A revista
“Sábado”, no seu número 742, retoma
um assunto badalado no passado mês de abril sobre os vencimentos, subsídios de deslocação,
viagens, senhas de presença e outras regalias dos deputados.
Num conjunto
de páginas – 50-56 – a revista explica o estado da arte sob o título “Regalias,
Abusos e Falta de Controlo”, precedido por um antetítulo “Parlamento, os vencimentos
e as muitas falhas no sistema” e precedido de um longo pós-título “O cálculo
das remunerações é opaco, o controlo das faltas e a fiscalização quase nula.
Mas ninguém parece querer mexer nos salários nem nas regras”.
O facto
da partida de Suas Excelências para férias sem mexerem no seu estatuto
remuneratório não me surpreende. Não esperava que houvesse qualquer tentativa
de amenização do volume do bolo financeiro a despender com os nossos
representantes, tal como não sucedeu com a legislação que protege as
agremiações por que são propostos e eleitos os deputados à Assembleia da
República (AR),
ao Parlamento Europeu (PE)
e às autarquias locais (AL).
Recordo, a propósito, que a nova lei abreviadamente dita sobre o financiamento dos
partidos, que Marcelo vetou, além de outras consequências, deu azo a que o
Tribunal Constitucional (TC)
deixasse prescrever o processo das multas a aplicar, pelas contas de 2009, aos partidos
e aos seus responsáveis financeiros. Além disso, a Comissão de Fiscalização das
Contas dos partidos foi premiada com mais competências, a diminuir ao TC nesta
área (ficando
apenas com a tarefa judicativa, quando necessária), mas não lhe são atribuídos mais recursos humanos.
Se a ida
de férias sem mexida no estatuto remuneratório deputacional não me surpreendeu,
estranhei o expediente encontrado pelo Parlamento para justificar a sua manutenção:
um parecer jurídico – um parecer jurídico que, à boa maneira dos supertécnicos de
Lisboa, não diz nada mais do que aquilo que já sabíamos.
O auditor
jurídico da Assembleia da República diz que, para efeitos de pagamento de subsídio
(de
deslocação de casa ao Parlamento e vice-versa – e deduzo que também para a diferença
do montante a perceber em senhas de presença), não tem qualquer relevância o facto de o deputado
ter casa própria em Lisboa”. Assim, aquilo que conta é a “residência efetiva”
do parlamentar, isto é, “o local onde o deputado tem a sua existência
organizada e que, como tal, lhe serve de base de vida”, ficando tal juízo ao critério
do eleito e cabendo-lhe, por isso, indicar o respetivo endereço, sem que haja
qualquer fiscalização pelos serviços do Parlamento.
O objetivo,
segundo a “Sábado”, é compensar as
despesas com que o parlamentar tem de arcar por estar em Lisboa e promover o “trabalho
de círculo”, isto é, garantir que os deputados vão todas as semanas ao terreno
no local por onde foram propostos à eleição para trabalho político. Também,
como é óbvio, não há aqui fiscalização sobre a efetivação dessas deslocações.
Além disso,
os deputados dos Açores e da Madeira, bem como os dos círculos da emigração,
têm direito ao valor da deslocação em táxi entre o Aeroporto e a morada que
indicaram (e vice-versa),
sem que sejam obrigados a comprovar a efetuação de tal despesa.
Segundo o
aludido parecer, os deputados da Madeira e dos Açores podem usufruir do
subsídio parlamentar para as viagens entre a respetiva Região Autónoma e do desconto
de insularidade.
De facto,
penso eu, eles são deputados e são insulares. Boa!
Também o
regime de faltas dos deputados suscita perplexidades. O controlo da presença do
deputado é feito através do login no computador
que o respetivo deputado tem à sua frente no hemiciclo. Assim, no início de
cada sessão plenária, é necessária a inserção duma senha supostamente pessoal e
intransmissível. Porém, o sistema não é infalível, tanto assim que tem sucedido
algumas vezes que o número de presenças efetivas não condiz com o assinalado eletronicamente,
sendo, como assegura o antigo deputado José Magalhães, quase ilimitada a
possibilidade de faltar a sessões (bastando que outro
deputado insira os dados daquele a quem foi distribuído o computador).
Sobre o
facto de haver eventualmente discrepância entre os dados sobre presenças da
parte da informática e os reais, o secretário-geral da Assembleia da República
diz que a pretensa falha não resulta de defeito do sistema informático, mas do desrespeito
da regra da intransmissibilidade de credenciais pessoais.
Quando o
sistema não considera a sua presença, os deputados que se consideram presentes solicitam
à Mesa da AR que lhes tire a falta. E, para evitar abusos, os presidentes de
cada grupo parlamentar habitualmente não tratam das faltas dos seus deputados,
embora haja exceções.
Cada deputado
pode faltar injustificadamente quatro vezes por sessão legislativa sob pena de perda
do mandato. Por outro lado, as justificações previstas são: a doença, o luto, a
maternidade e paternidade ou o trabalho político – não valendo como
justificação o trabalho profissional daqueles que não estão em regime de
exclusividade.
O deputado
não tem de especificar que tipo de trabalho político faz para justificar a
falta, desde que tenha o aval do seu grupo parlamentar.
Aquilo que
raramente é referido e que a “Sábado” anota expressamente é o facto de as
viagens feitas para eventos para os quais os deputados são convidados a título
pessoal poderem dar direito a abonos se o Presidente da Assembleia da República
(PAR) em despacho fundamentado
entender que se justificam, bem como está previsto o pagamento de despesas de
viagem a um acompanhante do deputado nas deslocações oficiais.
***
Através do
predito parecer, ficamos a saber ou a ressaber que não tem havido qualquer quebra
da legalidade da parte dos insignes deputados. Aliás o parecer, pelo menos aparentemente
talhado por encomenda e à medida, parece a homologação das asserções de Carlos César,
presidente do PS e da sua bancada parlamentar, e de Ferro Rodrigues, Presidente
da Assembleia da República. Não nos traz, pois, qualquer novidade. Obviamente os
cidadãos não iriam acusar os deputados de ilegalidade.
Todavia,
o cidadão comum e provavelmente os peritos em ciências jurídicas e em ciência
política têm o direto e o dever de questionar o tipo de legalidade que ditam as
leis que enformam o estatuto dos deputados, nomeadamente no atinente a matéria
de remunerações e subsídios, feitas por aqueles e aquelas a quem o benefício
interessa.
Assim,
porque está em causa o quadro ético não assumido pela Casa da Democracia,
deveria a legislação ser alterada para melhor. Eu explico.
É interessante
a adução do local de residência ser, não aquele onde o cidadão tem casa própria,
mas onde tem a vida organizada, ou seja, onde tem aquilo que é a base ou razão
da sua existência. Será que o deputado não consegue organizar minimamente a sua
vida ou encontrar sentido para a sua existência numa casa própria em Lisboa, quando
outros trabalhadores o conseguem em sítio onde o trabalho os obriga a viver, se
lhes for impossível deslocarem diariamente e obviamente a custas suas? Deem-me poeira
para os olhos, que eu gosto!
Os serviços
da AR não fiscalizam a efetivação das despesas dos deputados, que não são
obrigados a apresentar comprovativos nem de despesas nem de faltas justificáveis.
Quem há de fiscalizar: a polícia, o Tribunal de Contas? Podem estar ao abrigo
da Lei e/ou do Regimento da AR. Mas o princípio da igualdade e da proporcionalidade
está ferido. As regras da contabilidade pública, que implicam a apresentação de
comprovativos de despesas e de justificação de faltas, têm de ser cumpridas por
todos, com exceção dos representantes do povo, porquê? Foram imunizados do
pecado original de abuso, de corrupção e de falta ao dever?
Depois,
há uma regra que proíbe a dupla subsidiação para o mesmo ato, aplicável à administração
pública. Assim, os funcionários que percebem ajudas de custo por ação fora do
local de trabalho veem descontado o subsídio de refeição. A pari, os deputados, já que ninguém está acima da lei e da ética,
nem ao lado delas nem fora delas, não deveriam acumular benefício pela insularidade
e pela parlamentaridade.
É ridícula
a justificação por que não é plausível a exigência de apresentação de
comprovativo de despesas de deslocação, assente na possibilidade de três ou
quatro deputados utilizarem o mesmo carro. No regime de deslocações na administração
pública, a questão é resolvida com facilidade: só recebe o subsídio de deslocação
o utente do veículo que efetuou o transporte.Mais: para quê dar senha de presença a quem é
pago para trabalhar na arte? Como é que o engenho do
legislador só ficou obnubilado quando o destinatário da lei são os deputados?
Não acredito,
como José Magalhães, que o PAR, para justificar a relevância da deslocação a
eventos para que o deputado seja convidado a título pessoal, se deixe levar
pela simpatia pessoal e venha a criar uma açoteia de amigos ou simpatizantes merecedores
dessa mordomia.
***
Sendo assim,
contam-se pelos dedos de uma das mãos os deputados/as que, depois de abril, alteraram
nos serviços da AR a indicação da sua morada. A “Sábado” menciona Elza Pais, do PS, e Sandra Cunha e Heitor de
Sousa, do BE. Tudo o mais ficou na mesma por ação alegadamente da lei, da ética
e agora dum parecer jurídico dos serviços da AR.
Entretanto,
sirva de conforto o que a “Sábado” conseguiu
apurar. O PSD admite avançar com propostas para remexer o sistema de remunerações,
alegando apenas que ainda não houve oportunidade (Quando
haverá?); o BE não se
opõe a que se mexa no sistema como um todo, mas tem propostas para impedir
alguns abusos; o PS e o CDS não falaram no assunto; e o PCP acha que não há
motivo para rever as regras, pois, a propósito disto, não surgiram dúvidas da
parte dos seus deputados, o que demonstra que o problema não reside tanto nas
regras, mas no modo como alguns as cumprem ou as transgridem.
Que sairá
daqui? Para morigerar o caso, precisávamos do Sócrates! Acreditaríamos nele?
2018.07.20 – Louro
de Carvalho
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