sexta-feira, 20 de julho de 2018

Sem surpresa, deputados foram de férias sem revisão de suas remunerações


A revista “Sábado”, no seu número 742, retoma um assunto badalado no passado mês de abril sobre os vencimentos, subsídios de deslocação, viagens, senhas de presença e outras regalias dos deputados.
Num conjunto de páginas – 50-56 – a revista explica o estado da arte sob o título “Regalias, Abusos e Falta de Controlo”, precedido por um antetítulo “Parlamento, os vencimentos e as muitas falhas no sistema” e precedido de um longo pós-título “O cálculo das remunerações é opaco, o controlo das faltas e a fiscalização quase nula. Mas ninguém parece querer mexer nos salários nem nas regras”.
O facto da partida de Suas Excelências para férias sem mexerem no seu estatuto remuneratório não me surpreende. Não esperava que houvesse qualquer tentativa de amenização do volume do bolo financeiro a despender com os nossos representantes, tal como não sucedeu com a legislação que protege as agremiações por que são propostos e eleitos os deputados à Assembleia da República (AR), ao Parlamento Europeu (PE) e às autarquias locais (AL). Recordo, a propósito, que a nova lei abreviadamente dita sobre o financiamento dos partidos, que Marcelo vetou, além de outras consequências, deu azo a que o Tribunal Constitucional (TC) deixasse prescrever o processo das multas a aplicar, pelas contas de 2009, aos partidos e aos seus responsáveis financeiros. Além disso, a Comissão de Fiscalização das Contas dos partidos foi premiada com mais competências, a diminuir ao TC nesta área (ficando apenas com a tarefa judicativa, quando necessária), mas não lhe são atribuídos mais recursos humanos.
Se a ida de férias sem mexida no estatuto remuneratório deputacional não me surpreendeu, estranhei o expediente encontrado pelo Parlamento para justificar a sua manutenção: um parecer jurídico – um parecer jurídico que, à boa maneira dos supertécnicos de Lisboa, não diz nada mais do que aquilo que já sabíamos.
O auditor jurídico da Assembleia da República diz que, para efeitos de pagamento de subsídio (de deslocação de casa ao Parlamento e vice-versa – e deduzo que também para a diferença do montante a perceber em senhas de presença), não tem qualquer relevância o facto de o deputado ter casa própria em Lisboa”. Assim, aquilo que conta é a “residência efetiva” do parlamentar, isto é, “o local onde o deputado tem a sua existência organizada e que, como tal, lhe serve de base de vida”, ficando tal juízo ao critério do eleito e cabendo-lhe, por isso, indicar o respetivo endereço, sem que haja qualquer fiscalização pelos serviços do Parlamento.
O objetivo, segundo a “Sábado”, é compensar as despesas com que o parlamentar tem de arcar por estar em Lisboa e promover o “trabalho de círculo”, isto é, garantir que os deputados vão todas as semanas ao terreno no local por onde foram propostos à eleição para trabalho político. Também, como é óbvio, não há aqui fiscalização sobre a efetivação dessas deslocações.
Além disso, os deputados dos Açores e da Madeira, bem como os dos círculos da emigração, têm direito ao valor da deslocação em táxi entre o Aeroporto e a morada que indicaram (e vice-versa), sem que sejam obrigados a comprovar a efetuação de tal despesa.
Segundo o aludido parecer, os deputados da Madeira e dos Açores podem usufruir do subsídio parlamentar para as viagens entre a respetiva Região Autónoma e do desconto de insularidade.
De facto, penso eu, eles são deputados e são insulares. Boa!
Também o regime de faltas dos deputados suscita perplexidades. O controlo da presença do deputado é feito através do login no computador que o respetivo deputado tem à sua frente no hemiciclo. Assim, no início de cada sessão plenária, é necessária a inserção duma senha supostamente pessoal e intransmissível. Porém, o sistema não é infalível, tanto assim que tem sucedido algumas vezes que o número de presenças efetivas não condiz com o assinalado eletronicamente, sendo, como assegura o antigo deputado José Magalhães, quase ilimitada a possibilidade de faltar a sessões (bastando que outro deputado insira os dados daquele a quem foi distribuído o computador).
Sobre o facto de haver eventualmente discrepância entre os dados sobre presenças da parte da informática e os reais, o secretário-geral da Assembleia da República diz que a pretensa falha não resulta de defeito do sistema informático, mas do desrespeito da regra da intransmissibilidade de credenciais pessoais.
Quando o sistema não considera a sua presença, os deputados que se consideram presentes solicitam à Mesa da AR que lhes tire a falta. E, para evitar abusos, os presidentes de cada grupo parlamentar habitualmente não tratam das faltas dos seus deputados, embora haja exceções.
Cada deputado pode faltar injustificadamente quatro vezes por sessão legislativa sob pena de perda do mandato. Por outro lado, as justificações previstas são: a doença, o luto, a maternidade e paternidade ou o trabalho político – não valendo como justificação o trabalho profissional daqueles que não estão em regime de exclusividade.
O deputado não tem de especificar que tipo de trabalho político faz para justificar a falta, desde que tenha o aval do seu grupo parlamentar.
Aquilo que raramente é referido e que a “Sábado” anota expressamente é o facto de as viagens feitas para eventos para os quais os deputados são convidados a título pessoal poderem dar direito a abonos se o Presidente da Assembleia da República (PAR) em despacho fundamentado entender que se justificam, bem como está previsto o pagamento de despesas de viagem a um acompanhante do deputado nas deslocações oficiais.
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Através do predito parecer, ficamos a saber ou a ressaber que não tem havido qualquer quebra da legalidade da parte dos insignes deputados. Aliás o parecer, pelo menos aparentemente talhado por encomenda e à medida, parece a homologação das asserções de Carlos César, presidente do PS e da sua bancada parlamentar, e de Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da República. Não nos traz, pois, qualquer novidade. Obviamente os cidadãos não iriam acusar os deputados de ilegalidade.
Todavia, o cidadão comum e provavelmente os peritos em ciências jurídicas e em ciência política têm o direto e o dever de questionar o tipo de legalidade que ditam as leis que enformam o estatuto dos deputados, nomeadamente no atinente a matéria de remunerações e subsídios, feitas por aqueles e aquelas a quem o benefício interessa.
Assim, porque está em causa o quadro ético não assumido pela Casa da Democracia, deveria a legislação ser alterada para melhor. Eu explico.  
É interessante a adução do local de residência ser, não aquele onde o cidadão tem casa própria, mas onde tem a vida organizada, ou seja, onde tem aquilo que é a base ou razão da sua existência. Será que o deputado não consegue organizar minimamente a sua vida ou encontrar sentido para a sua existência numa casa própria em Lisboa, quando outros trabalhadores o conseguem em sítio onde o trabalho os obriga a viver, se lhes for impossível deslocarem diariamente e obviamente a custas suas? Deem-me poeira para os olhos, que eu gosto!
Os serviços da AR não fiscalizam a efetivação das despesas dos deputados, que não são obrigados a apresentar comprovativos nem de despesas nem de faltas justificáveis. Quem há de fiscalizar: a polícia, o Tribunal de Contas? Podem estar ao abrigo da Lei e/ou do Regimento da AR. Mas o princípio da igualdade e da proporcionalidade está ferido. As regras da contabilidade pública, que implicam a apresentação de comprovativos de despesas e de justificação de faltas, têm de ser cumpridas por todos, com exceção dos representantes do povo, porquê? Foram imunizados do pecado original de abuso, de corrupção e de falta ao dever?
Depois, há uma regra que proíbe a dupla subsidiação para o mesmo ato, aplicável à administração pública. Assim, os funcionários que percebem ajudas de custo por ação fora do local de trabalho veem descontado o subsídio de refeição. A pari, os deputados, já que ninguém está acima da lei e da ética, nem ao lado delas nem fora delas, não deveriam acumular benefício pela insularidade e pela parlamentaridade.
É ridícula a justificação por que não é plausível a exigência de apresentação de comprovativo de despesas de deslocação, assente na possibilidade de três ou quatro deputados utilizarem o mesmo carro. No regime de deslocações na administração pública, a questão é resolvida com facilidade: só recebe o subsídio de deslocação o utente do veículo que efetuou o transporte.Mais: para quê dar senha de presença a quem é pago para trabalhar na arte? Como é que o engenho do legislador só ficou obnubilado quando o destinatário da lei são os deputados?
Não acredito, como José Magalhães, que o PAR, para justificar a relevância da deslocação a eventos para que o deputado seja convidado a título pessoal, se deixe levar pela simpatia pessoal e venha a criar uma açoteia de amigos ou simpatizantes merecedores dessa mordomia.
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Sendo assim, contam-se pelos dedos de uma das mãos os deputados/as que, depois de abril, alteraram nos serviços da AR a indicação da sua morada. A “Sábado” menciona Elza Pais, do PS, e Sandra Cunha e Heitor de Sousa, do BE. Tudo o mais ficou na mesma por ação alegadamente da lei, da ética e agora dum parecer jurídico dos serviços da AR.
Entretanto, sirva de conforto o que a “Sábado” conseguiu apurar. O PSD admite avançar com propostas para remexer o sistema de remunerações, alegando apenas que ainda não houve oportunidade (Quando haverá?); o BE não se opõe a que se mexa no sistema como um todo, mas tem propostas para impedir alguns abusos; o PS e o CDS não falaram no assunto; e o PCP acha que não há motivo para rever as regras, pois, a propósito disto, não surgiram dúvidas da parte dos seus deputados, o que demonstra que o problema não reside tanto nas regras, mas no modo como alguns as cumprem ou as transgridem.
Que sairá daqui? Para morigerar o caso, precisávamos do Sócrates! Acreditaríamos nele?
2018.07.20 – Louro de Carvalho         

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