domingo, 1 de julho de 2018

Sede indisfarçável de protagonismo político


No passado dia 28 de junho, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa fez publicar na página web da Presidência a seguinte “Nota da Presidência da República”:
No dia 4 de julho de 2017, foi divulgada uma Nota Informativa da Procuradoria-Geral da República, que expressamente referia:
‘Face a notícias relativas ao desaparecimento de material de guerra ocorrido em Tancos foram, desde logo, nos termos legais, iniciadas investigações.
Na sequência de análise aprofundada dos elementos recolhidos, o Ministério Público apurou que tais factos se integram numa realidade mais vasta.
Estão em causa, entre outras, suspeitas da prática dos crimes de associação criminosa, tráfico de armas internacional e terrorismo internacional.
Atenta a natureza e gravidade destes crimes e os diferentes bens jurídicos protegidos pelas respetivas normas incriminadoras, o Ministério Público decidiu que a investigação relativa aos factos cometidos em Tancos deveria prosseguir no âmbito de um inquérito com objeto mais vasto a ser investigado no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP)’.
Volvido um ano sobre a data da ocorrência (28 de junho de 2017), que motivou a aludida nota, o Presidente da República reafirma, uma vez mais, a sua posição de querer ver apurados integralmente os factos e os seus eventuais efeitos jurídicos e criminais, para os quais é essencial o papel do Ministério Público.
Palácio de Belém, 28 de junho de 2018.”.
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A um de março deste ano, na tomada de posse do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o Presidente defendeu uma investigação “mais longe e a fundo” aos casos que envolveram as Forças Armadas nos últimos tempos, como o de Tancos. E, no passado dia 2 de abril, referiu ter lido o relatório do Governo sobre Tancos, relevando a investigação judicial e reafirmando que aguardava a clarificação dos factos e a identificação dos responsáveis.
O predito relatório do Governo apresenta um resumo histórico dos paióis de Tancos desde a origem e as “constantes dificuldades e insuficiências”, descrevendo os sistemas de proteção e de vigilância. E, para o efeito, elaborou uma cronologia dos acontecimentos, estabelecendo o enquadramento jurídico e as competências legais, as ações desenvolvidas pelo Ministério da Defesa Nacional (MDN) e pelos três ramos militares, em especial o Exército.
No relatório, intitulado “Tancos 2017: Factos e documentos”, o MDN admitia como “evidentemente legítima” a pergunta de “quem, quando, porquê e como perpetrou o furto de material de guerra nos Paióis Nacionais de Tancos”.
O Exército divulgou em junho do ano passado o desaparecimento de material militar dos paióis de Tancos – entretanto desativados – que foi recuperado pela Polícia Judiciária Militar em outubro, a 21 quilómetros do local.
Estamos, como é fácil de entender, perante documentos de natureza técnico-política, no caso do relatório do Governo, e de natureza técnica a que podem subjazer aspetos disciplinares que terão sido, entretanto, resolvidos no âmbito militar, no caso dos relatórios do Exército. Falta, assim, conhecer o que se passa no âmbito da investigação que decorre na área do Ministério Público (MP), o qual, se entender que há matéria para acusação, deve fazer a respetiva promoção para efeitos de ministração da Justiça. Agora, a aludida nota da Presidência volta à carga sublinhando a necessidade da investigação pormenorizada de tudo e relevando o papel do MP.
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Dizem os observadores que Marcelo falou como Presidente da República e como Comandante Supremo das Forças Armadas, não sendo de subestimar o que alguns entendem como uma forma de pressão sobre a estrutura judiciária.
Ora como Presidente da República, tem o direito e o dever de acompanhar, embora respeitando-os, o funcionamento dos demais órgãos de soberania, até porque é constitucionalmente o garante do regular funcionamento das instituições democráticas. Assim, não lhe incumbindo a iniciativa legislativa nem do referendo, cabe-lhe dirigir mensagens à Assembleia da República, promulgar ou vetar leis (vêm do Parlamento) e decretos-lei e decretos regulamentares (provêm do Governo), submeter diplomas legais ao Tribunal Constitucional para a apreciação abstrata da constitucionalidade (apreciação preventiva ou sucessiva), ser informado periodicamente pelo Primeiro-Ministro sobre a definição e o desenvolvimento da política interna e externa do país e nomear, sob proposta do Governo determinadas personalidades, entre as quais o Procurador (a)-Geral da República, bem como designar representantes seus para determinados órgãos colegiais.
Se calhar, as suas tomadas de posição sobre o papel do MP não significam uma forma de pressão ilegítima (só esta é que será de criticar), embora, a meu ver, não devesse usar a página da Presidência nem os meios de comunicação social para o efeito, já que tem outras vias de contacto com a instituição. Aliás, sabem a hipocrisia e distração as recorrentes alegações de deputados ou de membros do Governo de que os casos de justiça são unicamente da justiça, até porque, em certos momentos, se pronunciam, ainda que reservem para o MP o preponderante papel na investigação e na eventual sujeição dos casos a julgamento. Tanto assim é que a Assembleia da República – e bem – quando entende dever fazê-lo, cria as ditas comissões de inquérito parlamentar (CPI), como agora o líder parlamentar do PS sustentou que o Governo deveria tomar posição em relação ao caso da cidadã colombiana que foi maltratada e vilipendiada por um segurança dos STCP.
Com efeito, os tribunais são independentes a ponto de os outros órgãos de soberania não interferirem nas nomeações, transferências e progressões/promoções dos juízes, nas avaliações de desempenho e, muito menos na ação judicial – a não ser quanto à prerrogativa que assiste ao Presidente da República na concessão de indultos, em regra de entre os propostos pelo(a) Ministro(a) da Justiça. Porém, o MP não goza de independência constitucional, mas de autonomia. Tanto assim é que, embora não possa interferir na ação em concreto, o Governo ou outra entidade competente para o efeito podem urgir junto do MP a instauração de inquérito face a borbulhas de suspeição de ilícito criminal na ordem pública. Ademais, a figura de topo a quem incumbe a coordenação e acompanhamento do MP provém de nomeação presidencial sob proposta governamental.
Quanto à sua condição de Comandante Supremo das Forças Amadas, Marcelo, mais do que qualquer um dos seus antecessores, usa e abusa publicamente desta prerrogativa, no que é seguido por outros titulares do poder e pelos órgãos de comunicação social. Do meu ponto de vista, também nesta área devia ser mais contido, justamente para poder ser proficientemente escutado em tempo de crise e porque este seu cargo é-o por inerência e o papel é simbólico e de topo, não tendo qualquer relevância estratégica e/ou operacional, nem tendo papel exclusivo, muito menos de iniciativa, na designação das chefias militares. É certo que preside ao Conselho Superior de Defesa Nacional, mas tal presidência resulta muito mais da deferência institucional do que da capacidade de liderança militar.
Cabe-lhe, com audição do Governo e mediante autorização da Assembleia da República, declarar o estado de sítio ou o estado de emergência nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública, devendo respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional. Mas, este é mais um ato político do que propriamente militar, embora a sua condução seja confiada aos militares.
O mesmo se deve dizer em relação à declaração e guerra e de estabelecimento da paz. Pode fazê-lo apenas sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia da República; e, se esta não estiver em funções, mediante autorização da sua comissão permanente.  
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O Presidente da República, entretanto, voltou à carga no dia 29 de junho, ao ser questionado pelos jornalistas, em Alverca, no final da cerimónia comemorativa dos 100 anos das OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal, relevando a investigação judicial por conta do MP sobre o caso de Tancos em curso há um ano e sublinhando que “a memória não prescreve”. Disse ele:
O Presidente não se envolve no tempo da justiça, limita-se a dizer em voz alta o que os portugueses pensam em voz baixa”.
Não lhe cabe obviamente ser a válvula de escape das indisposições políticas dos portugueses, mas o papel de moderador e de traço de união na vida pública. Outro modo de encarar o papel presidencial saberá a populismo ou a tentativa de presidencialização do sistema.
É verdade que os portugueses, um ano depois do furto de armas em Tancos, continuam interessados em saber o que se passou, o mesmo se passando com o Presidente. Mas isto não implica uma intervenção expressa do Chefe de Estado. Porque não o faz sobre Sócrates, Pinho, Miguel Macedo, Vara e tantos outros casos? E vamos ver se como Comandante Supremo das Forças Armadas conseguirá travar a promoção ao generalato dos dois coronéis suspeitos na responsabilidade pela falta de segurança dos paiolins de Tancos ou se travará a promoção ao almirantado dos capitães-de-mar-e-guerra que não reúnem as condições por insuficiência de horas de navegação e/ou de efetivo comando superior de unidades da Armada.
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Entretanto, em contraponto, pelo menos aparente, com o protagonismo marcelino, veio à luz, no dia 29, um rol de declarações ao DN por parte da Procuradora-Geral da República Joana Marques Vidal a clamar que “não é fácil a minha herança perder-se”. Sem abordar a possibilidade ou não de assumir um segundo mandato, mostra-se confiante de que algo mudou com o seu mandato e garante que o MP “não voltará ao que era”. Por outro lado, não lê a intervenção de Marcelo sobre Tancos como qualquer forma de pressão.
Disse a figura de topo no MP num jantar-debate organizado pelo grupo Portugal XXI – Ideias para Portugal no século XXI (“think tank fundado por 21 cidadãos com diferentes experiências profissionais e sensibilidades políticas, mas com um interesse comum, a causa pública”) no hotel Sheraton:
As instituições dependem muito das pessoas que têm à frente, mas também têm vida por si mesmas. Há um Ministério Púbico que nunca voltará atrás, há hoje uma cultura e uma maneira de estar que prosseguirá caminho. Há questões práticas que podem ir ou não no sentido que eu lhes imprimo hoje, mas isso é da vida das instituições. E quero acreditar que não é fácil perder a minha herança.”.
Garantindo que os processos não são marca de água dos procuradores, admitiu: A marca de água do meu mandato é ter posto a máquina a funcionar no âmbito do que é a justiça”.
Sobre a putativa pressão do Presidente Marcelo através da nota sobre a urgência em resolver o caso do furto de armas em Tancos, no dia em que faz um ano sobre o acontecimento, discorreu:
O Presidente da República exprimiu o verdadeiro sentido do que é a separação de poderes. A investigação compete ao Ministério Público e estamos a aguardar o resultado.”.
Quanto à eventualidade da renovação de mandato, assunto que tem sido amplamente discutido – seria algo inédito ver um PGR cumprir um segundo mandato –, respondeu evasivamente:
O mandato e a competência para nomear a PGR é [são] do Presidente da República, por proposta do Governo. Não posso pronunciar-me, portanto, sobre isso, pois qualquer resposta seria sujeita a interpretações. Eu tenho de respeitar o quadro institucional. Seria uma interferência abusiva da minha parte fazê-lo e, mesmo que não fosse uma ingerência, o respeito institucional impede-me de me pronunciar.”.
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Considero imprópria a afirmação da herança da PGR no MP. Não se trata disso, já que Joana Marques Vidal não morreu, nem é bom que morra, e porque, sem lhe negar o mérito funcional no desempenho, não lhe reconheço especial carisma. Todo o trabalho do MP é trabalho de cooperação e de corporação, fortemente secundado e coadjuvado pelas polícias de investigação criminal. Ora, além das pessoas e das instituições, há um fator chamado “tempo”, condicionado pelas circunstâncias políticas, económicas e sociais, que é o grande agente de mudança.
A este respeito, posso dizer pessoalmente que, pela minha saída de alguns ambientes, os grupos e as comunidades ganharam outro dinamismo, outras formas de ver os problemas, de agir e de avaliar. Se do ponto de vista demográfico a erosão do tempo os prejudicou, favoreceu-os do ponto de vista social, económico, cultural e organizacional. E não posso dizer que seja “herança”, mas fruto da mudança e do tempo. Nada de relevante lhes deixamos como nada de relevante lhes retiramos. É a vida!
Quanto ao mandato, Marques Vidal evoluiu, pois, dantes chegou a referir que não estava interessada num segundo mandato esvaziando assim a polémica levantada pela Ministra da Justiça. Porque terá mudado discretamente?
E, como referi, Marcelo interfere no MP, embora com legitimidade tal como o Governo ao debruçar-se sobre o caso da colombiana e o Parlamento com as CPI. Em Marcelo, só discuto os meios e a recorrência das declarações. Até o semanário “O Diabo”, do passado dia 26, lhe pedia que parasse e descansasse para bem da sua saúde e do funcionamento das instituições.  
Em relação ao desempenho de Marques Vidal à testa do MP, há de tudo. Mexeu com os grandes? Sim. Mas os antecessores também. Por exemplo: Quem suscitou o incidente judiciário da Casa Pia e levou os suspeitos a julgamento? Idem para o BPN. Quem investigou o caso Freeport? Quem iniciou a investigação que levou à Operação Marquês? Quem desencadeou o processo Face Oculta? Dantes houve detenções solenes à vista de toda a gente; agora também. Sócrates saiu ileso do Freeport e da Face Oculta, mas não foi o MP que destruiu as gravações com as escutas, mas o então Presidente do STJ. Nem foi o PGR que impediu os procuradores de fazer dezenas de perguntas ao então Primeiro-Ministro. Agora, Sócrates foi detido, mas já não era o Primeiro-Ministro. Nem podemos esquecer que a pureza da ação judiciária ia rebentando com as relações diplomáticas com Angola sem motivo consolidado como se está a verificar.
A PGR pode assumir os louros de muitas ações, mas não pode garantir em absoluto um melhor desempenho que os antecessores, ao menos sem ter em conta as condições de tempo. E as marcas pessoais impressas à instituição podem ter muita ou pouca consistência. Também será o tempo a dizê-lo.
E, sobretudo, não é salutar para o país, a disputa encoberta ou indisfarçada pelo protagonismo!
2018.07.01 – Louro de Carvalho

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