No dia 6 de julho, deu entrada na Assembleia da República (AR) o Projeto de
Resolução n.º 1758/XIII/3.ª
a recomendar a Concessão de honras
do Panteão Nacional ao Presidente Mário Soares, da autoria dos deputados do PS
Miranda Calha, Bacelar de Vasconcelos, Sérgio Sousa Pinto, Hortense Martins e
Carlos César, e dos deputados do PSD Fernando Negrão e Duarte Pacheco. É de
frisar que o projeto tem a assinatura dos líderes parlamentares do PS e do PSD.
Como
justificação, aduzem o legado de Soares consubstanciado no “combate pela
duradoura liberdade com justiça na nossa pátria comum”, que somos instados a
vencer, nunca desistindo “de um Portugal livre, de uma Europa livre, de um
Mundo livre”, pois no que era decisivo ele foi sempre vencedor”. Por outro
lado, estribam-se na “rogativa” do Presidente Marcelo ínsita “na sua declaração
a propósito da morte do Presidente Mário Soares”: o apelo “à perpetuação da
memória e do legado de um homem livre, que serviu a liberdade, pelo Povo
Português a que se honrava [de] pertencer” – memória de gratidão e “legado de
cidadania política, de sentido de Estado e de abertura à Europa e ao mundo”.
Os
subscritores do texto enfatizam a primazia que Soares “dedicou ao processo de
transição democrática, à instituição de um regime pluralista”, constituindo-se
como o rosto da liberdade dos portugueses e o “homem que fez História sabendo
que a fazia” e que “sempre recusou demitir-se do futuro”. Tal foi a “tenacidade
que impôs na elaboração de uma Constituição fundada em valores pluralistas”.
Considerando
que “Portugal, o país democrático, ético e humanista que arquitetou e ajudou a
construir”, deve a Mário Soares “uma homenagem, o reconhecimento que acompanhe o
agradecimento dos portugueses”, citam a Lei, que visa:
“Homenagear e perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se
distinguiram por serviços prestados ao País, no exercício de altos cargos
públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na
criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da
civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade”.
Assim, pretendem
que a AR resolva promover a concessão de honras do Panteão Nacional ao Presidente
Mário Soares.
***
Todavia, ficamos sem saber em que termos a AR concederá tais honras. Com
efeito, a 6 de maio de 2016, o Parlamento aprovou, por unanimidade, um decreto que altera o regime que define e regula as honras do
Panteão Nacional e que o Presidente, considerando
esse voto unânime da AR, promulgou para valer como lei.
Uma alteração neste regime prende-se com a deposição no panteão nacional
dos restos mortais dos cidadãos distinguidos, que passa a só poder ocorrer 20
anos após a sua morte, enquanto a afixação de lápide alusiva à sua vida
e à sua obra pode realizar-se cinco anos após a morte.
Além disso, a AR reconhece explicitamente, sem prejuízo da prática do culto
religioso, o estatuto de panteão nacional ao Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa,
ao Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, e à Igreja de Santa Cruz, em
Coimbra (tinha o estatuto de panteão desde 2003).
Inalterado ficou o artigo que estabelece que o Panteão Nacional, criado
pelo Decreto de 26 de setembro de 1836, fica instalado em Lisboa, na Igreja de
Santa Engrácia.
Assim, não sendo crível que a projetada Resolução, pretenda derrogar a lei de
maio de 2016 – o que só poderia ser feito através de lei e não de resolução –,
é de questionar o que propõem os deputados nesta matéria. Afixar em Santa Engrácia
uma lápide alusiva à ação de Mário Soares? Definir o tempo e as condições da
solenidade da trasladação dos restos mortais do ilustre no tempo previsto na
lei? Uma lápide é coisa de pouca monta; e definir hoje as condições de
trasladação pode ser temerário. Terá Soares a mesma auréola política e cívica que
tem hoje junto das gerações que habitarão o país daqui a 20 anos, tendo em
conta que a glória deste mundo é efémera e volúvel? Pretenderão os deputados
condicionar o devir da História da nação? Que dirão a isto os filhos Isabel e
João?
***
Entretanto, o Projeto de Resolução do PS e do PSD , que ainda
não começou a ser discutido – apenas baixou à Comissão de Cultura, Comunicação,
Juventude e Desporto, para ser discutido – merece “dúvidas, para não dizer reservas” da
parte do CDS-PP.
A este respeito, Nuno Magalhães, líder parlamentar dos
centristas, declarou inequivocamente que “a proposta padece de algo que não
merece a nossa concordância de princípio”.
Falando na manhã de hoje, dia 9, no Fórum da TSF, Nuno Magalhães disse
que estas honras deveriam ser, como atualmente, determinadas pela “relevância
dos feitos em nome de Portugal que certa individualidade fez”, e não em função
do “cargo que desempenhou”. Está a criar-se um “privilégio para os chefes de
Estado”.
Para o deputado, o projeto, apesar de estar desenhado para ex-Presidentes falecidos,
visa apenas um “caso concreto”, o de Mário Soares – ou seja, é uma lei “feita à
medida”. E explicitou:
“Não está em causa a pessoa de Mário Soares,
que, indiscutivelmente, teve um percurso marcante e relevante nos últimos 50
anos da história de Portugal (nas coisas boas e nas coisas más); está, sim, em
causa o princípio”.
Ora, se pode ser considerada descabida esta iniciativa parlamentar mercê
das abundantes homenagens à personalidade em referência, também é certo que não
assiste razão a Magalhães. Soares, concordemos com ele ou discordemos dele,
além de ter desempenhado os cargos mais relevantes no país (fundador e líder partidário, Ministro dos Negócios Estrangeiros, Ministro sem
Pasta, Deputado, Presidente da República e Eurodeputado), fica emoldurado pela “relevância
dos feitos em nome de Portugal” por si praticados, como, por exemplo, luta pela
democracia representativa e pluralista, combate aos extremismos, luta pela
liberdade de expressão (veja-se o caso do República e da
Rádio Renascença), levantamento da voz pelos direitos humanos, adesão à CEE, liderança do
Movimento Social Europeu e o Movimento dos Oceanos. Por outro lado, Magalhães cai
em contradição ao alegar que o Projeto de Resolução está a criar um “privilégio
para os chefes de Estado”, o que a exposição de motivos não permite inferir, e
ao vir dizer, logo a seguir, que é lei “feita à medida” (O deputado que organize melhor o seu pensamento!), o que tem de ser, pois, seria
deslocado e incompreensível promover-se a aprovação de lei que estabelecesse
que, por exemplo, todos os Chefes de Estado terão honras de Panteão. Dizer que
não está em causa a pessoa de Soares parece hipocrisia. Não podem estar em causa
princípios. Estariam se o Panteão não servisse para socialistas, democratas, militares,
professores, arquitetos, pedreiros, carpinteiros, médicos, etc. Ademais, os
deputados citam a Lei que define os diversos campos demérito a considerar.
***
Quanto a Mário Soares, é de recordar que os seus funerais tiveram honras de
Chefatura de Estado e terão marcado o alinhamento solene dos demais quando for
o caso. E, um ano após a sua morte, o antigo Presidente da República foi
homenageado em Lisboa, no domingo seguinte ao 7 de janeiro, como um dos “pais” do
regime democrático português, através dum tributo junto ao jazigo onde fora depositado
o seu corpo, no cemitério dos Prazeres.
A cerimónia decorreu pelas 16 horas e, além dos filhos, Isabel e João,
estiveram presentes o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente
da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, e o Primeiro-Ministro,
António Costa.
Após este tributo, foi inaugurada, na galeria de exposições temporárias da
capela do cemitério, a exposição “A
cerimónia do Adeus, o funeral de Estado de Mário Soares visto pelos fotógrafos”.
Como recorda o Diário de Notícias
e é da memória coletiva, Mário Soares faleceu em 7 de janeiro do ano passado no
Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, depois de ter permanecido internado 25
dias, os últimos dos quais em “coma profundo”.
O Governo decretou, por essa ocasião, luto nacional de três dias e um
funeral com honras de Estado, tendo o corpo do ex-Chefe de Estado permanecido
mais de 24 horas na Sala dos Azulejos do Mosteiro dos Jerónimos, por onde passaram
as mais proeminentes figuras da nossa política.
O féretro, depositado em cima de um armão militar puxado por cavalos,
seguiu para o Cemitério dos Prazeres, onde se realizou, este ano, a predita
homenagem.
Soares desempenhou os mais altos cargos no país e a sua vida confunde-se
com a própria história contemporânea portuguesa. Foi fundador e primeiro líder
do Partido Socialista após combater o Estado Novo, sendo considerado por muitos
historiadores como a mais destacada figura do regime democrático português.
Filho de João Lopes Soares, ministro na I República, e de Elisa Nobre Baptista,
Mário Alberto Nobre Lopes Soares nasceu a 7 de dezembro de 1924, em Lisboa,
tendo estado omnipresente na vida pública do país, tanto nas décadas anteriores
à revolução de 25 de Abril de 1974, como nos primeiros 40 anos da nossa democracia.
Preso político e posteriormente exilado em São Tomé e Príncipe e França
durante o Estado Novo, Soares regressou “em ombros” à pátria em 1974 para
desempenhar a pasta dos Negócios Estrangeiros e ser Ministro sem Pasta nos
primeiros governos provisórios, liderar os I, II e IX Governos Constitucionais
(1976-78 e 1983-85), até chegar à Presidência da República, no Palácio de Belém, onde ficaria
por dois mandatos (1986-1996).
Durante uma das estadas na prisão, em 1949, casou com Maria de Jesus
Barroso, então atriz, com a qual teve dois filhos, Isabel, que dirige o Colégio
Moderno, e João, que viria a ser Deputado, Eurodeputado, Presidente da Câmara
Municipal de Lisboa e efémero Ministro da Cultura no XXI Governo Constitucional;
e é atualmente Deputado do PS.
Em 1943, Mário Soares, licenciado em Ciências Históricas-Filosóficas (1951) e em Direito
(1957), tendo vindo
a exercer a advocacia, aderiu, na clandestinidade, ao Partido Comunista
Português, do qual seria formalmente expulso em 1950.
Desde a fundação do PS, na localidade alemã de Bad Munstereifel, a 19 de
abril de 1973, desempenhou o cargo de secretário-geral dos socialistas
portugueses ao longo de 13 anos, até 1986. Após a revolução abrilina, enquanto
Ministro dos Negócios Estrangeiros nos primeiros governos provisórios, esteve
envolvido nos processos de reconhecimento da jovem democracia portuguesa e de
descolonização da Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe e
Moçambique e, no plano político interno, sobretudo em 1975, colocou-se na linha
da frente contra o PREC (Processo Revolucionário em Curso). Já como Primeiro-Ministro dos
I e II governos Constitucionais, teve de gerir o regresso de milhares de
cidadãos das ex-colónias e uma situação de quase rutura financeira do país, que
implicou, pela primeira vez, o recurso do país ao Fundo Monetário Internacional
(FMI). E, a partir
de 1977, foi pela mão de Mário Soares que se iniciou o processo de adesão de
Portugal à então Comunidade Económica Europeia (CEE), concretizado a 12 de junho de
1985, também durante um Governo por si liderado (o IX, do “Bloco
Central” PS/PSD).
Pouco depois, em 1986, Mário Soares sucedeu a Ramalho Eanes em Belém, derrotando
primeiro outros candidatos de esquerda – Maria de Lurdes Pintassilgo e Salgado
Zenha – e, na única 2.ª volta presidencial até agora realizada, o então democrata-cristão
Diogo Freitas do Amaral. Soares tornou-se então o primeiro Chefe de Estado
civil da democracia, após uma campanha que deixou na memória de muitos
portugueses, a par do incidente da Marinha Grande, o mote singular: “Soares é fixe”.
Reeleito em 1991 para um 2.º mandato em Belém – marcado este pela conflitualidade
política com o então Primeiro-Ministro, Cavaco Silva – o fundador do PS foi
ainda foi eurodeputado (1999) e novamente candidato à
Presidência da República (2006), perdendo para Cavaco Silva e
sendo ainda ultrapassado nos votos por Manuel Alegre.
Embora formalmente distante da primeira linha política desde 2006, Mário
Soares manteve, mesmo assim, uma intervenção pública regular, que apenas foi
interrompida por razões de saúde nos primeiros dois meses de 2013. Nestes
últimos anos, o antigo Presidente República destacou-se pela dureza das suas
críticas ao “neoliberalismo”, ao funcionamento da União Europeia, ao Governo
PSD/CDS de Pedro Passos Coelho, mas também à anterior liderança socialista de
António José Seguro. E, depois das eleições europeias de 2014, durante a última
crise interna dos socialistas, Soares colocou-se logo ao início ao lado da
candidatura vitoriosa do Presidente da Câmara de Lisboa e atual Secretário-Geral,
António Costa.
Em finais de 2015, foi a primeira personalidade socialista a visitar o
ex-Primeiro-Ministro José Sócrates, primeiro no Estabelecimento Prisional de
Évora, ocasião em que fez declarações polémicas contra a atuação do juiz de
instrução criminal do TCIC, e depois em casa.
Após a morte da esposa, Maria Barroso, em julho de 2015, começaram a rarear
as aparições públicas de Soares. E, em 2016, já com saúde debilitada, foi alvo
de várias homenagens institucionais, a primeira quando recebeu em abril de Ferro
Rodrigues, Presidente da Assembleia da República, em cerimónia reservada, o
diploma de deputado honorário no âmbito dos 40 anos da posse da Assembleia
Constituinte. A 23 de julho, o Primeiro-Ministro, em cerimónia pública
realizada nos jardins de São Bento, prestou homenagem ao I Governo Constitucional,
de Soares, por ocasião dos 40 anos da posse deste executivo minoritário do PS.
Mário Soares esteve presente pela última vez numa sessão pública a 28 de
setembro, quando o Chefe de Estado homenageou a antiga presidente da Cruz
Vermelha Portuguesa Maria Barroso.
E, finalmente, a 25 de abril de 2018, foi inaugurado, com a presença de
Marcelo, o “Jardim Mário Soares”, na zona sul do Jardim do Campo Grande, em
Lisboa, depois duma intervenção de fundo a expensas da Câmara Municipal, orçada
em 1,2 milhões de euros.
***
Obviamente, Mário Soares é uma figura controversa, mas
devotada à causa das liberdades. E mudou, soube compor o seu caminho,
aprendendo e vociferando pelos valores em que acreditava. Jogou entre a
ideologia e o pragmatismo: com muitas virtudes, com muitos erros, mas com muita
generosidade e dedicação, como é próprio dos melhores portugueses, pelo que não
foi controlado ou amordaçado por ninguém e é deveras uma figura incontornável.
2018.07.09 –
Louro de Carvalho
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