domingo, 29 de julho de 2018

Em dia de Santa Marta, faleceu Dom António José Rafael


Sim, se hoje, dia 29 de julho, não fosse domingo, celebrar-se-ia a memória litúrgica de Santa Marta, irmã de Lázaro, que Jesus ressuscitou, e de Maria. Marta servia com diligência o Senhor e com a sua fé, que a fazia acreditar na ressurreição dos mortos no último dia, acolheu a asserção de Jesus como “a Ressurreição e a Vida” e contemplou a ressurreição do irmão.
Coincidiu com este dia de Marta o óbito do Bispo emérito de Bragança-Miranda, Dom António José Rafael, diligente na formulação de ideias e gizamento de planos pastorais (em tempo em que a pastoral em Portugal era mais reativa que interventiva) e vigoroso na intervenção e na ação – muito semelhante à Marta do evangelho – mas também homem de muita fé e oração.
É agora rotulado de bispo polémico pela generalidade dos órgãos de comunicação social (não lhes agradou, caso contrário seria homem de convicções fortes), justamente porque soube sempre estar do lado dos seus padres esconjurando a avidez de alguma comunicação social a propósito de alguns factos, lutou, por vezes ingloriamente, contra a apresentação de políticas públicas que entendia colidirem com a dignidade humana e com a doutrina cristã, não se amoldando ao politicamente correto.
O Presidente da República, como se pode ler pela nota da página da Presidência, enaltece nele “uma vida longa ao serviço da Igreja, do povo transmontano e dos portugueses”, que “deixa, também ao Presidente da República que o conhecia desde há muito, memórias perenes de dedicação ao bem comum e na defesa da igualdade entre os cidadãos, cumprindo o Evangelho e sendo um incansável porta-voz da Palavra”. Fica tudo dito!
E o porta-voz da Conferência Episcopal, Padre Manuel Barbosa SJ, frisou em comunicado:
A Conferência Episcopal manifesta sentida comunhão para com Dom António José Rafael, neste dia em que o Senhor o chamou para junto de Si, depois de 92 anos intensamente vividos ao serviço da Igreja, em particular como Pastor da Diocese de Bragança-Miranda. Exprime ainda profundo agradecimento pela sua dedicação à Igreja em Portugal, participando ativamente nas comissões e organismos da Conferência Episcopal. Que o seu lema enquanto Bispo permaneça na sua paz eterna com Deus, vivida ‘na graça e na verdade por Jesus’ (cf Jo 1,17).”.
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Dom António José Rafael nasceu a 11 de novembro de 1925, em Paradinha, do concelho de Moimenta da Beira e, depois do curso dos seminários de Resende e de Lamego, recebeu a ordenação de presbítero a 22 de agosto de 1948, paroquiou durante algum tempo Fontelo, do concelho de Armamar, e fez a licenciatura em Filosofia na Pontifícia Universidade de Salamanca. Foi professor e prefeito no Seminário de Resende, tendo passado a vice-reitor. Foi nesta última condição que o via nos meus dois primeiros anos de seminário, sendo que, no primeiro, foi meu professor de civilidade ou urbanidade e religião e, no segundo, professor de matemática.
Sucedeu-lhe no cargo o Dr. Mário de Araújo Pereira Pinto, porque o então cónego Rafael foi chamado para a direção espiritual dos cursos de cristandade da diocese. Além disso, foi vigário episcopal dos leigos, bem como administrador e coordenador da Voz de Lamego. Nesta última condição, trabalhei com ele e com o então Cónego Simão Morais Botelho, diretor, o que me deu ensejo à leitura de muitos livros enviados ao jornal para recensão crítica.
Foi ainda colaborador do Congresso Eucarístico, delegado diocesano da Comissão Episcopal de Vigilância da Fé e presidente da Comissão Diocesana do Ano Santo e da Comissão dos Centenários da Diocese.
Entretanto, na manhã de 8 de dezembro de 1976, passei por Lamego e fui visitá-lo ao seu gabinete no Centro Apostólico. Estava ele ao telefone e ouvi-o dizer para alguém que tinha em linha: “Reze também por esta intenção”. Ora, como eu não sabia do que se passava, perguntei-lhe que desgraça tinha acontecido, ao que me respondeu que tinha sido nomeado, na véspera, Bispo Titular de Budua e Auxiliar de Bragança. Embora lhe tenha respondido que o facto só pecou por ser muito tardio, dei-lhe os parabéns e desejei bons frutos pastorais. E, a seu pedido, acompanhei-o até à porta do Colégio da Imaculada Conceição, aonde ele, na qualidade de capelão, ia celebrar a missa da Solenidade. E, assim, me colocou a par da situação com os pormenores da ordem.
Devo recordar que o convidámos (os alunos do então oitavo ano do Seminário) para fazer o sermão da festa de São Tomás de Aquino no último ano em que foi celebrada a 7 de março. No ano seguinte começou a ser celebrada a 28 de janeiro.
Recebeu a ordenação episcopal a 13 de fevereiro de 1977, na Sé Catedral de Lamego. Participei na celebração integrando o grupo coral, tendo treinado a sós em Vila Nova de Paiva os cânticos religiosos e participado no último ensaio geral já em Lamego, aonde me desloquei de véspera.
Acompanhado por Dom Manuel de Jesus Pereira, natural de Baldos, também do concelho de Moimenta da Beira, entrou solenemente na Diocese de Bragança a 19 de março.
Após o falecimento de Dom Manuel de Jesus Pereira, foi nomeado vigário capitular e nomeado Bispo de Bragança-Miranda a 1 de março de 1979, tendo tomado posse a 24 do mesmo mês.
Resignou a 13 de junho de 2001, mas ainda presidiu à dedicação da Nova Catedral de Bragança a 7 de outubro do mesmo ano. O sucessor, Dom António Montes Moreira, que fora nomeado à data da resignação de Dom Rafael, recebeu a ordenação episcopal a seguir, em 4 de outubro.
Faleceu hoje, com a idade de 92 anos. A Diocese de Bragança-Miranda informou que o corpo se encontra no Santuário da Família, na Fundação Betânia (em Bragança), indo, pelas 19 horas, para a Catedral, onde teve lugar uma Vigília de Oração pelas 22 horas.
A missa exequial realiza-se no dia 30, seguindo-se o funeral no átrio dos Bispos na Catedral.
Ao longo do seu ministério pastoral, cujo lema preferido se centrou n’A graça e a verdade por Jesus (cf Jo 1,17), o prelado foi responsável pela projeção da nova Catedral de Bragança, que começou a ser construída em 1981 e foi dedicada, como se disse a 7 de outubro de 2001, no seu último ano à frente da Diocese.
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Refere o Expresso on line que “a insistência durante 22 anos na construção de uma nova catedral em Bragança marcou o episcopado de António Rafael”; que “ficou conhecido como o ‘bispo polémico’, pelas suas intervenções na vida da Diocese e do país, que foram muito além do que à Igreja diz respeito (sic)”; que, “ao longo do seu episcopado pediu ao Governo que criasse incentivos para as famílias numerosas de forma a combater a desertificação que assola o Nordeste Transmontano” (apelando insistentemente à geração de filhos por parte dos transmontanos); que combateu a legalização do aborto, comparando-o ao holocausto nazi, e ameaçou não dar os sagrados sacramentos a quem se dissesse a favor desta prática; e que “defendeu que os salários dos mais abastados deviam ser congelados até que todo o país recebesse, pelo menos, o salário mínimo nacional”.
Mais, segundo o Expresso, “a sua discordância com a governação de Mário Soares, enquanto Primeiro-Ministro, foi ao ponto de apelar aos emigrantes portugueses para não enviarem as suas poupanças para Portugal, porque o dinheiro cairia num saco roto”. Mas o Expresso esquece que Mário Soares foi recebido na velha Catedral de Bragança por Dom António Rafael, que ali o fez entrar debaixo do pálio processional, como era tradição serem recebidos os Chefes de Estado e que Mário Soares, tendo sido muito parco nas palavras como que se referiu a Dom Rafael, não deixou de dizer que fora um homem especial.
Apesar de ser fortemente regionalista, como o demonstrou no III Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro, votou “não” no referendo sobre a regionalização, em 1998, tendo em conta o mapa apresentado a sufrágio. “Com a mesma frontalidade, aplaudiu a descriminalização do consumo de drogas, considerando que não se deve castigar um toxicodependente, que é um doente, mas sim os traficantes que são os verdadeiros criminosos”. E contestou a atribuição do prémio Nobel da Literatura a José Saramago, no que não pode ser crucificado por emitir opinião.
Foi ainda criticado pelo seu alegado “autoritarismo e reações repentinas”, entre as quais aquelas em que expulsou os jornalistas do Paço em situações controversas como a manifestação dos populares de Vilares da Vilariça contra o pároco local. E enfrentou a contestação das gentes de Miranda da Douro à alegada “despromoção” da Sé de Miranda, ao construir a “igreja mãe” em Bragança e à colocação em segundo lugar da terra berço da diocese, na nova designação – “Diocese de Bragança-Miranda”. Mas não é bem assim: como explicou à RTP, os bispos começaram por ter o título de Miranda, passaram ao título de Bragança e foi com Dom António José Rafael que Paulo VI fez o título composto de Bragança-Miranda, ficando a Sé de Miranda como Concatedral.
O Expresso diz que as suas intervenções “foram muito além do que à Igreja diz respeito”, mas o semanário não está conforme à missão da Igreja quando a pretende encurralar na sacristia ou no templo. Cumpre ao Bispo pronunciar-se com a necessária clareza e com a frontalidade sobre o que pensa no atinente aos problemas das pessoas e das populações. Qual das críticas – com razão ou sem ela – ultrapassa as raias da missão da Igreja?
De resto, o juízo global a fazer de Dom António José Rafael, que a História há de evidenciar, não se confina à polémica nem mesmo à catedral, que é imponente obra da sua tenacidade, (ideia de 230 anos) como bem recordou em tempos a engenheira Joaquina Miranda em conversa privada. Para o prelado não havia meias tintas, mas era absolutamente respeitador da opinião e do trabalho dos outros – digo-o por experiência pessoal.
Aquando da celebração dos 40 anos de episcopado de Dom Rafael, Dom José Cordeiro disse:
Dom António José Rafael, bispo emérito da diocese, era um europeísta, mesmo antes de 1985, e que transformou ‘as dificuldades em oportunidades. […] Diante do seu estilo frontal, lutador e corajoso ninguém ficou indiferente. Pensava a Europa como um lugar de Paz e de solidariedade olhando ao seu patrono – S. Bento – com o mote ‘ora et labora’.”.
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Que Deus receba a sua alma e o recompense dos seus trabalhos e intervenções mesmo que polémicas.
2018.07.29 – Louro de Carvalho

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