É desta atitude solícita de Jesus que a Liturgia da Palavra do 16.º
domingo do Tempo Comum no Ano B se faz ressonância.
E começa logo pela perícopa de Jeremias tomada para 1.ª leitura (Jr 23,1-6), com paralelo ampliado no capítulo 34 de Ezequiel. Desde logo, a
censura aos pastores (sacerdotes e reis) que “perdem e dispersam as
ovelhas” do rebanho do Senhor – tudo porque, em vez de terem cuidado com elas,
as escorraçaram (Ezequiel diz que se serviam da lã e do leite
delas), pelo que terão de prestar
contas das suas más ações; depois, a afirmação do propósito do Senhor de Ele
próprio intervir reunindo o resto das ovelhas “de todas as terras onde se
dispersaram” e fazendo-as voltar às suas pastagens, para seu crescimento e
multiplicação; a seguir, porque não convém que seja Ele a cuidar diretamente
das ovelhas, mas reinstituir a participação no pastoreio, dotá-las-á de “pastores
que as apascentem” de modo que não mais tenham medo nem sobressalto, nem se
perca nenhuma.
Entretanto,
o Senhor faz a promessa do surgimento de um rei que vai enviar ao
encontro do seu Povo e que governará com sabedoria e justiça, de tal modo que o
seu nome (coincidente com o designativo da
sua missão) será: ‘O Senhor é a nossa
justiça’.
E hoje sabemos que é Jesus aquele que vem concretizar esta
promessa. Ele é o rebento justo que Deus fez surgir para David, que vem propor
ao “rebanho” a vida plena e verdadeira. É Jesus quem nos traz, como oferta, a
proposta de salvação que Deus nos faz, anunciada pelos antigos profetas, e que
deve ser por nós acolhida em todas as indicações e valores que nos apresenta.
Sendo
Jesus o rosto visível do Pai e, portanto, Senhor poderoso, solícito,
misericordioso e compassivo como Ele e com Ele, faz todo o sentido a proclamação
que o salmista nos faz reiterar com o salmo 23, como expressão da proteção e
ternura com que Deus olha para cada um de nós, criando em nós um inestimável
capital de serenidade e confiança, indutor duma estreita relação com Deus, o
que nos move a um profundo compromisso com a ternura e a compaixão:
O Senhor me leva a descansar em verdes
prados, me conduz às águas refrescantes e me reconforta. Mesmo
que tenha de andar por vales tenebrosos, nada temerei por que Ele está comigo,
pelo que posso n’ Ele confiar (cf Sl 23,1-4).
E, mais do
que a satisfação das necessidades fundamentais, Senhor cumula-nos com os
maiores e melhores elementos do bem-estar, adorno e abundância – felicidade – agora
e para sempre:
Prepara-me a mesa à vista dos adversários e
perfuma-me a cabeça e faz com que o meu cálice transborde. Acompanhar-me-ão
sempre a bondade e a graça e habitarei na casa do Senhor para sempre. (cf Sl 23,5-6).
***
Só nos resta fazer, na assunção
da nossa missão profético-apostólica em união com o Mestre e Senhor de quem
somos discípulos e seguidores – com que todos os componentes do novo Israel,
que abrange judeus e pagãos de todos os tempos e lugares, ganhem a capacidade
de cantar permanentemente este hino ao Bom Pastor.
***
O Evangelho de Marcos (Mc 6,30-34) apresenta-nos Jesus em duas
vertentes: a de grande líder de apóstolos (Ele é o grande enviado – apóstolo – do Pai); e a de Pastor que se
compadece da multidão quais ovelhas sem pastor.
Os apóstolos ou enviados (em grego: apóstoloi,
nome da família lexical do verbo apostèllein), provavelmente em Cafarnaum, voltaram
para junto de Jesus e contaram-Lhe quanto haviam feito e ensinado. Isto, depois
de terem desempenhado cabalmente a missão de que Eles os tinha encarregado (cf Mc 6,6b-13) e para a qual os tinha
enviado, a pregar e incitar o povo à conversão, bem como a expulsar muitos
demónios e ungir com óleo e curando muitos enfermos. Em Lucas, é referido que
este desempenho deu muita alegria aos discípulos (vd Lc 10,17s), confirmada pelo Mestre, que
lhes disse ter visto Satanás cair do céu como um raio e prometendo dar-lhes o
poder de pisarem serpentes e escorpiões e o domínio sobre todo o poderio
inimigo, mas advertindo que a causa da alegria é terem os seus nomes inscritos
no céu (cf Lc 10,19-20).
Ciente factual do cansaço deles
e tendo em conta a necessidade do merecido repouso, convidou-os a irem com Ele para
um lugar isolado para descansarem um pouco. Na verdade, era enorme a quantidade
de gente a chegar e a partir que eles nem de tempo para comer dispunham –
provavelmente em razão do êxito do trabalho dos discípulos e também do facto de
muitos peregrinos se dirigirem a Jerusalém para a festa da Páscoa.
Veem aqui os padres espirituais
a chamada de atenção para a fuga do excesso de ativismo, por ser necessário
retemperar forças e reganhar a força do Alto, necessária para garantir o ardor
e a alegria da missão. Porém, esta solicitude de Jesus para com o repouso dos
discípulos após a emoção da primeira experiência missionária só é mencionada
por Marcos.
Todavia, há situações que
exigem um esforço adicional ao Mestre e, por consequência, aos discípulos, que
não são mais que o Mestre. E esta situação acontece a seguir, passando Jesus a
assumir a vertente de Bom Pastor.
Ao partirem de barco sem mais ninguém, muitos
perceberam para onde iam; e, de todas as cidades, acorreram a pé para aquele
lugar e chegaram primeiro que Jesus e os discípulos. Assim, Jesus viu, ao
desembarcar, uma grande multidão e compadeceu-Se de toda aquela gente, que eram
como ovelhas sem pastor (cf Mt 9,36).
Aqui Jesus, esquecido do seu
cansaço e do dos discípulos, não se furtou a atender a multidão, agregando a si
os discípulos nesta atividade, como se pode ler na perícopa que a esta se segue
no mesmo capítulo do Evangelho de Marcos.
No final da perícopa do
Evangelho assumida para o 16.º domingo, vem a referência explícita de que Ele “começou
a ensinar-lhes (à
multidão) muitas coisas”e não algo
ocasional.
O episódio, como tal, é comezinho. Todavia, Marcos aproveita-o
para desenvolver a sua catequese sobre o discipulado em torno dos seguintes
pontos:
- Os apóstolos são os enviados a continuar no mundo a missão
de Jesus, cujo núcleo fundamental é o anúncio do Reino. E, no cumprimento da
missão, os apóstolos convidam os homens que escutam a mensagem a mudarem de
vida e acolherem a proposta de Jesus. Os gestos dos discípulos (“expulsaram demónios, curaram
doentes” – Mc 6,13)
anunciam o mundo novo de homens livres e o projeto de vida verdadeira e plena
que Deus a todos oferece.
- A referência à necessidade de os “apóstolos” descansarem
constitui um alerta contra o ativismo exagerado, como se disse, que destrói as
forças do corpo e do espírito e pode induzir a perda do sentido da missão.
- Os “apóstolos” são instados por Jesus a irem com Ele para
um lugar isolado. Não interessa a sua localização geográfica, mas que tal
“descanso” deve ocorrer junto de Jesus para recuperarem as forças, escutando-O,
dialogando com Ele, gozando da sua intimidade. De facto, se os discípulos não
confrontarem, frequentemente, os seus esquemas e projetos pastorais com Jesus e
a sua Palavra, a missão redundará em fracasso. Devem, pois, articular
constantemente a ação/reflexão olhando a realidade, fazendo o discernimento à
luz da Palavra de Deus e agindo em consequência
- Da busca das multidões incansável e impaciente passa-se, com
algum dramatismo, ao espelhamento da ânsia de vida que as pessoas sentem. Jesus
entende a condição humana do sofrimento (pathos, do verbo pascho, em grego; e passio,
do verbo patior em latim) da multidão e de cada pessoa. E,
cheio de compaixão (sympátheia, em grego; e compassio, em latim), ou seja, da capacidade de sofrer com ou de assumir solidariamente o
nosso sofrimento – o que fará ao máximo por nós no patíbulo da cruz aquando da
chegada da sua hora – vê na multidão um rebanho sem pastor e nas pessoas as
ovelhas exploradas, abandonadas, perdidas, dispersas, escorraçadas. E não é nos
líderes da nação que encontram segurança e esperança, nem nos cerimoniais dos
ritos tradicionais da religião que encontram paz e sentido para a vida. É, sim,
em Jesus e na sua proposta que as multidões encontram a vida verdadeira e
plena.
E a primeira coisa que Jesus faz não é cuidar (pastor é aquele que cuida) da comida e bebida das pessoas, mas
da Palavra: “começou a ensinar-lhes (à multidão)
muitas coisas”.
Na sequência desta cena, Marcos vai narrar a cena da
multiplicação dos pães e dos peixes, que saciam a fome de cinco mil homens. Era
noite e a multidão não tinha que comer nem sítio aonde pudesse ir abastecer-se.
E não é lícito, para Jesus, seguir a sugestão dos discípulos: mandar aquela
gente embora.
Porém, se os discípulos ainda não estavam capacitados para o
ensino, estavam hipoteticamente preparados para resolver o problema da fome das
multidões. No entanto, a realidade era outra: só tinham cinco pães e dois
peixes. Não era, pois, viável cumprir a ordem do Mestre: “dai-lhes vós mesmos
de comer”. Porém, Jesus não dispensou o pouquinho que os discípulos tinham
consigo. Pegou nele e multiplicou-o a ponto de gerar a satisfação e a
abundância. Ficaram saciados e ainda sobraram doze cestos de pedaços.
Como lógica inferição, é de anotar que, em primeiro lugar,
está o anúncio do Reino, o apelo à conversão, o conforto espiritual e o
bem-estar corporal. Mas não pode descurar-se a colmatação da fome e da sede sempre
que tal seja imperativo, não nos podendo nós desculpar com o cansaço ou com a
atenção às necessidades rituais ou mesmo espirituais. É preciso prover o bem do
homem todo e de todos os homens, a começar à nossa volta.
Aqui, Jesus aparece como o supremo cuidador das multidões.
Não obstante, não olvidará o seu cuidado com a pessoa singular. Ele assume a
preocupação de pastor pela ovelha perdida, deixando as 99 no deserto, e a
alegria do seu reencontro para cuja partilha convida os amigos (vd Mt 18,12-14; Lc 15,3-7). E, no capítulo 10 do Evangelho de
João, assume-se inequivocamente como o Bom
Pastor: entra pela porta do aprisco; chama todas as ovelhas, sem exclusão,
mas nomeando cada uma pelo seu nome, porque as conhece e elas conhecem- n’O;
vai à frente delas e elas O seguem; diferencia-se dos salteadores, ladrões e
mercenários (vieram antes
d’Ele); veio para que as
ovelhas tenham a vida e a tenham em abundância; dá livremente a vida pelas suas
ovelhas; pretende cuidar também das que não estão no redil, que hão de ouvir a
sua voz e, por conseguinte, haverá um só rebanho e um só pastor.
***
Por fim, é de considerar que a Carta aos Efésios (Ef 2,13-18) nos ensina como Jesus concretizou
este pastoreio que nos leva a aproximar-nos de Deus.
Ele fez de judeus e gregos um só povo e derrubou o separador muro
da inimizade, anulando, pela imolação do Seu corpo, a Lei de Moisés com as suas
prescrições e decretos. Pela força do Seu sangue, fez de uns e outros em Si
próprio um só homem novo, estabelecendo a paz. De facto, pela cruz reconciliou
com Deus uns e outros, reunidos num só Corpo, levando em Si próprio a morte à
inimizade.
E anunciou a boa nova da paz para os que estavam longe e paz
para aqueles que estavam perto. Por Ele, uns e outros podem aproximar-se do
Pai, num só Espírito.
Se a cruz em que derramou o Seu sangue até à última gota está
longe no tempo, tal como a Ceia em que Se deu em corpo e sangue aos discípulos,
hoje temos, connosco a celebração da Fração do Pão (a Eucaristia) em que se presentifica
incruentamente e com força operativa o Sacrifício do Calvário, a ambiência
comunitária e de comunhão da Última Ceia, o banquete dos filhos reunidos, a
antecipação do Reino que há de vir. E as almas enchem-se de graça e bondade.
Repare-se como na cena da multiplicação dos pães e dos peixes
os gestos são parecidos com os da instituição da Eucaristia: “erguendo os
olhos ao céu, pronunciou a bênção, partiu os pães e dava-os aos seus
discípulos, para que eles os repartissem”.
Podemos ler Mc 14,22 (tomou um pão e, depois de pronunciar a
bênção, partiu-o e entregou-o aos discípulos dizendo: “Tomai: isto é o meu corpo”); Mt 26,26 (Enquanto comiam, Jesus tomou o pão e, depois
de pronunciar a bênção, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: “Tomai,
comei: Isto é o meu corpo”) e Lc 22,19 (Tomou, então, o pão e, depois de dar graças, partiu-o e
distribuiu-o por eles, dizendo: “Isto é o meu corpo, que vai ser entregue por vós;
fazei isto em minha memória”). E vemos, assim, como os gestos são muito semelhantes. Se Lucas manda
aos discípulos fazer a distribuição do pão e que, de futuro, fizessem isto em
sua memória, também na perícopa de Marcos acima comentada Jesus manda que os
discípulos façam a distribuição da comida pelas pessoas.
***
Em suma, a liturgia do 16.º domingo do Tempo Comum no Ano B dá-nos conta
do amor compassivo solícito de Deus pelas “ovelhas sem pastor” – amor e solicitude
que se concretizam na proposta de salvação a todos e na oferta da própria vida
para que todos tenham a vida e a tenham em abundância – escopo enquadrado pela
Palavra e pelos sinais, que devemos entender e assumir.
2018.07.22 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário