terça-feira, 17 de julho de 2018

Uma visão de igualdade, justiça e liberdade e numa democracia multirracial


Foi nestes valores que Barack Obama fez profissão de fé humanitária no longo e forte discurso que proferiu hoje, dia 17 de julho, em Joanesburgo, na África Sul, durante uma conferência realizada para honrar a vida de Nelson Mandela por ocasião do centenário do seu nascimento.
Segundo os observadores, terá sido este o discurso mais longo que o antigo Presidente dos EUA fez depois que deixou a presidência e em que defendeu a democracia, condenou o populismo e o autoritarismo e pôs o dedo na ferida da globalização, da expansão tecnológica e da cavalgada rápida do capitalismo, dizendo que retirou “mil milhões de pessoas da pobreza”, mas que também que criou uma “enorme desigualdade e ressentimento” entre as pessoas que agora “têm medo de perder o que conquistaram” e “medo do outro, que de si é diferente, tem uma cor diferente e fala de forma diferente”.
Na evocação dos 100 anos do nascimento de Mandela, um dos nomes que mais influenciou o Obama criticou inequivocamente o Presidente, sem mencionar o seu nome, pondo a nu o “estado de coisas”, mas ficando poucas dúvidas sobre o destinatário dos reparos. De facto, o antigo Presidente dos Estados Unidos conta entre as suas ocupações atuais a crítica clara e direta à Administração de Donald Trump, que lhe sucedeu no cargo, sem referir o nome do Presidente. Diz a CNN que “ele fez disto uma arte” – coisa que repetiu hoje em Joanesburgo, num estádio com cerca de 15 mil pessoas na audiência. E isto um dia depois de Trump ter chocado o mundo ao dizer que acreditava em Vladimir Putin, que lhe garantiu, na cimeira de Helsínquia, que a Rússia não interferira nas eleições norte-americanas de 2016, declaração vista como uma desautorização dos serviços secretos norte-americanos, que já confirmaram ter a questão deixado de fazer parte do domínio da opinião.
Numa boa aula expositiva de História sobre os últimos 100 anos, o orador avisou que “as estruturas da opressão nunca foram totalmente desalojadas” e que se mantêm mecanismos da antiga repressão. Obama pegou no número redondo dos 100 anos de Mandela para abordar o tema da evolução das liberdades civis no último século, um horizonte temporal que, em sua opinião, se deixou moldar pela mente de homens e mulheres como Mandela.
Começou por considerar que “vivemos em tempos estranhos e incertos” e que “cada ciclo noticioso nos traz mais reviravoltas à cabeça com títulos cada vez mais perturbadores”. Mas, antes de explicar a evolução operada nestes 100 anos, o orador sustentou que o mundo está prestes a “voltar a ser um lugar onde se privilegia uma forma mais brutal, mais perigosa de relacionamento” entre os países e apontou a “total perda de vergonha” dos líderes políticos que sistematicamente mentirosos. E lembrou que os factos são o mais importante.  E discorreu:
Temos de acreditar nos factos, sem eles não há base para a cooperação. Se eu disser que isto é um pódio e vocês disserem que é um elefante, será muito complicado para nós cooperarmos. Não teremos uma base para o entendimento se alguém disser que as alterações climáticas não vão acontecer, quando todos os cientistas do mundo nos alertam para isso. Não sei como poderemos começar a falar sobre este tema, se alguém alegar que se trata de um erro elaborado...”.
Aquando do nascimento de Mandela, a África estava controlada por regimes coloniais, sustentados na ideia pseudocientífica da inferioridade da raça negra e no desrespeito pela cultura, educação, tradições e aspirações dos negros. E Barack Obama frisou que “essa visão do mundo, na qual certos grupos eram inerentemente superiores a outros e a coerção formava a base da governação, não estava confinada à relação da Europa com África”. Na verdade, segundo o orador, os brancos não tinham problemas em explorar outros brancos, nem os negros tinham problemas em explorar outros negros”.
Também o país onde Obama nasceu, os EUA, criado com base numa das mais progressistas cartas de independência – a Constituição americana, discutida e aprovada na Convenção Constitucional de Filadélfia em 1787 (“para formar uma União mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade”) – que o mundo tinha visto na altura, pecou desta mesma forma. Disse o orador a este respeito:
 Fundado sob o princípio que todos os Homens nascem iguais, a discriminação sistémica era lei em metade do país e normal no país todo. Isto foi há cem anos. Há pessoas vivas hoje que se lembram desses tempos. É difícil subestimar os progressos que se fizeram.”.
E Obama, que foi recentemente eleito por uma maioria de cidadãos norte-americanos como o melhor Presidente de sempre, passou à explicação dos progressos que a humanidade alcançou após a II Guerra Mundial – “milhões de pessoas por todo o mundo começaram a lutar contra os totalitarismos, pelo Estado de Direito e pela dignidade de cada indivíduo”.
Entrelaçando sempre o percurso de Mandela com a luta pelos direitos civis e das minorias, Obama afirmou que a influência de “Madiba” foi muito além da área geográfica onde vivia, até porque viveu na cela presidiária durante 27 anos. E Barack Obama, ele mesmo um dos confessos discípulos de Mandela, sublinhou:
A luta pelo fim do Apartheid foi uma particularidade da sua terra, mas, através do seu exemplo moral, Nelson Mandela liderou um movimento muito maior e capturou as aspirações de todas as pessoas desprotegidas pelo mundo todo. Fê-las acreditar na possibilidade da transformação moral dos governantes.”.
E, sobre a influência do trabalho de Mandela na sua juventude, assegurou:
A sua luz brilhou tanto nos anos 70 que conseguiu inspirar um jovem a reexaminar as suas próprias prioridades e a acreditar que poderia ter um papel no processo de mudança legislativa”.
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Foi no contexto da abordagem da temática da globalização, da expansão tecnológica e da cavalgada rápida do capitalismo, acima referida, que Obama declarou que “as estruturas da opressão nunca foram totalmente desalojadas”. E isto não se passa apenas a nível policial ou a nível bélico. A globalização, se retirou “mil milhões de pessoas da pobreza”, também criou uma “enorme desigualdade e ressentimento” entre as pessoas que “têm medo de perder o que conquistaram” e “medo do outro”. Depois, na elencação de Obama, agora com 56 anos, como exemplos das desigualdades que ainda subsistem, vêm:
As disparidades monetárias e no acesso à educação, à segurança, ao crédito; o sistema de castas que ainda oprime os indianos, a etnia e a religião que ainda determinam as oportunidades em vários países do Médio Oriente, as mulheres e as meninas que continuam a ser o alvo principais de discriminação e violência, muitas sem poderem aceder à educação.”.
Tudo isto, admitiu numa espécie de mea culpa, porque os “governos e as elites foram incapazes de acautelar os falhanços das políticas de globalização”.
Lançou duras críticas à classe política pelo fomento de “políticas de medo, ressentimento e isolamento” e disse que o avanço do populismo e do autoritarismo é de tal forma veloz que seria “inimaginável apenas há uns poucos anos”. E disse a propósito:
A política do medo, do ressentimento e da redução de gastos começaram a aparecer. E esse tipo de políticas está agora a florescer a um ritmo que nos parecia inimaginável há uns anos.”.
Em seguida, pôs a nu o culto da “política dos homens fortes” (talvez tenha sido esta a mais clara referência a Trump e Putin), que se encontraram, no dia 16, numa das páginas mais criticadas da Administração Trump até agora, dizendo que “aqueles que hoje estão no poder chegaram lá através de eleições, mas depois o que fazem é retirar significado a todas as instituições que mantêm a democracia”.
A uma possível objeção de alarmismo opôs:
“Não estou a ser alarmista, estou apenas a constatar factos. Olhem à sua volta: políticos poderosos estão a destacar-se, de repente, encobertos pelas eleições e por uma democracia que mantém a sua forma, mas permite que quem está no poder tente minar todas as instituições ou normas que dão significado à democracia.”.
E, numa tirada digna dos socialistas que a América tanto teme, atirou que estes movimentos populistas, que colocam as pessoas contra pessoas, são financiados por “magnatas de direita” que esperam, em retorno, “menos restrições aos seus negócios” depois de terem ajudado a eleger um determinado governo.
Sem nomear Trump ou Putin, falou da Rússia que, “após a humilhação da queda do bloco soviético, voltou ao ataque”, e da China que, no dizer do orador, classifica qualquer reparo aos abusos contra os direitos humanos como novo imperialismo. E, com o sobrolho franzido, ironizou: “Quem é que precisa de liberdade de expressão quando a economia está a crescer?”.
Obama considera que, no centenário de Madiba, “o mundo está numa encruzilhada”. Nesse sentido, disse que o mundo tem que escolher entre “duas visões, duas narrativas muito diferentes” para o futuro da Humanidade; e garantiu que acredita “na visão de Nelsom Mandela”, uma “visão de equidade, justiça, liberdade e democracia multirracial construída na pretensão de todos os povos na criação de direitos inalienáveis”.
Assim, apelando aos povos a que preservem as liberdades democráticas, como sendo a chave para a manutenção da paz, disse citando três grandes figuras da luta pela dignidade de todos:
Eu acredito na visão de Ghandi e de King e de Abraham Lincoln. Acredito numa visão de igualdade e justiça e liberdade e numa democracia multirracial construída sobre a premissa de que todos somos criados iguais.”.
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Esta intervenção de Barack Obama parece maravilhosa. No entanto, este homem, enquanto faz o discurso dos pobres e da seriedade política, faz uso da situação que o levou à presidência dos EUA e do prestígio que granjeou ou que lhe foi outorgado e não pode afirmar-se como estando do lado do pobres, se tivermos em conta a vida que tem e os ganhos económicos com que se faz ornar.
Terá a ida à África do Sul custado cerca de meio milhão de euros como a deslocação Portugal?
E, no atinente ao seu desempenho político, aquele que, no início do primeiro mandato presidencial, foi galardoado com o Prémio Nobel da Paz regista na sua folha de serviços faltas a promessas como a do encerramento de Guantánamo e não deixa de ser criticável a forma como mandou executar Osama Bin Laden. Já em 2009, ordenou o uso de drones de modo a ter ultrapassado os números do antecessor; em 2013, foram mortas 15 pessoas no Yémen durante um casamento, confundidas com membros da Al-Qaeda; e, em 2016, caiu uma chuva de paz de 26.171 bombas em vários pontos do mundo – Iraque, Afeganistão, Yémen, Síria, Somália e Paquistão.
Em 2006, como senador, votou a construção duma barreira de 2000 milhas a separar México e EUA e grande parte foi construída nos seus mandatos – construção que Trump continua.
Por fim, em termos da guerra económica, Obama preparava-se para depositar a economia nas mãos do grande capital (e das grandes deslocalizações) através de tratados de comércio livre internacionais perdulários que tiravam poder aos governos e criavam dependências nos cidadãos.
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Enfim, bem fala Frei Tomás... Muitos dão receitas, mas poucos as aviam e tomam.
2018.07.17 – Louro de Carvalho       

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