A
reflexão que alinhavo com as linhas seguintes parte da perícopa do Evangelho de
Marcos (Mc
6,1-6) proclamada e
meditada no passado XIV domingo do Tempo Comum no Ano B (8
de julho).
De facto,
refere o evangelista do 2.º evangelho:
“Chegado o sábado, [Jesus] começou a ensinar
na sinagoga. Os numerosos ouvintes enchiam-se de espanto e diziam: ‘De onde lhe
vem tudo isto? Que sabedoria é esta que lhe foi dada? Como se operam tão
grandes milagres por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria e
irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui
entre nós?’ E isto parecia-lhes escandaloso.”.
Um
começo de leitura poderia reportar-nos ao expectável espanto dos ouvintes, mas
o narrador adverte para a perplexidade e escândalo, o que vem confirmando nos
versículos seguintes:
“Jesus disse-lhes: ‘Um profeta só é
desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e em sua casa’. E não pôde
fazer ali milagre algum. Apenas curou alguns enfermos, impondo-lhes as mãos.
Estava admirado com a falta de fé daquela gente.”.
Quer
dizer, os conterrâneos do Nazareno não conseguiram ultrapassar o preconceito.
Um carpinteiro não podia ser profeta, muito menos o Messias dotado do poder da
Palavra, da capacidade de fazer milagres comprovadores do messianismo, da
prerrogativa de proclamar o ano da graça do Senhor, prescindindo da vingança do
nosso Deus (cf Lc 4,19; Is 61,1-2), e do poder de perdoar pecados (Mc
2,7).
Pretendiam
aprisioná-lo à condição de carpinteiro, barrando-lhe quaisquer outras
possibilidades de afirmação. Esqueceram que Moisés apascentava rebanhos quando
foi chamado para provocar o Êxodo, o profeta Eliseu pertencia a uma família que
possuía muitas juntas de bois, e Miqueias e Jeremias pertenciam ao mundo
camponês. Ora, Jesus não se deixou acorrentar à sua condição de carpinteiro e
filho do carpinteiro – condição que nunca menosprezou, mas que não era a que
lhe fora destinada. Por isso, seguiu o seu caminho: “Desceu, depois,
a Cafarnaum, cidade da Galileia, e a todos ensinava ao sábado. E estavam
maravilhados com o seu ensino, porque falava com autoridade” (cf Lc 4,30-32). “Percorria as aldeias vizinhas a ensinar.
Chamou os Doze, começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes poder sobre os
espíritos malignos.” (Mc 6,6-7).
***
Essa tentativa de reduzir as pessoas à sua
condição social, económica ou de nascimento é frequente: não tem estofo, não
tem pedalada. Tivemos um governante que chegou a dizer que filho de
lavrador não podia ser advogado e, como era salazarista, não se percebe como
aceitava a autoridade política e académica do antigo filho dum caseiro
agrícola.
Também nos nossos meios alguns profissionais
sentem uma espécie de inveja pelo facto de outros poderem saber do mister
desses, esquecendo que o saber não ocupa lugar e que a investigação é livre.
Mesmo em escolas e Universidades cada um se confina à sua especialidade, tentando
marcar o seu terreno e preferindo não meter a foice em seara alheia. Sabemos
como é plausível que médico, engenheiro ou advogado seja bom escritor e poeta.
Já não sei se bom escritor será aceite como advogado, médico ou engenheiro. E
se se apresenta como tal, é porque provavelmente comprou o diploma em qualquer
academia privada ou estrangeira. Obviamente não sabem ou não recordam que, por
exemplo, o matemático Luís Albuquerque marcou pontos na História dos
Descobrimentos (perdão,
no incómodo aos autóctones das longínquas regiões do Orbe!).
Conta-se que o célebre Apeles fizera um quadro
com uma figura humana e, depois de a expor, se colocara escondido em sítio
donde pudesse ouvir os comentários dos visitantes. Gostou de alguns, não gostou
de outros e depreciou outros. E, quando viu e ouviu um comentário crítico da
parte dum sapateiro remendão sobre a forma da chinela, o artista tomou nota e
corrigiu o erro. Porem, quando no dia seguinte, o mesmo apreciador criticou a
configuração duma perna, Apeles não se conteve e gritou: Ne sutor ultra
crepidam (não vá o sapateiro
além da chinela – chinela, no grego, krepis).
Daqui se gerou um provérbio divulgado em latim e não em grego, porque foi Valério Valério
Máximo (séc. I a C), que era latino, quem registou a fala num dos volumes de “Factos e Ditos Memoráveis” e que ficou na
memória coletiva para alertar as pessoas a evitarem emitir ou transmitir algum
julgamento que comporte conhecimento além da sua especialização.
É bom que as pessoas sejam prudentes e se contenham nas suas
áreas de formação, mas o exagero sempre foi mau conselheiro e, sobretudo, cabe
aos outros a apreciação imparcial e acolhedora de novas revelações. Só me dana
que para a atividade política todos servem independentemente da formação
específica e, quando são criticados é por mau desempenho e por desvios.
***
Entretanto, li no diário on line dirigido por João Tavares,
no Brasil, “Associação Rumos – Movimento
Nacional das Famílias dos Padres Casados”, sob o título “Católicos pedem esclarecimentos sobre
observações do Cardeal Farrel sobre preparação de pessoas para o casamento”.
Nele se faz referência a
recente entrevista à revista católica irlandesa Intercom da parte do Cardeal Kevin Farrel líder
do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida , em que disse que “os padres não são as melhores pessoas para
formar outras pessoas para o casamento”.
E acrescentou:
“Eles não têm credibilidade.
Eles nunca viveram a experiência. Eles podem saber de teologia moral, teologia
dogmática na teoria, mas daí a colocá-la em prática todos os dias… Eles não
têm a experiência.”.
Se o purpurado entende que a formação sacerdotal sofre de
debilidades, deve ele e seu dicastério investir na formação contínua e
especializada dos sacerdotes e utilizar os seus préstimos junto da Congregação
para a Educação Católica (para as Instituições de Estudos) e da Congregação para o Clero. Além disso, é óbvio que os padres
precisam de cuidar da sua autoformação e valorizar a experiência de vida. Não
obstante, não pode o Cardeal deitar por terra todo o esforço que sacerdotes bem
formados e experientes têm desenvolvido em prol dos casais e das famílias.
Por este andar vem aí outro cardeal dizer que os padres são
incompetentes e estão descredibilizados nesta área ou naquela: catequese, ação
católica, migrantes e refugiados, santuários, jovens, seminários, etc.
O texto acima mencionado refere que “os comentários ecoaram observações que o Cardeal fez em
setembro de 2017, quando disse que os padres não tinham “nenhuma credibilidade quando se trata de viver a realidade do casamento”.
E apresenta vários testemunhos de pessoas que abonam a experiência dos
sacerdotes neste âmbito e “que
as observações de Farrell não
refletem a sua experiência na preparação de casais para o matrimónio”.
Por outro lado, segundo os preditos testemunhos, as suas afirmações negam “a visão do
grande modelo de serviço sacerdotal à vida de casado e amor, São João Paulo II”. Outros referem
que “a afirmação de que padres não têm credibilidade em matéria de casamento
é totalmente confusa”.
É certo que os sacerdotes são cada vez menos numerosos e são solicitados
para muitíssimas ocupações pastorais e é de promover e incrementar a
participação de casais na preparação para os matrimónios e para o apoio à vida
familiar. Por outro lado, sem descurar a formação teológica, bíblica, moral e
pastoral dos padres, há que motivar os leigos para estas formações, quer no
quadro académico, quer no regime de cursos intensivos, como se deve fornecer
aos sacerdotes formação antropológica, psicológica e sociológica. A ação
pastoral só ganha com o serviço de equipas multidisciplinares e a heterogeneidade
de agentes. E nunca deve ficar sob suspeita de inépcia ou de descredibilização qualquer
dos agentes pastorais.
O padre Thomas Petri, OP, vice-presidente e
decano da Faculdade Pontifícia da
Imaculada Conceição, em Washington D.C., confessa:
“Se vamos insistir que padres não têm credibilidade em matéria de
matrimónio, então nós não só ignoramos a teologia dogmática e moral do Sacramento, mas também dizemos
que os fiéis não devem se aproximar de padres para conselhos sobre o casamento.”.
E interroga-se se o livro de Karol Wojtyla “Amor
e Responsabilidade” não tem credibilidade, já que se trata da
produção dum celibatário, ou se a sua “Teologia do Corpo” “não é
credível”. Por outro lado, questiona como devem os fiéis considerar a exortação
apostólica “Amoris Laetitia” de Francisco (celibatário e ancião), “o mais longo documento eclesial na história sobre o casamento”.
É desejável
que tanto a preparação para o casamento como o apoio às famílias sejam servidos
por padres e leigos (de preferência casais). A este respeito, Petri enfatiza:
“A maioria dos padres que
conheço concorda que casais que estão vivendo a sua fé no casamento e lutando
pela santidade, não devem apenas estar envolvidos com a preparação de novos
casais para o matrimónio, mas também eles próprios são exemplos de que o
ensinamento do nosso Senhor sobre o casamento não é um ideal inatingível, mas
sim o caminho para a verdadeira felicidade e liberdade”.
John Grabowski, um leigo
casado, professor de teologia moral e ética na Catholic University of America, que foi auditor especialista no
Sínodo sobre a Família, em 2015, concede que as observações de Farrell apontem para a importância de envolver os casais
casados em programas de preparação para o matrimónio. E aproxima o Cardeal
do estilo do Papa: “muito
sincero” e espontâneo, mas, neste caso, “um pouco hiperbólico”. Porém, salienta
a validade das suas observações no sentido da “importância do envolvimento
crescente de casais já casados nas formações de outras pessoas ao matrimónio,
antes e depois do casamento”.
Para Grabowsk, a vocação para o matrimónio e a vocação para o celibato
apoiam-se uma na outra, pois “tanto padres como casais leigos trazem
perspetivas originais para a formação de casais para o matrimónio e que a combinação dos dois
é essencial”, na linha da complementaridade e do mútuo apoio.
Alguns
padres declararam ao CNA que as observações
aparentes de Farrell têm perpetuado equívocos sobre o sacerdócio.
O Padre William Dailey, CSC, diretor do
centro Notre Dame-Newman Para a Fé e a Razão em Dublin, disse ao CNA que
os comentários do purpurado “tomados
por sua feição”, podem diminuir “os esforços de muitos padres que trabalham com amor e dedicação para formar
cônjuges em toda a Igreja”. E confessa:
“Esperamos que o Cardeal se tenha
expressado mal ou que tenha sido mal interpretado, e que ele possa ampliar as suas
observações a fim de elaborar um argumento diferente ou de voltar atrás no que
disse, esclarecendo que não é realmente assim que ele pensa”.
***
Por outro
lado, parece que o Cardeal está a embarcar num excesso de experiencialismo. Faz-me
voltar ao século XVI em que o saber feito de observação e experiência era o
único válido pondo na mó de baixo o saber livresco e especulativo, ou ficar-me
pelo século XIX, em que só o saber empírico constituía fonte válida de conhecimento,
pelo que a Teologia e a Metafísica tinham de ir dar uma volta. E recordo como
sacerdotes, que se autoconsideravam bem formados, eram motivados para a frequência
do Curso de Cristandade para poderem acompanhar os cursistas da sua paróquia ou
com o argumento de que era uma experiência religiosa – como lembro os retiros
espirituais orientados pelo Padre Inácio Larrañaga, conhecidos por “Experiência
de Deus”, epíteto que levou tantas pessoas generosas à sua frequência e provavelmente
com indizível fruto espiritual. Mas chamar-lhes experiência de Deus será
excessivo.
E quantas
vezes não ouvi dizer que os padres, porque nunca foram casados, não tinham
capacidade para dar conselhos a casados ou que aqueles ou aquelas que não têm
filhos não percebem do amor maternal ou paternal nem de educação dos filhos. E eu
retorquia perguntando se o médico, para assistir a um parto, precisava de ter
dado à luz ou se um indivíduo para saber o que custa a morte, tinha de haver
morrido primeiro ou, ainda, se aquele que nunca bebeu vinho, não conseguirá
embebedar-se.
Por acaso
nunca se viu acusar os profissionais liberais de falta conhecimento e de experiência
de vida, exceto quando são muito novos. De resto, são acusados de falta de dedicação,
de erros, de desonestidade, etc. Quer dizer que os padres serão os únicos incompetentes.
Adoro!
Por um
pouco mais, temos o Cardeal a duvidar da competência de Cristo. Não andou em
escolas. Como pôde ensinar? Não era de família sacerdotal. Como pode ser o
único e eterno Sacerdote? Não tinha ovelhas não tinha espada, cetro, coroa,
trono e militares. Como pode ser pastor e rei? Nunca esteve doente, leproso,
cego, surdo, mudo e coxo. Como pôde curar essa gente? Não tinha estado morto.
Como pôde ressuscitar a filha de Jairo, o filho da viúva de Naim ou o amigo
Lázaro? Não foi casado. Como pôde falar do casamento? Não frequentou a
comunidade de Khirbet Qumran, como pôde apelar ao celibato pelo reino de Deus?
Não foi adúltero. Como pôde perdoar à adúltera? Não era samaritano. Como pôde
conversar com a samaritana e convencê-la? Não era enólogo. Como converteu a
água em vinho?
***
Enfim, é
prudente procurar a experiência e fazer dela uso para fins pastorais, mas
importa considerar que a experiência pode não ser pessoal, mas também pode sê-lo
por mercê da companhia e da convivência. Por outro lado, há que valorizar a
formação acumulada academicamente, se possível enriquecida com a experiência, e
iluminar com a formação a experiência. E, sobretudo, é forçoso não tornar nenhuma
pessoa ou grupo em refém da sua condição, estar aberto à novidade e à
cooperação e não ostracizar ninguém. Cuidado com o excesso de experiencialismo
e com o excesso de academismo!
Todos somos
poucos para a tarefa ingente do Reino de Deus!
2018.07.11 –
Louro de Carvalho
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