Ainda
está fresca na retina da memória portuguesa a nomeação, pelo Papa Francisco, do
Padre e poeta português José Tolentino Mendonça,
ocorrida no passado dia 26 de junho, como arquivista do Arquivo Secreto do
Vaticano e bibliotecário da Santa Sé, passando a tutelar a mais antiga
biblioteca do mundo e sucedendo na liderança daqueles serviços ao Arcebispo
francês Jean-Louis Bruguès.
O Arquivo Secreto do Vaticano conserva os documentos
relativos ao governo da Igreja para, antes de tudo, estarem à disposição da
Santa Sé e da Cúria no desempenho do próprio trabalho, e para que depois, por
concessão pontifícia, possam representar para todos os estudiosos de história
fontes de conhecimento, mesmo profano, das regiões que há séculos estão
intimamente ligadas com a vida da Igreja. E a Biblioteca Apostólica do
Vaticano apresenta-se como “instrumento da Igreja para o desenvolvimento, a
conservação e a divulgação da cultura” e, constituída pelos Papas, oferece, nas
suas várias secções, “tesouros riquíssimos de ciência e de arte aos estudiosos
que investigam a verdade”.
O sacerdote
português, até agora vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa (UCP) e diretor da Faculdade de Teologia (por
decreto de 22 de maio de 2018, da Congregação para a Educação Católica), foi ainda elevado à dignidade de Arcebispo
de Suava, no Norte de África.
O novo Arcebispo,
que iniciará funções como arquivista do Arquivo Secreto e bibliotecário do
Vaticano no dia 1 de setembro, foi convidado para orientar o retiro anual de
Quaresma do Papa Francisco e da Cúria Romana (que decorreu entre 18 e 23 de fevereiro, em Ariccia,
nos arredores de Roma),
convite que então o deixou tão surpreendido que achou ter “sonhado” com isso.
Conhecido por
utilizar referências à literatura nas meditações religiosas, Dom José Tolentino
Mendonça chegou a citar Fernando Pessoa nas meditações apresentadas ao Papa
Francisco, que lhe agradeceu por conseguir estabelecer uma ponte entre os
textos bíblicos e a literatura secular.
Considerando
o convite do Papa como uma grande honra para a Igreja portuguesa, para Portugal
e para a UCP, a reitora Isabel Gil Capeloa lembra, em comunicado, que
Tolentino Mendonça tinha assumido o pelouro das relações culturais e
bibliotecas da Católica nas últimas duas equipas reitorais. Segundo a reitora
da UCP, o Professor “contribuiu para tornar a atividade artística um eixo
central da ação da Universidade Católica Portuguesa, incentivando um diálogo
renovado e fecundo com a sociedade através da sua intervenção cultural e
literária” e trabalhou no desenvolvimento do Código de Ética e Deontologia da
UCP.
O novo arquivista e bibliotecário da Santa Sé manifestou à
agência Ecclesia a sua determinação
de “servir a Igreja na Cultura”, referindo:
“A Cultura faz-nos viajar à raiz
arquitetural da pessoa, àquilo que constitui o núcleo fundante da sua aventura
existencial, mas também nos permite interrogar e iluminar o seu horizonte de
sentido”.
Dom José Tolentino Mendonça sustenta que a sua missão como
“Arquivista e Bibliotecário da Santa Igreja Romana” se insere numa tradição
papal de “conservar num arquivo próprio a memória dos mártires e a gesta dos
pastores, bem como os livros que asseguravam a atividade litúrgica e as
necessidades administrativas da comunidade eclesial”. O Arcebispo salienta que há,
desde o século VIII, notícias da existência duma biblioteca, enriquecida ao
longo dos tempos com “monumentais e preciosos espólios”, que colocam a atual
Biblioteca Apostólica Vaticana entre “as
mais fascinantes instituições culturais do mundo”. Diz o novel prelado:
“O arquivo e a biblioteca são assim lugares referenciais da memória
específica do cristianismo, mas também da cultura universal; são espaços de
ciência e de construção de pensamento, procurados por investigadores de todo o
mundo que ali encontram o rastro da história e a capacidade que esta tem de
iluminar o presente; são grandes repositórios daquela beleza capaz de ferir de
infinito o coração humano”.
Para este colaborador do Papa, a Cultura é uma das “fronteiras
proféticas” para o catolicismo de todos os tempos e, “de um modo talvez ainda
mais incisivo, para o catolicismo contemporâneo”. Neste sentido, declarou:
“A cultura documenta o que somos, é verdade.
Mas espelha e potencia as grandes buscas interiores, o contacto com as grandes
perguntas, a vizinhança das razões maiores que funcionam como patamares do
caminho a que a nossa humanidade vai chegando, a proximidade daquele vastíssimo
e inconsútil silêncio que, porventura ainda melhor do que a palavra, exprime em
nós o mistério do Ser.”.
No pontificado de Francisco o Arcebispo destaca a “arte do
encontro” que o Papa tem promovido e que encontra na Cultura “um espaço de
desenvolvimento natural”, aliás na linha dos antecessores, embora com um tom
muito próprio. E, sobre a cultura, diz neste sentido:
“A Cultura, no seu sentido mais verdadeiro,
é prática de escuta, de atenção, de intercâmbio e de interdependência; é
exercício interminável de hospitalidade. Não admira que um dos serviços que a
Igreja de cada tempo presta ao futuro seja, por isso, o investimento no diálogo
entre a Fé e a Cultura, que constitui um horizonte inequívoco para uma
apresentação credível do Evangelho ao coração das mulheres e dos homens nossos
contemporâneos e uma reparadora fonte de esperança e de paz.”.
***
Dom José Tolentino Mendonça nasceu em Machico (Região Autónoma da Madeira) em 1965 e foi ordenado sacerdote em
28 de julho de 1990. Deslocou-se para Roma,
onde concluiu, no Pontifício Instituto Bíblico, o mestrado em Ciências Bíblicas. Regressado a
Portugal, ingressou na UCP, onde foi capelão e lecionou as
disciplinas de Hebraico e Cristianismo e Cultura. Aí se doutorou
em teologia bíblica, tornando-se seu professor
auxiliar. Dirigiu até ao ano de 2014 o Secretariado Nacional da Pastoral
da Cultura, da Igreja Católica em Portugal, de que foi o primeiro Diretor e a
revista Didaskália editada pela
Faculdade de Teologia. As linhas de investigação
privilegiadas do teólogo e poeta são Bíblia e literatura, teologia de Paulo,
representações de Jesus nos textos cristãos e na cultura contemporânea, a par
do tema do corpo nos textos cristãos das origens.
O novo Arcebispo, consultor do Conselho Pontifício da Cultura
(Santa Sé) desde 2011, por designação de Bento
XVI, era capelão na Capela do Rato e na UCP, foi reitor do Pontifício Colégio
Português, em Roma, e era diretor da Faculdade de Teologia da UCP. O seu livro
“A Mística do Instante” foi
galardoado com o Prémio literário Res
Magnae 2015, um importante prémio italiano atribuído no campo da
ensaística. Foi o primeiro português e o único não italiano, até à data, a
receber este prémio. Em 2016, a sua obra de cronista foi distinguida com o
prémio APE e a sua obra poética com o Prémio Teixeira de Pascoaes. A 9 de junho
de 2016, foi designado Membro do Conselho das Antigas Ordens Militares. E, em 2012, foi considerado um dos
100 portugueses mais influentes em 2012, pela REVISTA do jornal Expresso.
***
Este padre
poeta é um exemplo do que devia ser qualquer sacerdote: poeta, profeta e
apóstolo.
Com efeito,
Deus é poeta por Se comunicar-se por versos e metáforas. É certo que a Sua
linguagem, carregada de símbolos, é hermética, misteriosa, para o coração duro
e rude, e que, para O entender, se precisa de ouvido espiritual, sensível ao
êxtase transcendental, mas, quando Deus declama, o universo dança, as donzelas
e os jovens saltam de alegria, as crianças sorriem e gritam e os anciãos e
anciãs têm sonhos e visões. E todos fazem associar-se a si a terra, o mar e o
firmamento, os animais e plantas e as próprias pedras para enarrarem as
maravilhas de Deus.
Por que nos
criou à Sua imagem e semelhança, Deus põe os Seus olhos na procura e na mira de
homens e mulheres disponíveis para encarnar os divinos sentimentos. Ora, nesta
linha, vêm os profetas, que foram todos chamados e enviados por Deus para, por
metáforas e imagens, porem dramaticamente o dedo nas chagas sociais, morais e
religiosas cavadas pelos homens, anunciarem, na alegria do Espírito, o
compromisso de Deus com a vida e construírem as sólidas plataformas da
esperança messiânica, vindo, as plantas venenosas congraçar-se com as sãs, os
animais opostos a juntar-se em convivência e as espadas da guerra a
transformar-se em relhas de arado – e, na doçura do poema inspirado, se eleva
ao Altíssimo o melhor hino à vida e ao amor.
Porque o
compromisso de Deus é só com a vida, o Senhor faz alçar homens e mulheres que
se indignam com a sordidez, mas se apaixonam com o sublime. E toda a sua
profecia é vertida em linguagem poética. Inundados do Espírito de Deus, os
profetas cantam em elevado lirismo o sentimento do amor devotado, infinito e
misericordioso de Deus para com o Seu Povo, o ser humano, e cantam a resposta
eucaristicamente anafórica do Povo e do Homem ao seu Deus. Se dramaticamente
levam ao Deus da misericórdia a miséria e debilidade humanas para que Se
apiede, também com a ousadia recebida do Alto põem a humanidade a cantar a épica
Odisseia do Deus que desceu à condição humana para o elevar ao patamar da
condição divina, tornando-o filho com o Filho e com Ele herdeiro dos tesouros
da Verdade, da Bondade e da Beleza.
A vocação poética
do profeta pode não o levar ao jeito de fazer rimas ou versos segundo qualquer
métrica tradicional, mas leva-o ao derrame das lágrimas sobre o ambão da
preleção, ao suor do esforço da caminhada à procura de quem precisa de chamada
de atenção, conforto, metanoia, a sangrar no texto que deseja que perdure para
a posteridade. A expressão rítmica do coração de Deus vaza na tinta da sua
pena. O poeta-profeta pressente o que presente deveria ser, mas ainda não é; e
vê-se convocado para reencantar os desanimados, curar os desesperançados, destilar
beleza de mundos imaginários em terras áridas. E esta atividade dá-lhe o júbilo
de Deus.
A matéria-prima
do profeta é a poesia. Como artesão de polifacetados vasos de cristal ou oleiro
de frágeis vasos de barro, o poeta-profeta maneja a palavra com simplicidade
natural, mas com encantadora delicadeza. Pretende mostrar que o quotidiano, nas
suas perversas contradições, poderia seguir por outra via. O poeta-profeta
derrama-se como óleo perfumado no texto que é todo seu, mas que se torna todo
para os outros porque o recebeu de Deus; faz-se lenho do fogo abrasador que
aquece a história e gera a luminosidade que dá a vista aos cegos; torna-se mola
do coxo que precisa de andar, estímulo para o surdo que precisa de ouvir,
bálsamo para o doente que necessita da cura, farinha e água para quem precisa
de pão e de água para saciar a fome e a sede. Ansioso por conjugar os extremos
na síntese promotora do bem, sabe que o único Absoluto é o Amor, o único Bem é
Vida e o único Alvo é a valorização do instante de Deus.
Como o
poeta-profeta é o apóstolo. Porém, enquanto o profeta se constitui chamado,
predestinado e discípulo mediante uma teofania em que não pôde ver o rosto de
Deus, o apóstolo constitui-se como discípulo privando com o Deus encarnado em
Seu Filho Jesus, sendo convidado a segui-Lo, ouvindo-O no quotidiano, partilhando
com Ele o banquete da Salvação, o trabalho, os direitos e as obrigações; sente
com Ele o momento da celebração da Aliança, come do Seu corpo e bebe do Seu
sangue. Depois, tem o privilégio de rezar com o próprio Jesus/Deus. Não
assistiu à Sua morte porque teve medo ou, se assistiu, recebe como testamento
da caridade divina a Mãe do próprio Deus e confia-se a Ela. Tem mãe. Fixa e contempla
o Ressuscitado e com alegria, movido pela força do Espírito Santo, vai anunciar
que Aquele que estava morto vive e é constituído o Senhor em quem encontramos o
perdão. E esta mensagem é comunicada a partir de Jerusalém, em círculos
concêntricos, até aos últimos confins da Terra.
Queremos
melhor pretexto para o dinamismo poético-profético-apostólico?
Mas há mais.
Enquanto os profetas antigos tinham uma missão provinda dum passado teofânico,
mas nubloso, com vista à aquisição das coisas que iriam acontecer, o apóstolo é
enviado porque foi constituído testemunha ocular e auditiva (ou
equivalente nos seus fundamentos) de factos
já ocorridos que persistem no presente e permitem um futuro assente não apenas
na esperança, que se reforça como força motriz, mas sobretudo na abundância da
caridade divina que se torna mandamento irrecusável com intensidade pessoal e
abrangência universal tornada marca indelével e contagiante dos novos
seguidores, discípulos e apóstolos – quiçá mártires até ao sangue ou professores
da fé até à entrega ilimitada, heroica e docente.
***
Poetas-profetas
discípulos-apóstolos, mártires-professores da fé rejeitam redomas, estufas,
viveiros, gaiolas. Quererem diminuir-se para que Ele cresça. Não aprisionam a
mensagem, o mistério, o projeto. Comunicam-no, divulgam-no, consolidam-no,
celebram-no.
Trocam os
tapetes pelo chão batido. Solitários, não se vergam aos homens; só obedecem a
Deus, que marca o compasso do próprio coração; indomáveis, revoltam-se com o trivial;
irrequietos, perturbam o normal. São verdadeiros revolucionários da ternura e
da misericórdia de Deus. Fazem a poesia da vida e transformam a desgraça em
sublimação do desígnio divino presente nos homens mais pobres, doentes,
descartados ou no coração das almas generosas, dedicadas. De gente dispersa
constroem a comunhão, com indivíduos isolados fazem comunidade viva na fé, na
esperança e no amor. É a verdadeira poesia factiva!
Poetas-profetas
discípulos-apóstolos, mártires-professores da fé não defendem a própria reputação.
Alvos fáceis dos ímpios quando negam a história, só as gerações futuras lhes
fazem justiça. Pedras do meio do caminho incomodam; indestrutíveis, semeiam
trigo que se fará o pão do idealista, do revolucionário, mesmo que perturbado
pelo crescimento irritante da cizânia.
Poeta-profeta
discípulo-apóstolo, mártir-professor da fé é alquimista, pois faz das palavra
poção encantante e o seu feitiço condimenta a vida. Cria sabores exóticos; usa
verbo forte, inebria a imaginação e gera o sonho. Conhece o segredo de
transformar o transcendental no plausível. Alado, vive nas nuvens, mantém
parceria perpétua com os anjos e adora a Deus em espírito e verdade, na
intimidade do quarto, no interior do Templo, no silêncio das montanhas ou no
bulício das praças. Escuta a bruma do vale, agasalha-se sob o manto platinado
da lua e expõe-se ao fulgor e calor do sol. Não teme ausências e a solidão não
o intimida. É selvagem como o tigre, altivo como a águia e acutilante ou
encantador como a serpente.
Poeta-profeta
discípulo-apóstolo, mártir-professor da fé nascera no pé do arco-da-velha;
salvo das águas, cresce como o cedro do Líbano; sensível, plora com o dedilhar
da harpa; torna-se parceiro dos humildes, dos mansos e dos puros de coração.
Contudo, o seu destino é a cruz.
***
Que de junto
de São Pedro e imerso na sua Cultura, Dom José Tolentino, brilhe com a poesia,
a profecia e o apostolado.
2018.07.02 – Louro de Carvalho
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