No passado dia 28 de junho, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa fez
publicar na página web da Presidência
a seguinte “Nota da Presidência da República”:
“No dia 4 de julho de 2017, foi divulgada
uma Nota Informativa da Procuradoria-Geral da República, que expressamente
referia:
‘Face a notícias relativas ao desaparecimento de
material de guerra ocorrido em Tancos foram, desde logo, nos termos legais,
iniciadas investigações.
Na sequência de análise aprofundada dos elementos
recolhidos, o Ministério Público apurou que tais factos se integram numa
realidade mais vasta.
Estão em causa, entre outras, suspeitas da prática dos
crimes de associação criminosa, tráfico de armas internacional e terrorismo
internacional.
Atenta a natureza e gravidade destes crimes e os
diferentes bens jurídicos protegidos pelas respetivas normas incriminadoras, o
Ministério Público decidiu que a investigação relativa aos factos cometidos em
Tancos deveria prosseguir no âmbito de um inquérito com objeto mais vasto a ser
investigado no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP)’.
Volvido um ano sobre a data da ocorrência (28 de junho
de 2017), que motivou a aludida nota, o Presidente da República reafirma, uma
vez mais, a sua posição de querer ver apurados integralmente os factos e os
seus eventuais efeitos jurídicos e criminais, para os quais é essencial o papel
do Ministério Público.
Palácio de Belém, 28 de junho de 2018.”.
***
A um de março deste ano, na tomada de posse do Chefe do
Estado-Maior-General das Forças Armadas, o Presidente defendeu uma investigação
“mais longe e a fundo” aos casos que envolveram as Forças Armadas nos últimos
tempos, como o de Tancos. E, no passado dia 2 de abril, referiu ter lido o
relatório do Governo sobre Tancos, relevando a investigação judicial e
reafirmando que aguardava a clarificação dos factos e a identificação dos
responsáveis.
O predito relatório do Governo apresenta um resumo histórico dos paióis de
Tancos desde a origem e as “constantes dificuldades e insuficiências”,
descrevendo os sistemas de proteção e de vigilância. E, para o efeito, elaborou
uma cronologia dos acontecimentos, estabelecendo o enquadramento jurídico e as
competências legais, as ações desenvolvidas pelo Ministério da Defesa Nacional (MDN) e pelos três ramos militares, em especial o
Exército.
No relatório, intitulado “Tancos
2017: Factos e documentos”, o MDN admitia como “evidentemente legítima” a pergunta
de “quem, quando, porquê e como perpetrou o furto de material de guerra nos
Paióis Nacionais de Tancos”.
O Exército divulgou em junho do ano passado o desaparecimento de material
militar dos paióis de Tancos – entretanto desativados – que foi recuperado pela
Polícia Judiciária Militar em outubro, a 21 quilómetros do local.
Estamos, como é fácil de entender, perante documentos de natureza
técnico-política, no caso do relatório do Governo, e de natureza técnica a que
podem subjazer aspetos disciplinares que terão sido, entretanto, resolvidos no
âmbito militar, no caso dos relatórios do Exército. Falta, assim, conhecer o
que se passa no âmbito da investigação que decorre na área do Ministério
Público (MP), o qual, se entender que há matéria para acusação,
deve fazer a respetiva promoção para efeitos de ministração da Justiça. Agora, a aludida nota da
Presidência volta à carga sublinhando a
necessidade da investigação pormenorizada de tudo e relevando o papel do MP.
***
Dizem os observadores que Marcelo falou como Presidente
da República e como Comandante Supremo das Forças Armadas, não sendo de
subestimar o que alguns entendem como uma forma de pressão sobre a estrutura
judiciária.
Ora como Presidente da República, tem o direito e o
dever de acompanhar, embora respeitando-os, o funcionamento dos demais órgãos
de soberania, até porque é constitucionalmente o garante do regular
funcionamento das instituições democráticas. Assim, não lhe incumbindo a
iniciativa legislativa nem do referendo, cabe-lhe dirigir mensagens à
Assembleia da República, promulgar ou vetar leis (vêm do
Parlamento) e decretos-lei e decretos regulamentares (provêm do
Governo), submeter diplomas legais ao Tribunal Constitucional para a apreciação
abstrata da constitucionalidade (apreciação preventiva ou sucessiva), ser
informado periodicamente pelo Primeiro-Ministro sobre a definição e o desenvolvimento
da política interna e externa do país e nomear, sob proposta do Governo
determinadas personalidades, entre as quais o Procurador (a)-Geral da
República, bem como designar representantes seus para determinados órgãos
colegiais.
Se calhar, as suas tomadas de posição sobre o papel
do MP não significam uma forma de pressão ilegítima (só esta é
que será de criticar), embora, a meu ver, não devesse usar a página da
Presidência nem os meios de comunicação social para o efeito, já que tem outras
vias de contacto com a instituição. Aliás, sabem a hipocrisia e distração as
recorrentes alegações de deputados ou de membros do Governo de que os casos de
justiça são unicamente da justiça, até porque, em certos momentos, se
pronunciam, ainda que reservem para o MP o preponderante papel na investigação
e na eventual sujeição dos casos a julgamento. Tanto assim é que a Assembleia
da República – e bem – quando entende dever fazê-lo, cria as ditas comissões de
inquérito parlamentar (CPI), como agora o líder parlamentar do PS
sustentou que o Governo deveria tomar posição em relação ao caso da cidadã
colombiana que foi maltratada e vilipendiada por um segurança dos STCP.
Com efeito, os tribunais são independentes a ponto
de os outros órgãos de soberania não interferirem nas nomeações, transferências
e progressões/promoções dos juízes, nas avaliações de desempenho e, muito menos
na ação judicial – a não ser quanto à prerrogativa que assiste ao Presidente da
República na concessão de indultos, em regra de entre os propostos pelo(a)
Ministro(a) da Justiça. Porém, o MP não goza de independência constitucional,
mas de autonomia. Tanto assim é que, embora não possa interferir na ação em
concreto, o Governo ou outra entidade competente para o efeito podem urgir junto
do MP a instauração de inquérito face a borbulhas de suspeição de ilícito
criminal na ordem pública. Ademais, a figura de topo a quem incumbe a coordenação
e acompanhamento do MP provém de nomeação presidencial sob proposta
governamental.
Quanto à sua condição de Comandante Supremo das
Forças Amadas, Marcelo, mais do que qualquer um dos seus antecessores, usa e
abusa publicamente desta prerrogativa, no que é seguido por outros titulares do
poder e pelos órgãos de comunicação social. Do meu ponto de vista, também nesta
área devia ser mais contido, justamente para poder ser proficientemente escutado
em tempo de crise e porque este seu cargo é-o por inerência e o papel é simbólico
e de topo, não tendo qualquer relevância estratégica e/ou operacional, nem
tendo papel exclusivo, muito menos de iniciativa, na designação das chefias
militares. É certo que preside ao Conselho Superior de Defesa Nacional, mas tal
presidência resulta muito mais da deferência institucional do que da capacidade
de liderança militar.
Cabe-lhe, com audição do Governo e mediante
autorização da Assembleia da República, declarar o estado de sítio ou o estado de
emergência nos casos de
agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem
constitucional democrática ou de calamidade pública, devendo respeitar o
princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão
e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento
da normalidade constitucional. Mas,
este é mais um ato político do que propriamente militar, embora a sua condução
seja confiada aos militares.
O mesmo se deve dizer em relação à declaração e guerra
e de estabelecimento da paz. Pode fazê-lo apenas sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia
da República; e, se esta não estiver em funções, mediante autorização da sua
comissão permanente.
***
O
Presidente da República, entretanto, voltou à carga no dia 29 de junho, ao ser
questionado pelos jornalistas, em Alverca, no final da cerimónia comemorativa
dos 100 anos das OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal, relevando a
investigação judicial por conta do MP sobre o caso de Tancos em curso há um ano
e sublinhando que “a memória não prescreve”. Disse ele:
“O
Presidente não se envolve no tempo da justiça, limita-se a dizer em voz alta o
que os portugueses pensam em voz baixa”.
Não lhe
cabe obviamente ser a válvula de escape das indisposições políticas dos
portugueses, mas o papel de moderador e de traço de união na vida pública. Outro
modo de encarar o papel presidencial saberá a populismo ou a tentativa de presidencialização
do sistema.
É verdade
que os portugueses, um ano depois do furto de armas em Tancos, continuam
interessados em saber o que se passou, o mesmo se passando com o Presidente. Mas
isto não implica uma intervenção expressa do Chefe de Estado. Porque não o faz
sobre Sócrates, Pinho, Miguel Macedo, Vara e tantos outros casos? E vamos ver se
como Comandante Supremo das Forças Armadas conseguirá travar a promoção ao
generalato dos dois coronéis suspeitos na responsabilidade pela falta de segurança
dos paiolins de Tancos ou se travará a promoção ao almirantado dos capitães-de-mar-e-guerra
que não reúnem as condições por insuficiência de horas de navegação e/ou de efetivo
comando superior de unidades da Armada.
***
Entretanto,
em contraponto, pelo menos aparente, com o protagonismo marcelino, veio à luz, no
dia 29, um rol de declarações ao DN
por parte da Procuradora-Geral da República Joana Marques Vidal a clamar que “não é fácil
a minha herança perder-se”.
Sem abordar a possibilidade ou não de assumir um segundo mandato, mostra-se
confiante de que algo mudou com o seu mandato e garante que o MP “não voltará ao que era”. Por outro lado,
não lê a intervenção de Marcelo sobre Tancos como qualquer forma de pressão.
Disse a
figura de topo no MP num jantar-debate organizado pelo grupo Portugal XXI – Ideias para Portugal no
século XXI (“think tank fundado por 21 cidadãos com diferentes experiências profissionais
e sensibilidades políticas, mas com um interesse comum, a causa pública”) no hotel Sheraton:
“As instituições dependem muito das pessoas que têm à frente, mas também
têm vida por si mesmas. Há um Ministério Púbico que nunca voltará atrás, há
hoje uma cultura e uma maneira de estar que prosseguirá caminho. Há questões
práticas que podem ir ou não no sentido que eu lhes imprimo hoje, mas isso é da
vida das instituições. E quero acreditar que não é fácil perder a minha herança.”.
Garantindo
que os processos não são marca de água dos procuradores, admitiu: “A
marca de água do meu mandato é ter posto a máquina a funcionar no âmbito do que
é a justiça”.
Sobre a
putativa pressão do Presidente Marcelo através da nota sobre a urgência em
resolver o caso do furto de armas em Tancos, no dia em que faz um ano sobre o
acontecimento, discorreu:
“O Presidente da República exprimiu o verdadeiro sentido do que é a
separação de poderes. A investigação compete ao Ministério Público e estamos a
aguardar o resultado.”.
Quanto à eventualidade
da renovação de mandato, assunto que tem sido amplamente discutido – seria algo
inédito ver um PGR cumprir um segundo mandato –, respondeu evasivamente:
“O mandato e a competência para nomear a PGR é [são] do Presidente da
República, por proposta do Governo. Não posso pronunciar-me, portanto, sobre
isso, pois qualquer resposta seria sujeita a interpretações. Eu tenho de
respeitar o quadro institucional. Seria uma interferência abusiva da minha
parte fazê-lo e, mesmo que não fosse uma ingerência, o respeito institucional
impede-me de me pronunciar.”.
***
Considero
imprópria a afirmação da herança da PGR no MP. Não se trata disso, já que Joana
Marques Vidal não morreu, nem é bom que morra, e porque, sem lhe negar o mérito
funcional no desempenho, não lhe reconheço especial carisma. Todo o trabalho do
MP é trabalho de cooperação e de corporação, fortemente secundado e coadjuvado
pelas polícias de investigação criminal. Ora, além das pessoas e das instituições,
há um fator chamado “tempo”, condicionado pelas circunstâncias políticas,
económicas e sociais, que é o grande agente de mudança.
A este
respeito, posso dizer pessoalmente que, pela minha saída de alguns ambientes, os
grupos e as comunidades ganharam outro dinamismo, outras formas de ver os problemas,
de agir e de avaliar. Se do ponto de vista demográfico a erosão do tempo os
prejudicou, favoreceu-os do ponto de vista social, económico, cultural e
organizacional. E não posso dizer que seja “herança”, mas fruto da mudança e do
tempo. Nada de relevante lhes deixamos como nada de relevante lhes retiramos. É
a vida!
Quanto ao
mandato, Marques Vidal evoluiu, pois, dantes chegou a referir que não estava
interessada num segundo mandato esvaziando assim a polémica levantada pela
Ministra da Justiça. Porque terá mudado discretamente?
E, como referi,
Marcelo interfere no MP, embora com legitimidade tal como o Governo ao
debruçar-se sobre o caso da colombiana e o Parlamento com as CPI. Em Marcelo,
só discuto os meios e a recorrência das declarações. Até o semanário “O Diabo”, do passado dia 26, lhe pedia
que parasse e descansasse para bem da sua saúde e do funcionamento das instituições.
Em relação
ao desempenho de Marques Vidal à testa do MP, há de tudo. Mexeu com os grandes?
Sim. Mas os antecessores também. Por exemplo: Quem suscitou o incidente judiciário
da Casa Pia e levou os suspeitos a julgamento? Idem para o BPN. Quem investigou
o caso Freeport? Quem iniciou a investigação que levou à Operação Marquês? Quem
desencadeou o processo Face Oculta? Dantes houve detenções solenes à vista de toda
a gente; agora também. Sócrates saiu ileso do Freeport e da Face Oculta, mas
não foi o MP que destruiu as gravações com as escutas, mas o então Presidente
do STJ. Nem foi o PGR que impediu os procuradores de fazer dezenas de perguntas
ao então Primeiro-Ministro. Agora, Sócrates foi detido, mas já não era o Primeiro-Ministro.
Nem podemos esquecer que a pureza da ação judiciária ia rebentando com as relações
diplomáticas com Angola sem motivo consolidado como se está a verificar.
A PGR
pode assumir os louros de muitas ações, mas não pode garantir em absoluto um melhor
desempenho que os antecessores, ao menos sem ter em conta as condições de tempo.
E as marcas pessoais impressas à instituição podem ter muita ou pouca
consistência. Também será o tempo a dizê-lo.
E,
sobretudo, não é salutar para o país, a disputa encoberta ou indisfarçada pelo
protagonismo!
2018.07.01 – Louro
de Carvalho
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