Como refere
o Vatican News a 6 de julho, na
última edição da “Communio”, revista teológica
internacional, fundada por Joseph Ratzinger, vem publicada uma contribuição de Bento XVI para o
diálogo entre cristãos e judeus.
Trata-se do
texto sob o título “Misericórdia e
vocação sem arrependimentos”, assinado por “Joseph Ratzinger – Bento XVI”,
datado 26 de outubro de 2017, que pretende aprofundar um documento publicado,
em 2015, pela Comissão da Santa Sé para as Relações Religiosas com o Judaísmo,
documento esse que visava dar uma nova direção à relação entre judeus e
cristãos há 50 anos da Declaração conciliar “Nostra Aetate”, sobre a Igreja e as Religiões não Cristãs.
O objetivo de
Bento XVI é contribuir para uma reflexão sobre o cancelamento pós-conciliar da
“teoria da substituição” e sobre o
conceito de “aliança nunca dissolvida”.
E corporiza uma reflexão crítica dos modelos atuais no diálogo judaico-cristão
e na meditação teológica sobre a relação entre judaísmo e cristianismo.
Segundo o
que o cardeal Kurt Koch, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade
dos Cristãos, escreveu no
prefácio, Bento XVI entregou-lhe o seu ensaio como uma reflexão pessoal, não
destinada à publicação. Porém, o purpurado conseguiu convencer o Papa emérito a
publicar o texto na mencionada revista, para que pudesse ser, conforme escreve
o prefaciador, uma contribuição para “um diálogo teológico mais profundo entre
a Igreja Católica e o Judaísmo”, um diálogo que Ratzinger “sempre levou muito a
sério”. Em concreto, Bento XVI acredita que as duas expressões “teoria da substituição” e “aliança nunca dissolvida” precisam de
ser aprimoradas. Com efeito, na opinião do Pontífice emérito, “as duas teses –
que Israel não é substituído pela Igreja e que a aliança nunca foi dissolvida –
são, no geral, corretas, embora em muitos aspectos não sejam suficientemente
precisas e necessitem de maior reflexão crítica”. Na verdade, segundo o que
escreve, “a ideia de que a Igreja tomou o lugar de Israel nunca existiu como
tal”, já que, do ponto de vista cristão, o judaísmo tem um status especial, ou seja, “o judaísmo não é uma religião entre outras, mas está numa condição
especial e como tal deve ser reconhecido pela Igreja”.
Por outro lado, também a
questão da “aliança nunca dissolvida” entre Deus e os judeus, afirmação que
remonta a João Paulo II e que hoje faz parte do horizonte óbvio de
interpretação do judaísmo do ponto de vista cristão, requer, segundo Bento XVI,
uma diferenciação segundo a qual a afirmação, em princípio, “deve ser
considerada correta, mas no detalhe ainda precisa de muitos esclarecimentos e
aprofundamentos”. E Bento XVI conclui:
“A fórmula da ‘aliança nunca dissolvida’ certamente foi de grande ajuda
na primeira fase do novo diálogo entre judeus e cristãos, mas a longo prazo não
é suficiente para expressar a grandeza da realidade de maneira suficientemente
apropriada”.
***
A este respeito,
ainda se pode ler, no site da “Canção Nova”, em conexão com a Rádio
Vaticano, que a 10 de dezembro de 2015, iria ser apresentado, no Vaticano, o
documento que trata da primeira declaração de rabinos ortodoxos sobre o diálogo
e a natureza das relações entre cristãos e judeus. É um documento da Comissão
vaticana para as Relações Religiosas com o Judaísmo, intitulado “Porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis.
Reflexões sobre questões teológicas concernentes às relações católico-judaicas”.
Também, para assinalar o 50.º aniversário da “Nostra Aetate”, um grupo de 25
rabinos israelenses, europeus e estadunidenses expressão do judaísmo ortodoxo,
tinha divulgado uma declaração intitulada “Fazer
a vontade do Pai Nosso nos Céus: rumo a uma parceria entre judeus e cristãos”.
Era a primeira declaração de rabinos ortodoxos sobre o diálogo e a natureza das
relações entre cristãos e judeus desde quando o Concílio Vaticano II começou,
uma nova fase nas relações com o judaísmo.
O ponto de partida da declaração, publicada no site do Centro para a compreensão e
colaboração judaico-cristã, é a Shoah, o clímax da
inimizade entre cristãos e judeus. Escreviam os rabinos:
“Olhando para trás, aparece claro que a
incapacidade de ir além do desprezo e se implicar num diálogo construtivo para
o bem da humanidade enfraqueceu a resistência às forças do mal do antissemitismo
que puxaram o mundo para o homicídio e genocídio”.
Porém, os 25 signatários reconhecem que, a partir do Vaticano
II, “o ensinamento oficial da Igreja Católica sobre o judaísmo mudou radical e
irrevogavelmente; e a promulgação da Nostra
Aetate há 50 anos deu vida a processo de reconciliação entre as nossas duas
comunidades”. Em particular, agradeceram “a afirmação da Igreja sobre a
unicidade da posição de Israel na história sagrada” e a respeitante à redenção
final do mundo”. Com efeito, segundo os aludidos rabinos, “os judeus de hoje já
experimentaram o amor sincero e o respeito por parte de muitos cristãos,
através de iniciativas de diálogo, encontros e conferências em todo o mundo”.
Ora, de acordo com os rabinos ortodoxos, isso deve levar os
judeus a questionarem-se sobre quem são os cristãos no plano de Deus para o
mundo. De facto, a declaração exorta e explica:
“Como já fizeram Maimonide e Yehudah Halevi,
reconheçamos que o cristianismo não é nem um incidente nem um erro, mas fruto
da vontade Divina e um dom para as nações. Separando entre eles o judaísmo e o
cristianismo Deus quis criar uma separação entre companheiros com
significativas diferenças teológicas, e não uma separação entre inimigos.”.
Por consequência, surge o convite a um teologicamente novo olhar
sobre a colaboração com os cristãos. Assim, os rabinos propõem:
“Agora que a Igreja Católica reconheceu a
Aliança eterna entre Deus e Israel, nós, judeus, podemos reconhecer o
perdurante valor construtivo do cristianismo como nosso parceiro na redenção do
mundo, sem qualquer medo de que essa atitude possa ser usada para fins
missionários. Como afirmado pela Comissão Bilateral entre o Grão Rabinato de
Israel e a Santa Sé, sob a liderança do Rabino Shear Yashuv Cohen: Não somos
mais inimigos, mas, sem equívocos, companheiros ao exprimir os valores morais
essenciais para a sobrevivência e o bem-estar da humanidade. Nenhum de nós pode
realizar sozinho a missão confiada por Deus neste mundo.”.
Na certeza de que Deus usa muitos mensageiros para
revelar a Sua verdade, os rabinos dizem:
“A colaboração entre
nós não reduz de forma alguma as diferenças que permanecem entre as duas
comunidades e as duas religiões. Nós acreditamos que Deus se serve de muitos
mensageiros para revelar a Sua verdade, enquanto afirmamos os imperativos
éticos fundamentais que todos os povos têm diante de Deus e que o Judaísmo
sempre ensinou através da aliança universal de Noé.”.
E concluem os 25 rabinos:
“Imitando Deus, judeus e cristãos devem ser
modelos de serviço, amor incondicional e santidade. Todos nós fomos criados à
imagem santa de Deus e judeus e cristãos permaneçam fiéis à Aliança
desempenhando juntos um papel ativo na redenção do mundo.”.
***
Segundo o supersessionismo ou teologia da substituição, a
Igreja substituiu Israel no plano de Deus. Os seus teólogos creem que os judeus
já não são o povo escolhido por Deus e que Deus não tem planos futuros específicos
para Israel. Todas as posições do relacionamento entre a Igreja e Israel são
sintetizáveis em duas: a Igreja é a continuação de Israel (teologia da substituição /teologia do pacto); a Igreja é totalmente
distinta de Israel (dispensacionalismo/pré-quilianismo).
Segundo a teologia da substituição, a Igreja substitui
Israel e muitas promessas bíblicas a Israel são cumpridas na Igreja cristã e
não em Israel. Assim, as profecias das Escrituras sobre a bênção e a restauração
de Israel à Terra Prometida são espiritualizadas ou alegorizadas em promessas
das bênçãos divinas para a Igreja. Porém, esta posição levanta problemas, tais
como a existência contínua do povo judeu ao longo dos séculos, especialmente
pela revivificação do moderno estado de Israel. Se Israel tivesse sido mesmo
condenado por Deus e não houvesse nenhum futuro para a nação judaica, como se
explicaria a sobrevivência sobrenatural do povo judeu durante os últimos 2000
anos apesar das muitas tentativas para a sua destruição como nação? Ou como se
explicaria porque e como Israel reapareceu como uma nação no século XX, depois
de não existir por 1900 anos?
Ora, a visão da diferença entre Israel e a Igreja resulta
clara no Novo Testamento. Biblicamente falando, a Igreja é mesmo diferente e
distinta de Israel, nunca devendo ser confundidas ou mencionadas as duas
realidades como se fossem a mesma. Segundo as Escrituras, a Igreja é uma
criação completamente nova que passou a existir no Pentecostes e continuará até
ser levada ao céu na sua plenitude (cf
Ef 1,9-11) ou aquando do arrebatamento (cf 1Ts
4,13-17). A Igreja não tem relacionamento com as maldições e bênçãos para
Israel, de modo que as alianças, promessas e advertências qua tali são válidas apenas para Israel, bem como a sua diáspora e
quase invisibilidade multissecular. E, segundo, o quilianismo, após o arrebatamento
(1Ts 4,13-18), Deus restaurará Israel como o foco principal do Seu plano.
O primeiro evento desse tempo será a Grande Tribulação (vd Ap 6-19). O mundo será julgado por rejeitar Cristo, enquanto
Israel é preparado pelas provações da Grande Tribulação para a Segunda Vinda do
Messias. Assim, quando Cristo retornar no final da Tribulação, Israel estará pronto
para recebê-Lo. O resto de Israel que sobreviver à Tribulação será salvo e o
Senhor estabelecerá o Seu reino na terra com Jerusalém como sua capital. Com
Cristo a reinar como Rei, Israel será a nação principal e representantes de
todas as nações irão a Jerusalém honrar e louvar o Rei, Jesus Cristo. A Igreja
retornará com Cristo e reinará com Ele por um período literal de 1000 anos (vd Ap 20,1-5).
O Antigo Testamento e o Novo sustentam alegadamente uma
compreensão pré-quilianista e dispensacionalista do plano de Deus. Contudo, o
suporte mais forte do pré-quilianismo é lido no ensino do Apocalipse (Ap 20,1-7), ao dizer-se reiteradamente que o reino de Cristo durará
1000 anos. E, após a Tribulação, o Senhor retornará e estabelecerá o Seu reino
com a nação de Israel, ou seja, Cristo reinará sobre toda a Terra e Israel será
o líder das nações. A Igreja reinará com Ele por 1000 anos.
Anote-se que o milénio bíblico é simbólico, representando muito tempo. Com
efeito, o Reino de Jesus é espiritual e representa a expansão do evangelho que
está a acontecer atualmente na linha do que vem acontecendo há mais de 2000
anos.
A Igreja não substitui Israel no plano de Deus. Embora Deus
focalize essencialmente a Sua atenção na Igreja quanto à dispensação da graça,
não se esquece Israel e um dia, segundo o quilianismo, restaurará Israel ao Seu
papel como a Sua nação escolhida (cf Rm
11).
(cf
https://www.gotquestions.org/Portugues/teologia-substituicao.html)
A Nova Bíblia dos
Capuchinhos, na nota a Rm 11,1-2, refere que a futura salvação de Israel resulta
da misericórdia que Deus usou no passado da História do seu povo versus a falta de fé em Cristo por parte
da maioria de Israel no presente. Em primeiro lugar, Deus não deixará de ser
misericordioso para com o seu povo incrédulo e não o rejeitará. E a prova disto
está em dois tipos de intervenção divina salvífica: Paulo era um israelita que
Deus conquistou para Si enquanto ele perseguia a Cristo; muitos judeus
acolheram o Evangelho de Cristo levados apenas pela graça que Deus oferece, e
não pelas suas obras. Em segundo lugar, deve continuar a afirmar-se que a
maioria que não acreditou em Cristo não está fora do plano salvífico de Deus.
***
A teologia da substituição interpreta o Novo Testamento no
sentido de a relação de Deus com os cristãos ser a “substituição” ou a
“realização” da promessa feita a Israel. A expressão bíblica desta relação de
Deus é chamada aliança, o que torna o
ponto de disputa da teologia da substituição a ideia de que a Nova Aliança (com
os cristãos e a sua Igreja)
teria substituído ou completado a Aliança Mosaica (Torá) com Israel. Assim, a questão
central nesta teologia é como e em que medida a ética da Aliança Mosaica foi
posta de lado ou mesmo completamente abolida pela Nova Aliança. Tanto os
teólogos cristãos como os judeus identificaram diferentes tipos de teologia da
substituição na interpretação bíblica. R. Kendall Soulen aponta três
categorias: punitiva, económica e estrutural.
A
vertente punitiva é representada por teólogos como Hipólito de Roma, Orígenes e
Lutero. Sustenta que os judeus que rejeitam Jesus como Messias estão
condenados por Deus, perdendo assim a promessa que lhes fora feita sob a
Aliança Mosaica. Porém, tanto Orígenes como Hipólito esperavam que os judeus
fossem salvos juntamente com os gentios no fim dos tempos – a apocatástase
universal. A vertente económica (na aceção da função
técnico-teológica do termo)
representa o ponto de vista de que o objetivo prático da nação de Israel nos
planos de Deus foi substituído pela Igreja. Os seus corifeus são escritores
como Justino Mártir e Santo Agostinho. Este esperava também que os judeus
fossem salvos com os gentios no fim dos tempos. E a vertente estrutural foi
evidenciada por Soulen para a marginalização de facto do
Antigo Testamento como normativo para o pensamento cristão. Segundo este
modelo lógico, a Escritura hebraica torna-se inconclusiva, em grande parte, “na formação das convicções cristãs sobre
como Deus funciona como Realizador e como Redentor implica a humanidade de
forma universal e duradoura”.
Estas três
visões não são nem mutuamente exclusivas e nem logicamente dependentes, sendo
possível acreditar em todas elas ou em qualquer combinação entre elas. O
teólogo judeu e estudioso da lei rabínica Davis Novak sugere que há três
opções: a Nova Aliança é uma extensão [no sentido de prorrogação] da Aliança Mosaica; a Nova Aliança é uma adição à Aliança
Mosaica; e a Nova Aliança é uma substituição da Aliança Mosaica. Novak observa:
“Na Igreja antiga, a Nova Aliança
apresentada pelo Novo Testamento ou aparece entendida como uma adição
à anterior (a religião da Torá e as tradições judaicas farisaicas,
sumarizadas nos dez mandamentos), ou foi entendida como sendo uma
substituição dela”.
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Teologia_da_substitui%C3%A7%C3%A3o)
***
A
teologia da substituição levada às últimas consequências, pelo menos sem a
ressalva da salvação final, não é enquadrável no movimento ecuménico nem no
diálogo inter-religioso, sem dúvida queridos por Deus. Todavia, o contributo de
Bento XVI pode ser importante para distinguir os aspetos em que o Novo
Testamento é realmente inovador, que o é, e aqueles em que vem na linha de
continuidade. Com efeito, o Mestre não veio abolir a Lei e os Profetas, mas
completar (cf Mt 5,17-20).
Por outro lado, deu o mandamento novo (cf Jo 14,33-35; 15,9-17) e disse mais que os antigos (cf
Mt 5,21-48; At 15,19-20.28-29).
E tudo isto deve ser considerado!
2018.07.07 –
Louro de Carvalho
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