as vozes de tantos outros dentro e fora da Assembleia sinodal, pastores, jovens e cientistas que “nos impelem a não permanecer indiferentes”. Na verdade a frase “Depois é tarde demais”, que ouvimos muitas vezes, não pode permanecer um “slogan”.
Sobre o que foi o Sínodo, disse o Santo Padre:
Foi, como diz a palavra, um caminhar juntos, revigorados pela coragem e pelo consolo que vem do Senhor. Caminhamos, olhando-nos nos olhos e ouvindo-nos, com sinceridade, sem esconder as dificuldades, experimentando a beleza de caminhar unidos, para servir.”.
E Francisco sublinhou que Paulo nos incentiva a isso. Com efeito, como se pode ver pela 2.ª Leitura (2Tm 4,6-8.16-18), num momento dramático para ele (pois sabe que está para ser oferecido em sacrifício, ou seja, justiçado, e que chegou o momento de deixar esta vida), escreve:
O Senhor esteve a meu lado e deu-me forças. Ele fez com que o Evangelho fosse anunciado por mim integralmente e ouvido por todas as nações.”.
Assim, o último desejo do Apóstolo é de “não algo para si ou para alguns dos seus, mas para o Evangelho, para que seja anunciado a todos os povos”, o que “vem antes de tudo e conta acima de tudo”. E Francisco, questionando-se se “cada um de nós já se perguntou muitas vezes o que fazer de bom para a própria vida”, disse que hoje é o momento de cada um se interrogar: “O que eu posso fazer de bom pelo Evangelho?”. E adiantou:
No Sínodo, fizemo-nos essa pergunta com o desejo de abrir novas estradas ao anúncio do Evangelho. Anuncia-se somente o que se vive. Para viver de Jesus, para viver do Evangelho, é preciso sair de si mesmo.”.
Depois, disse aos fiéis e peregrinos: 
Sentimo-nos, então, impelidos a descolar, a deixar as costas confortáveis de nossos portos seguros para penetrar nas águas profundas: não nas águas pantanosas das ideologias, mas no mar aberto, onde o Espírito nos convida a lançar as redes”.
Por fim, incitou a invocar a Virgem Maria, para o caminho que virá, “venerada e amada como Rainha da Amazónia”. E disse que Maria adquiriu esse título não como conquistadora, “mas inculturando-se” e, “com a coragem humilde de mãe, tornou-se a protetora de seus filhos, a defesa dos oprimidos”. E precisou:
Sempre indo à cultura dos povos: não há uma cultura padrão, não há uma cultura pura que purifique os outros. Existe o Evangelho, puro, que se incultura. A Ela, que cuidou de Jesus na casa pobre de Nazaré, confiamos os filhos mais pobres e da nossa Casa comum.”.
***
Antes, na homilia da Missa, o Sumo Pontífice afirmou que a ‘religião do eu’ continua hipócrita com os seus ritos e as suas ‘orações’, mas que “muitos são católicos, se confessam católicos e se esqueceram de ser cristãos e humanos”. Assim, podemos dizer que a sua justiça não é superior à dos escribas e fariseus. Por outro lado, frisou que “ouvir o grito dos pobres” conduz ao “grito de esperança da Igreja”. O Papa conduziu a sua reflexão homilética a partir de três exemplos de orantes que as leituras da Liturgia da Palavra contemplam: na parábola de Jesus (Lc 18,9-14), rezam o fariseu e o publicano; na primeira Leitura, fala-se da oração do pobre.
Na sua oração, diz o Pontífice, o fariseu vangloria-se de cumprir do melhor modo preceitos particulares, “mas esquece o maior: amar a Deus e ao próximo. Transbordando de confiança na sua capacidade de observar os mandamentos, nos seus méritos e virtudes, “aparece centrado apenas em si mesmo”. O seu drama é viver sem amor. E, como diz São Paulo, “sem amor, até as melhores coisas de nada serviam”. Ora, sem amor, o resultado é:
Em vez de rezar, [o fariseu] elogia-se a si mesmo. De facto, não pede nada ao Senhor, porque não se sente necessitado nem em dívida, mas com crédito. Está no templo de Deus, mas pratica outra religião, a religião do eu. Muitos grupos ilustres, cristãos católicos, vão por esta estrada.”.
Por outro lado, Francisco diz que, além de Deus, o fariseu esquece o próximo, despreza-o, ou seja, não lhe dá valor. Considera-se melhor que os outros designados por ele como ‘o resto, os restantes’. E o Pontífice verifica amarguradamente:
Em outras palavras, são ‘restos’, descartados dos quais manter-se à distância. Quantas vezes vemos acontecer esta dinâmica na vida e na história! Quantas vezes quem está à frente, como o fariseu relativamente ao publicano, levanta muros para aumentar as distâncias, tornando os outros ainda mais descartados. Ou então, considerando-os atrasados e de pouco valor, despreza as suas tradições, cancela as suas histórias, ocupa os seus territórios e usurpa os seus bens. Quanta superioridade presumida, que se transforma em opressão e exploração, ainda hoje!”.
E disse que se viu isso no Sínodo ao falar-se “sobre a exploração da Criação, das pessoas, dos habitantes da Amazónia, do tráfico de pessoas e do comércio de pessoas”.
Para o Bispo de Roma, “os erros do passado não foram suficientes para deixarmos de saquear os outros e causar ferimentos aos nossos irmãos e à nossa irmã terra: vimos isso no rosto desfigurado da Amazónia”. E, em conformidade com o que verificou, exorta:
Rezemos pedindo a graça de não nos considerarmos superiores, não nos julgarmos íntegros, nem nos tornarmos cínicos e escarnecedores. Peçamos a Jesus que nos cure de criticar e queixar dos outros, de desprezar seja quem for: são coisas que desagradam a Deus.”.
E relevou a cumplicidade de quem acompanhou esta Missa de encerramento do Sínodo:
Provavelmente, hoje acompanham-nos nesta Missa não apenas os indígenas da Amazónia: mas também os pobres das sociedades desenvolvidas, os irmãos e irmãs doentes da Comunità dell’Arche. Estão connosco.”.
Ao invés, a oração do publicano  ajuda-nos a compreender o que é agradável a Deus. Na verdade, “este não começa pelas suas virtudes, mas pelas suas faltas; não pela riqueza, mas pela sua pobreza: não uma pobreza económica” (os publicanos eram ricos e cobravam também injustamente às custas de seus compatriotas), mas uma pobreza de vida, porque no pecado nunca se vive bem”.
E Francisco, salientando que a oração do publicano nasce do coração, destaca:
Aquele homem reconhece-se pobre diante de Deus, e o Senhor ouve a sua oração, feita apenas de sete palavras, mas de atitudes verdadeiras. De facto, enquanto o fariseu estava à frente, de pé, o publicano mantém-se à distância e ‘nem sequer ousava levantar os olhos ao céu’, porque crê que o Céu está ali e é grande, enquanto ele se sente pequeno. E ‘batia no peito’, porque no peito está o coração.”.
Ora, porque a oração que nasce do coração é transparente, o publicano coloca diante de Deus o coração, não as aparências: deixa-se olhar dentro por Deus “sem simulações, sem desculpas, nem justificações”. E o Papa comenta, aproximando esta atitude com o ocorrido no Sínodo:
Muitas vezes fazem-nos rir, os arrependimentos cheios de justificativas. Mais do que arrependimento, parece uma causa própria de canonização. Porque, do diabo, vêm escuridão e falsidade; de Deus, luz e verdade. Foi bom, e agradeço-vos, queridos padres e irmãos sinodais, termos dialogado, nestas semanas, com o coração, com sinceridade e franqueza, colocando fadigas e esperanças diante de Deus e dos irmãos.”.
E sublinhou que, através do publicano, “descobrimos o ponto de onde recomeçar: do facto de nos considerarmos, todos, necessitados de salvação”. É o primeiro passo da religião de Deus, que é misericórdia com quem se reconhece miserável. Considerar-se justo é deixar Deus, o único justo, fora de casa”. A este respeito, Jesus confronta a atitude da pessoa mais piedosa de então, o fariseu, com a do pecador público por excelência, o publicano. E o Papa anota:
E a sentença final inverte as coisas: quem é bom, mas presunçoso, falha; quem é deplorável, mas humilde, acaba exaltado por Deus. Se olharmos para dentro de nós com sinceridade, vemos os dois em nós: o publicano e o fariseu. Somos um pouco publicanos, porque pecadores, e um pouco fariseus, porque presunçosos, capazes de nos sentirmos justos, campeões na arte de nos justificarmos! Isto, com os outros, muitas vezes dá certo; mas, com Deus, não.”.
Por isso, o Santo Padre exorta a que peçamos a Deus “a graça de nos sentirmos necessitados de misericórdia, pobres intimamente”, pois faz-nos bem frequentar os pobres, para nos lembrarmos de que somos pobres e de que “a salvação de Deus só age num clima de pobreza interior”.
Depois, comentando a passagem do Livro de Ben-Sirá (1.ª Leitura), sublinha que a oração do pobre ‘chegará até as nuvens’. E assinala o contraste:
Enquanto a oração de quem se considera justo fica por terra, esmagada pela força de gravidade do egoísmo, a do pobre sobe, direta, até Deus. O sentido da fé do Povo de Deus viu nos pobres ‘os porteiros do Céu’: aquele sensus fidei que faltava no Documento final. São eles que nos abrirão, ou não, as portas da vida eterna; eles que não se consideraram senhores nesta vida, que não se antepuseram aos outros, que tiveram só em Deus a sua própria riqueza. São ícones vivos da profecia cristã.”.
E o Papa argentino fala desta dimensão do Sínodo:  
Neste Sínodo, tivemos a graça de escutar as vozes dos pobres e refletir sobre a precariedade de suas vidas, ameaçadas por modelos de progresso predatórios. E, no entanto, precisamente nesta situação, muitos testemunharam-nos que é possível olhar a realidade de modo diferente, acolhendo-a de mãos abertas como uma dádiva, habitando na criação, não como meio a ser explorado, mas como casa a ser protegida, confiando em Deus. Ele é Pai e ‘ouvirá a oração do oprimido’. Quantas vezes, mesmo na Igreja, as vozes dos pobres não são ouvidas, acabando talvez desprezadas ou silenciadas porque incómodas.”.
Por fim, Francisco concluiu, exortando a que rezemos “pedindo a graça de saber ouvir o grito dos pobres: é o grito de esperança da Igreja”. Com efeito, “assumindo nós o seu grito, temos a certeza de que a nossa oração atravessará as nuvens”.
***
O Cardeal Cláudio Hummes, relator-geral do Sínodo e presidente da REPAM (Rede Eclesial Pan-amazónica), disse que do Sínodo surgiu um apelo à humanidade para salvar o planeta e confessou:
Acredito que o Sínodo conseguiu mostrar novos caminhos e fazer também uma reflexão sobre que tipo de novos caminhos é necessário neste momento”.
Em conversa com Silvonei José, no dia 24, a propósito do Documento final do Sínodo, frisou:
O Sínodo corre dentro dessa grande crise socioambiental que o mundo todo, que o planeta todo, está padecendo, está sofrendo, ou seja, uma crise climática, uma crise ecológica e junto disso, a crise  da pobreza no mundo, dos pobres. Tudo isso, nós chamamos de uma crise socioambiental.”.
Segundo Dom Cláudio, o Documento final “deve ser lido não como se fosse um livro escrito por um autor que tem uma linha de pensamento muito conectado, com uma fluência muito grande”. É um documento construído – e esse é o seu valor – por toda uma grande assembleia, construído por muitas mãos. O importante são os conteúdos, e não se é belo literariamente. É um Documento pastoral, profundamente pastoral” em que devemos ler os conteúdos.  
Realçou o que se afirma na introdução: 
Depois de um longo caminho sinodal de escuta do Povo de Deus na Igreja da Amazónia, inaugurado pelo Papa Francisco na sua visita à Amazónia, em 19 de janeiro de 2018, o Sínodo foi realizado em Roma, num encontro fraterno de 21 dias, em outubro de 2019. O clima foi de trocas abertas, livres e respeitosas entre bispos, pastores da Amazónia, missionários e missionárias, leigos e leigas, e representantes dos povos indígenas da Amazónia. Fomos testemunhas participantes de um evento eclesial marcado pela urgência do tema que conclama abrir novos caminhos para a Igreja no território. Compartilhou-se um trabalho sério num clima marcado pela convicção de escutar a voz presente do Espírito Santo.”.
Disse que o Sínodo foi realizado em clima de fraternidade e oração, tendo várias vezes as intervenções sido acompanhadas por aplausos, cantos e com intervalos de silêncio contemplativo. Por outro lado, fora da sala sinodal, houve uma presença notável de pessoas vindas do mundo amazónico que organizaram atos de apoio em diferentes atividades, procissões, como a abertura com cantos e danças acompanhando o Santo Padre, do túmulo de Pedro à sala sinodal, sendo de referir a Via Sacra dos mártires da Amazónia, bem como uma presença maciça dos média internacionais.
Salientou que todos os participantes expressaram uma profunda consciência da dramática situação de destruição que afeta a Amazónia, o que significa a possibilidade do desaparecimento do território e dos seus habitantes, especialmente dos povos indígenas. Na verdade, a floresta amazónica é um “coração biológico” numa terra cada vez mais ameaçada e em desenfreada corrida para a morte. Requerem-se mudanças radicais de suma urgência e um novo direcionamento que permita salvá-la, pois está cientificamente comprovado que o desaparecimento do bioma Amazónia trará um impacto catastrófico para o planeta.
Relatou o purpurado que o caminho sinodal do Povo de Deus na fase preparatória envolveu, em torno do documento de consulta que inspirou o Instrumentum Laboris, toda a Igreja no território, os Bispos, os missionários e missionárias, os membros das Igrejas de outras confissões cristãs, os leigos e leigas e muitos representantes dos povos indígenas. E enfatizou a importância de se escutar a voz da Amazónia, movida pelo sopro maior do Espírito Santo no grito da terra ferida e de seus habitantes.
Disse que foi registada a participação ativa de mais de 87.000 pessoas, de diferentes cidades e culturas, bem como de inúmeros grupos de outros setores eclesiais e as contribuições académicas e organizações da sociedade civil nos temas centrais específicos.
Por fim, sublinhou que a celebração do Sínodo conseguiu destacar a integração da voz da Amazónia com a voz e o sentimento dos pastores participantes”. E concluiu:
Foi uma nova experiência de escuta para discernir a voz do Espírito Santo que conduz a Igreja a novos caminhos de presença, evangelização e diálogo intercultural na Amazónia. A afirmação, que surgiu no processo preparatório, de que a Igreja era aliada do mundo amazónico, foi fortemente confirmada. A celebração termina com grande alegria e esperança de abraçar e praticar o novo paradigma da ecologia integral, o cuidado da ‘casa comum’ e a defesa da Amazónia.”.
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O Sínodo foi um tempo de graça de que é preciso dar graças a Deus que inspira as pessoas que se reúnem no Espírito Santo e O querem escutar. Importa assumir e levar à prática as suas conclusões sem medo e com audácia no Senhor ao serviço dos irmãos. Prosit. Deus adiuvet!
2019.10.27 – Louro de Carvalho

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