domingo, 8 de julho de 2018

O Papa emérito volta a escrever


Como refere o Vatican News a 6 de julho, na última edição da Communio”, revista teológica internacional, fundada por Joseph Ratzinger, vem publicada uma contribuição de Bento XVI para o diálogo entre cristãos e judeus.
Trata-se do texto sob o título “Misericórdia e vocação sem arrependimentos”, assinado por “Joseph Ratzinger – Bento XVI”, datado 26 de outubro de 2017, que pretende aprofundar um documento publicado, em 2015, pela Comissão da Santa Sé para as Relações Religiosas com o Judaísmo, documento esse que visava dar uma nova direção à relação entre judeus e cristãos há 50 anos da Declaração conciliar “Nostra Aetate”, sobre a Igreja e as Religiões não Cristãs.
O objetivo de Bento XVI é contribuir para uma reflexão sobre o cancelamento pós-conciliar da “teoria da substituição” e sobre o conceito de “aliança nunca dissolvida”. E corporiza uma reflexão crítica dos modelos atuais no diálogo judaico-cristão e na meditação teológica sobre a relação entre judaísmo e cristianismo.
Segundo o que o cardeal Kurt Koch, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, escreveu no prefácio, Bento XVI entregou-lhe o seu ensaio como uma reflexão pessoal, não destinada à publicação. Porém, o purpurado conseguiu convencer o Papa emérito a publicar o texto na mencionada revista, para que pudesse ser, conforme escreve o prefaciador, uma contribuição para “um diálogo teológico mais profundo entre a Igreja Católica e o Judaísmo”, um diálogo que Ratzinger “sempre levou muito a sério”. Em concreto, Bento XVI acredita que as duas expressões “teoria da substituição” e “aliança nunca dissolvida” precisam de ser aprimoradas. Com efeito, na opinião do Pontífice emérito, “as duas teses – que Israel não é substituído pela Igreja e que a aliança nunca foi dissolvida – são, no geral, corretas, embora em muitos aspectos não sejam suficientemente precisas e necessitem de maior reflexão crítica”. Na verdade, segundo o que escreve, “a ideia de que a Igreja tomou o lugar de Israel nunca existiu como tal”, já que, do ponto de vista cristão, o judaísmo tem um status especial, ou seja, o judaísmo não é uma religião entre outras, mas está numa condição especial e como tal deve ser reconhecido pela Igreja”.
Por outro lado, também a questão da “aliança nunca dissolvida” entre Deus e os judeus, afirmação que remonta a João Paulo II e que hoje faz parte do horizonte óbvio de interpretação do judaísmo do ponto de vista cristão, requer, segundo Bento XVI, uma diferenciação segundo a qual a afirmação, em princípio, “deve ser considerada correta, mas no detalhe ainda precisa de muitos esclarecimentos e aprofundamentos”. E Bento XVI conclui:
A fórmula da ‘aliança nunca dissolvida’ certamente foi de grande ajuda na primeira fase do novo diálogo entre judeus e cristãos, mas a longo prazo não é suficiente para expressar a grandeza da realidade de maneira suficientemente apropriada”.
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A este respeito, ainda se pode ler, no site da “Canção Nova”, em conexão com a Rádio Vaticano, que a 10 de dezembro de 2015, iria ser apresentado, no Vaticano, o documento que trata da primeira declaração de rabinos ortodoxos sobre o diálogo e a natureza das relações entre cristãos e judeus. É um documento da Comissão vaticana para as Relações Religiosas com o Judaísmo, intitulado “Porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis. Reflexões sobre questões teológicas concernentes às relações católico-judaicas”. Também, para assinalar o 50.º aniversário da “Nostra Aetate, um grupo de 25 rabinos israelenses, europeus e estadunidenses expressão do judaísmo ortodoxo, tinha divulgado uma declaração intitulada “Fazer a vontade do Pai Nosso nos Céus: rumo a uma parceria entre judeus e cristãos”. Era a primeira declaração de rabinos ortodoxos sobre o diálogo e a natureza das relações entre cristãos e judeus desde quando o Concílio Vaticano II começou, uma nova fase nas relações com o judaísmo.
O ponto de partida da declaração, publicada no site do Centro para a compreensão e colaboração judaico-cristã, é a Shoah, o clímax da inimizade entre cristãos e judeus. Escreviam os rabinos:
Olhando para trás, aparece claro que a incapacidade de ir além do desprezo e se implicar num diálogo construtivo para o bem da humanidade enfraqueceu a resistência às forças do mal do antissemitismo que puxaram o mundo para o homicídio e genocídio”.
Porém, os 25 signatários reconhecem que, a partir do Vaticano II, “o ensinamento oficial da Igreja Católica sobre o judaísmo mudou radical e irrevogavelmente; e a promulgação da Nostra Aetate há 50 anos deu vida a processo de reconciliação entre as nossas duas comunidades”. Em particular, agradeceram “a afirmação da Igreja sobre a unicidade da posição de Israel na história sagrada” e a respeitante à redenção final do mundo”. Com efeito, segundo os aludidos rabinos, “os judeus de hoje já experimentaram o amor sincero e o respeito por parte de muitos cristãos, através de iniciativas de diálogo, encontros e conferências em todo o mundo”.
Ora, de acordo com os rabinos ortodoxos, isso deve levar os judeus a questionarem-se sobre quem são os cristãos no plano de Deus para o mundo. De facto, a declaração exorta e explica:
Como já fizeram Maimonide e Yehudah Halevi, reconheçamos que o cristianismo não é nem um incidente nem um erro, mas fruto da vontade Divina e um dom para as nações. Separando entre eles o judaísmo e o cristianismo Deus quis criar uma separação entre companheiros com significativas diferenças teológicas, e não uma separação entre inimigos.”.
Por consequência, surge o convite a um teologicamente novo olhar sobre a colaboração com os cristãos. Assim, os rabinos propõem:
Agora que a Igreja Católica reconheceu a Aliança eterna entre Deus e Israel, nós, judeus, podemos reconhecer o perdurante valor construtivo do cristianismo como nosso parceiro na redenção do mundo, sem qualquer medo de que essa atitude possa ser usada para fins missionários. Como afirmado pela Comissão Bilateral entre o Grão Rabinato de Israel e a Santa Sé, sob a liderança do Rabino Shear Yashuv Cohen: Não somos mais inimigos, mas, sem equívocos, companheiros ao exprimir os valores morais essenciais para a sobrevivência e o bem-estar da humanidade. Nenhum de nós pode realizar sozinho a missão confiada por Deus neste mundo.”.

Na certeza de que Deus usa muitos mensageiros para revelar a Sua verdade, os rabinos dizem:

A colaboração entre nós não reduz de forma alguma as diferenças que permanecem entre as duas comunidades e as duas religiões. Nós acreditamos que Deus se serve de muitos mensageiros para revelar a Sua verdade, enquanto afirmamos os imperativos éticos fundamentais que todos os povos têm diante de Deus e que o Judaísmo sempre ensinou através da aliança universal de Noé.”.
E concluem os 25 rabinos:
Imitando Deus, judeus e cristãos devem ser modelos de serviço, amor incondicional e santidade. Todos nós fomos criados à imagem santa de Deus e judeus e cristãos permaneçam fiéis à Aliança desempenhando juntos um papel ativo na redenção do mundo.”.
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Segundo o supersessionismo ou teologia da substituição, a Igreja substituiu Israel no plano de Deus. Os seus teólogos creem que os judeus já não são o povo escolhido por Deus e que Deus não tem planos futuros específicos para Israel. Todas as posições do relacionamento entre a Igreja e Israel são sintetizáveis em duas: a Igreja é a continuação de Israel (teologia da substituição /teologia do pacto); a Igreja é totalmente distinta de Israel (dispensacionalismo/pré-quilianismo).
Segundo a teologia da substituição, a Igreja substitui Israel e muitas promessas bíblicas a Israel são cumpridas na Igreja cristã e não em Israel. Assim, as profecias das Escrituras sobre a bênção e a restauração de Israel à Terra Prometida são espiritualizadas ou alegorizadas em promessas das bênçãos divinas para a Igreja. Porém, esta posição levanta problemas, tais como a existência contínua do povo judeu ao longo dos séculos, especialmente pela revivificação do moderno estado de Israel. Se Israel tivesse sido mesmo condenado por Deus e não houvesse nenhum futuro para a nação judaica, como se explicaria a sobrevivência sobrenatural do povo judeu durante os últimos 2000 anos apesar das muitas tentativas para a sua destruição como nação? Ou como se explicaria porque e como Israel reapareceu como uma nação no século XX, depois de não existir por 1900 anos?
Ora, a visão da diferença entre Israel e a Igreja resulta clara no Novo Testamento. Biblicamente falando, a Igreja é mesmo diferente e distinta de Israel, nunca devendo ser confundidas ou mencionadas as duas realidades como se fossem a mesma. Segundo as Escrituras, a Igreja é uma criação completamente nova que passou a existir no Pentecostes e continuará até ser levada ao céu na sua plenitude (cf Ef 1,9-11) ou aquando do arrebatamento (cf 1Ts 4,13-17). A Igreja não tem relacionamento com as maldições e bênçãos para Israel, de modo que as alianças, promessas e advertências qua tali são válidas apenas para Israel, bem como a sua diáspora e quase invisibilidade multissecular. E, segundo, o quilianismo, após o arrebatamento (1Ts 4,13-18), Deus restaurará Israel como o foco principal do Seu plano. O primeiro evento desse tempo será a Grande Tribulação (vd Ap 6-19). O mundo será julgado por rejeitar Cristo, enquanto Israel é preparado pelas provações da Grande Tribulação para a Segunda Vinda do Messias. Assim, quando Cristo retornar no final da Tribulação, Israel estará pronto para recebê-Lo. O resto de Israel que sobreviver à Tribulação será salvo e o Senhor estabelecerá o Seu reino na terra com Jerusalém como sua capital. Com Cristo a reinar como Rei, Israel será a nação principal e representantes de todas as nações irão a Jerusalém honrar e louvar o Rei, Jesus Cristo. A Igreja retornará com Cristo e reinará com Ele por um período literal de 1000 anos (vd Ap 20,1-5).
O Antigo Testamento e o Novo sustentam alegadamente uma compreensão pré-quilianista e dispensacionalista do plano de Deus. Contudo, o suporte mais forte do pré-quilianismo é lido no ensino do Apocalipse (Ap 20,1-7), ao dizer-se reiteradamente que o reino de Cristo durará 1000 anos. E, após a Tribulação, o Senhor retornará e estabelecerá o Seu reino com a nação de Israel, ou seja, Cristo reinará sobre toda a Terra e Israel será o líder das nações. A Igreja reinará com Ele por 1000 anos.
Anote-se que o milénio bíblico é simbólico, representando muito tempo. Com efeito, o Reino de Jesus é espiritual e representa a expansão do evangelho que está a acontecer atualmente na linha do que vem acontecendo há mais de 2000 anos.
A Igreja não substitui Israel no plano de Deus. Embora Deus focalize essencialmente a Sua atenção na Igreja quanto à dispensação da graça, não se esquece Israel e um dia, segundo o quilianismo, restaurará Israel ao Seu papel como a Sua nação escolhida (cf Rm 11).
(cf https://www.gotquestions.org/Portugues/teologia-substituicao.html)
A Nova Bíblia dos Capuchinhos, na nota a Rm 11,1-2, refere que a futura salvação de Israel resulta da misericórdia que Deus usou no passado da História do seu povo versus a falta de fé em Cristo por parte da maioria de Israel no presente. Em primeiro lugar, Deus não deixará de ser misericordioso para com o seu povo incrédulo e não o rejeitará. E a prova disto está em dois tipos de intervenção divina salvífica: Paulo era um israelita que Deus conquistou para Si enquanto ele perseguia a Cristo; muitos judeus acolheram o Evangelho de Cristo levados apenas pela graça que Deus oferece, e não pelas suas obras. Em segundo lugar, deve continuar a afirmar-se que a maioria que não acreditou em Cristo não está fora do plano salvífico de Deus.
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A teologia da substituição interpreta o Novo Testamento no sentido de a relação de Deus com os cristãos ser a “substituição” ou a “realização” da promessa feita a Israel. A expressão bíblica desta relação de Deus é chamada aliança, o que torna o ponto de disputa da teologia da substituição a ideia de que a Nova Aliança (com os cristãos e a sua Igreja) teria substituído ou completado a Aliança Mosaica (Torá) com Israel. Assim, a questão central nesta teologia é como e em que medida a ética da Aliança Mosaica foi posta de lado ou mesmo completamente abolida pela Nova Aliança. Tanto os teólogos cristãos como os judeus identificaram diferentes tipos de teologia da substituição na interpretação bíblica. R. Kendall Soulen aponta três categorias: punitiva, económica e estrutural.
A vertente punitiva é representada por teólogos como Hipólito de Roma, Orígenes e Lutero. Sustenta que os judeus que rejeitam Jesus como Messias estão condenados por Deus, perdendo assim a promessa que lhes fora feita sob a Aliança Mosaica. Porém, tanto Orígenes como Hipólito esperavam que os judeus fossem salvos juntamente com os gentios no fim dos tempos – a apocatástase universal. A vertente económica (na aceção da função técnico-teológica do termo) representa o ponto de vista de que o objetivo prático da nação de Israel nos planos de Deus foi substituído pela Igreja. Os seus corifeus são escritores como Justino Mártir e Santo Agostinho. Este esperava também que os judeus fossem salvos com os gentios no fim dos tempos. E a vertente estrutural foi evidenciada por Soulen para a marginalização de facto do Antigo Testamento como normativo para o pensamento cristão. Segundo este modelo lógico, a Escritura hebraica torna-se inconclusiva, em grande parte, “na formação das convicções cristãs sobre como Deus funciona como Realizador e como Redentor implica a humanidade de forma universal e duradoura”.
Estas três visões não são nem mutuamente exclusivas e nem logicamente dependentes, sendo possível acreditar em todas elas ou em qualquer combinação entre elas. O teólogo judeu e estudioso da lei rabínica Davis Novak sugere que há três opções: a Nova Aliança é uma extensão [no sentido de prorrogação] da Aliança Mosaica; a Nova Aliança é uma adição à Aliança Mosaica; e a Nova Aliança é uma substituição da Aliança Mosaica. Novak observa: 
Na Igreja antiga, a Nova Aliança apresentada pelo Novo Testamento ou aparece entendida como uma adição à anterior (a religião da Torá e as tradições judaicas farisaicas, sumarizadas nos dez mandamentos), ou foi entendida como sendo uma substituição dela.
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Teologia_da_substitui%C3%A7%C3%A3o)
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A teologia da substituição levada às últimas consequências, pelo menos sem a ressalva da salvação final, não é enquadrável no movimento ecuménico nem no diálogo inter-religioso, sem dúvida queridos por Deus. Todavia, o contributo de Bento XVI pode ser importante para distinguir os aspetos em que o Novo Testamento é realmente inovador, que o é, e aqueles em que vem na linha de continuidade. Com efeito, o Mestre não veio abolir a Lei e os Profetas, mas completar (cf Mt 5,17-20). Por outro lado, deu o mandamento novo (cf Jo 14,33-35; 15,9-17) e disse mais que os antigos (cf Mt 5,21-48; At 15,19-20.28-29). E tudo isto deve ser considerado! 
2018.07.07 – Louro de Carvalho

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