Sim, se
hoje, dia 29 de julho, não fosse domingo, celebrar-se-ia a memória litúrgica de
Santa Marta, irmã de Lázaro, que Jesus ressuscitou, e de Maria. Marta servia
com diligência o Senhor e com a sua fé, que a fazia acreditar na ressurreição
dos mortos no último dia, acolheu a asserção de Jesus como “a Ressurreição e a
Vida” e contemplou a ressurreição do irmão.
Coincidiu
com este dia de Marta o óbito do Bispo emérito de Bragança-Miranda, Dom António
José Rafael, diligente na formulação de ideias e gizamento de planos pastorais
(em
tempo em que a pastoral em Portugal era mais reativa que interventiva) e vigoroso na intervenção e na
ação – muito semelhante à Marta do evangelho – mas também homem de muita fé e oração.
É agora
rotulado de bispo polémico pela generalidade dos órgãos de comunicação social (não lhes agradou, caso contrário seria homem de convicções
fortes),
justamente porque soube sempre estar do lado dos seus padres esconjurando a
avidez de alguma comunicação social a propósito de alguns factos, lutou, por
vezes ingloriamente, contra a apresentação de políticas públicas que entendia
colidirem com a dignidade humana e com a doutrina cristã, não se amoldando ao politicamente
correto.
O
Presidente da República, como se pode ler pela nota da página da Presidência, enaltece
nele “uma vida longa ao serviço da Igreja, do povo transmontano e dos
portugueses”, que “deixa, também ao Presidente da República que o
conhecia desde há muito, memórias perenes de dedicação ao bem comum e
na defesa da igualdade entre os cidadãos, cumprindo o Evangelho e sendo um
incansável porta-voz da Palavra”. Fica tudo dito!
E o porta-voz
da Conferência Episcopal, Padre Manuel Barbosa SJ, frisou em comunicado:
“A Conferência Episcopal manifesta sentida
comunhão para com Dom António José Rafael, neste dia em que o Senhor o chamou
para junto de Si, depois de 92 anos intensamente vividos ao serviço da Igreja,
em particular como Pastor da Diocese de Bragança-Miranda. Exprime ainda
profundo agradecimento pela sua dedicação à Igreja em Portugal, participando
ativamente nas comissões e organismos da Conferência Episcopal. Que o seu lema
enquanto Bispo permaneça na sua paz eterna com Deus, vivida ‘na graça e na
verdade por Jesus’ (cf Jo 1,17).”.
***
Dom António
José Rafael nasceu a 11 de novembro de 1925, em Paradinha, do concelho de Moimenta
da Beira e, depois do curso dos seminários de Resende e de Lamego, recebeu a ordenação
de presbítero a 22 de agosto de 1948, paroquiou durante algum tempo Fontelo, do
concelho de Armamar, e fez a licenciatura em Filosofia na Pontifícia Universidade
de Salamanca. Foi professor e prefeito no Seminário de Resende, tendo passado a
vice-reitor. Foi nesta última condição que o via nos meus dois primeiros anos
de seminário, sendo que, no primeiro, foi meu professor de civilidade ou
urbanidade e religião e, no segundo, professor de matemática.
Sucedeu-lhe
no cargo o Dr. Mário de Araújo Pereira Pinto, porque o então cónego Rafael foi
chamado para a direção espiritual dos cursos de cristandade da diocese. Além disso,
foi vigário episcopal dos leigos, bem como administrador e coordenador da Voz de Lamego. Nesta última condição, trabalhei
com ele e com o então Cónego Simão Morais Botelho, diretor, o que me deu ensejo
à leitura de muitos livros enviados ao jornal para recensão crítica.
Foi ainda colaborador do Congresso Eucarístico, delegado diocesano da
Comissão Episcopal de Vigilância da Fé e presidente da Comissão Diocesana do
Ano Santo e da Comissão dos Centenários da Diocese.
Entretanto,
na manhã de 8 de dezembro de 1976, passei por Lamego e fui visitá-lo ao seu
gabinete no Centro Apostólico. Estava ele ao telefone e ouvi-o dizer para alguém
que tinha em linha: “Reze também por esta
intenção”. Ora, como eu não sabia do que se passava, perguntei-lhe que
desgraça tinha acontecido, ao que me respondeu que tinha sido nomeado, na véspera,
Bispo Titular de Budua e Auxiliar de
Bragança. Embora lhe tenha respondido que o facto só pecou por ser muito tardio,
dei-lhe os parabéns e desejei bons frutos pastorais. E, a seu pedido,
acompanhei-o até à porta do Colégio da Imaculada Conceição, aonde ele, na
qualidade de capelão, ia celebrar a missa da Solenidade. E, assim, me colocou a
par da situação com os pormenores da ordem.
Devo recordar que o convidámos (os alunos
do então oitavo ano do Seminário) para fazer o sermão da festa
de São Tomás de Aquino no último ano em que foi celebrada a 7 de março. No ano seguinte
começou a ser celebrada a 28 de janeiro.
Recebeu a ordenação episcopal a 13 de fevereiro de 1977, na
Sé Catedral de Lamego. Participei na celebração integrando o grupo coral, tendo
treinado a sós em Vila Nova de Paiva os cânticos religiosos e participado no último
ensaio geral já em Lamego, aonde me desloquei de véspera.
Acompanhado por Dom Manuel de Jesus Pereira, natural de Baldos, também
do concelho de Moimenta da Beira, entrou solenemente na Diocese de Bragança a
19 de março.
Após o falecimento de Dom Manuel de Jesus Pereira, foi
nomeado vigário capitular e nomeado Bispo de Bragança-Miranda a 1 de março de 1979, tendo tomado posse a 24 do mesmo mês.
Resignou a 13 de junho de 2001, mas ainda presidiu à
dedicação da Nova Catedral de Bragança a 7 de outubro do mesmo ano. O sucessor,
Dom António Montes Moreira, que fora nomeado à data da resignação de Dom
Rafael, recebeu a ordenação episcopal a seguir, em 4 de outubro.
Faleceu hoje, com a idade de 92 anos. A Diocese de
Bragança-Miranda informou que o corpo se encontra no Santuário da Família, na
Fundação Betânia (em Bragança), indo, pelas 19 horas, para a
Catedral, onde teve lugar uma Vigília de Oração pelas 22 horas.
A missa exequial
realiza-se no dia 30, seguindo-se o funeral no átrio dos Bispos na Catedral.
Ao longo do seu ministério pastoral, cujo lema preferido se centrou n’A graça e a verdade por Jesus (cf Jo 1,17), o prelado foi responsável pela projeção da nova Catedral de Bragança,
que começou a ser construída em 1981 e foi dedicada, como se disse a 7 de outubro
de 2001, no seu último ano à frente da Diocese.
***
Refere o Expresso
on line que “a
insistência durante 22 anos na construção de uma nova catedral em Bragança
marcou o episcopado de António Rafael”; que “ficou
conhecido como o ‘bispo polémico’, pelas suas intervenções na vida da Diocese e
do país, que foram muito além do que à Igreja diz respeito (sic)”; que, “ao longo do seu episcopado pediu ao Governo que criasse
incentivos para as famílias numerosas de forma a combater a desertificação que
assola o Nordeste Transmontano” (apelando insistentemente à geração de filhos por
parte dos transmontanos); que combateu a
legalização do aborto, comparando-o ao holocausto nazi, e ameaçou não dar os
sagrados sacramentos a quem se dissesse a favor desta prática; e que “defendeu que os salários dos mais abastados
deviam ser congelados até que todo o país recebesse, pelo menos, o salário
mínimo nacional”.
Mais, segundo o Expresso,
“a sua discordância com a governação de Mário Soares, enquanto Primeiro-Ministro,
foi ao ponto de apelar aos emigrantes portugueses para não enviarem as suas
poupanças para Portugal, porque o dinheiro cairia num saco roto”. Mas o Expresso esquece que Mário Soares foi
recebido na velha Catedral de Bragança por Dom António Rafael, que ali o fez
entrar debaixo do pálio processional, como era tradição serem recebidos os
Chefes de Estado e que Mário Soares, tendo sido muito parco nas palavras como
que se referiu a Dom Rafael, não deixou de dizer que fora um homem especial.
Apesar de ser fortemente regionalista, como o demonstrou no III
Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro, votou “não” no referendo sobre a regionalização,
em 1998, tendo em conta o mapa apresentado a sufrágio. “Com a mesma
frontalidade, aplaudiu a descriminalização do consumo de drogas, considerando
que não se deve castigar um toxicodependente, que é um doente, mas sim os traficantes
que são os verdadeiros criminosos”. E contestou a atribuição do prémio Nobel da
Literatura a José Saramago, no que não pode ser crucificado por emitir opinião.
Foi ainda criticado pelo seu alegado “autoritarismo e reações
repentinas”, entre as quais aquelas em que expulsou os jornalistas do Paço em
situações controversas como a manifestação dos populares de Vilares da Vilariça
contra o pároco local. E enfrentou a contestação das gentes de Miranda da Douro
à alegada “despromoção” da Sé de Miranda, ao construir a “igreja mãe” em
Bragança e à colocação em segundo lugar da terra berço da diocese, na nova
designação – “Diocese de Bragança-Miranda”. Mas não é bem assim: como explicou
à RTP, os bispos começaram por ter o título de Miranda, passaram ao título de
Bragança e foi com Dom António José Rafael que Paulo VI fez o título composto
de Bragança-Miranda, ficando a Sé de Miranda como Concatedral.
O Expresso diz que as
suas intervenções “foram muito além do que à Igreja diz respeito”, mas o semanário
não está conforme à missão da Igreja quando a pretende encurralar na sacristia
ou no templo. Cumpre ao Bispo pronunciar-se com a necessária clareza e com a frontalidade
sobre o que pensa no atinente aos problemas das pessoas e das populações. Qual das
críticas – com razão ou sem ela – ultrapassa as raias da missão da Igreja?
De resto, o juízo global a fazer de Dom António José Rafael, que a
História há de evidenciar, não se confina à polémica nem mesmo à catedral, que
é imponente obra da sua tenacidade, (ideia de 230 anos) como bem recordou em tempos a engenheira
Joaquina Miranda em conversa privada. Para o prelado não havia meias tintas,
mas era absolutamente respeitador da opinião e do trabalho dos outros – digo-o
por experiência pessoal.
Aquando da celebração dos 40 anos de episcopado de Dom Rafael, Dom
José Cordeiro disse:
“Dom António José Rafael,
bispo emérito da diocese, era um europeísta, mesmo antes de 1985, e que
transformou ‘as dificuldades em oportunidades. […] Diante do seu estilo
frontal, lutador e corajoso ninguém ficou indiferente. Pensava a Europa como um
lugar de Paz e de solidariedade olhando ao seu patrono – S. Bento – com o mote
‘ora et labora’.”.
***
Que Deus receba a sua alma e o recompense dos seus trabalhos e
intervenções mesmo que polémicas.
2018.07.29 –
Louro de Carvalho
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