sábado, 21 de julho de 2018

“Diu sem crime”


É o slogan utilizado pelas autoridades de Diu, que anseiam pela saída do último recluso da prisão instalada na Fortaleza de Diu, com vista a promover o antigo território português, já que a zona, como sustentam, tem muito baixa criminalidade e o encerramento da prisão é medida saudada como um passo para a promoção turística e ficará aberto o caminho para um “Diu sem crime”.
Segundo o DN, edição online de hoje, dia 21, a Índia encerrará muito em breve a cadeia de Diu na fortaleza construída em 1535 e considerada uma das maravilhas de origem portuguesa no mundo. Resta apenas que o último recluso, um homem de 30 anos, tenha autorização do tribunal para dali sair; ou para outra prisão em definitivo por condenação em julgamento que está a decorrer ou para casa se, por reviravolta processual, for absolvido.
Aquando da tomada da Fortaleza de Diu pela Índia, em 1961, no quadro da anexação militar do Estado Português da Índia (designação das possessões portuguesas sobreviventes à erosão do tempo: Goa, Damão e Diu) esta estrutura de arquitetura militar construída pelos portugueses há quase 500 anos já integrava a cadeia, uma área de reclusão que se manteve aberta, mas cujo encerramento já está decidido, aguardando-se apenas pela saída do último recluso, que, a aguardar julgamento, ocupa sozinho a ala prisional, vigiado por cinco guardas.
O prisioneiro mais solitário da Índia vive numa cela concebida para 20 pessoas – a área total da cadeia recebia até 60 – com direito a cama, água, televisão e 50 m2 de espaço vazio. Preso por tentativa de homicídio da mulher, por envenenamento, só pode sair da cela duas horas por dia. Com cinco guardas prisionais e um funcionário, a prisão tem as suas torres de vigia vazias.
De acordo com as declarações de Chandrahas Vaja, diretor da prisão ao jornal The Hindustan Times, os guardas fazem turnos e o recluso é vigiado 24 horas por dia. Porém, em sua avaliação, “a situação tem os seus desafios”, já que não pode ser proporcionada nenhuma atividade para o prisioneiro, pois é o único. E, para as refeições dele, teve de ser feito um acordo especial com um restaurante perto do forte.
Embora não haja ainda uma data prevista para a saída de Deepak Kanji, sabe-se que o espaço será entregue à agência arqueológica indiana para fins culturais e turísticos.
A decisão de encerrar a cadeia está tomada desde 2013. Nessa altura, estavam ali sete reclusos, incluindo duas mulheres. Quatro foram transferidos para a prisão de Amreli, a cerca de 100 km de Diu, e os outros dois já cumpriram as penas desde então. Segundo o chefe dos guardas, Kanji ficou sozinho pelo facto de o seu processo estar em julgamento no Tribunal de Diu; e é conveniente mantê-lo ali enquanto estiver a ser julgado, pois as audiências são no tribunal de Diu e Amreli, a prisão mais próxima, fica muito longe”. Porém, o recluso, devido ao isolamento, pergunta todos os dias pela sua situação na justiça. Os guardas limitam-se a fazer-lhe companhia porque não há mais ninguém ao invés do que se passa em prisões maiores, com mais pessoas, em que as autoridades organizam atividades sociais importantes para a saúde de qualquer recluso.
***
A Fortaleza de Diu, edificada em 1535/1536, mas com restauros posteriores e significativas alterações em 1546, é uma estrutura arquitetónica ímpar na expansão portuguesa. Desempenhou relevante papel estratégico para o controlo, por parte de Portugal, da rota marítima das especiarias e das sedas no século XVI. A sua localização no Índico constituía a ilha como importante entreposto comercial, a ponto de ter chegado a ser conhecida como a Gibraltar do Oriente. Os portugueses estiveram 424 anos em Diu, entre 1537 e 1961 ano, em que, pela Operação Vijay a União Indiana, que conquistou a independência em 1947, acabou com o domínio português em Goa, Damão e Diu.
Classificada a fortaleza, em 2009, como uma das sete maravilhas de origem portuguesa no mundo por iniciativa do governo português para divulgar o património que Portugal deixou no Mundo durante a expansão marítima, a sua prisão, que ocupa apenas uma pequena parte, já funcionava quando a Índia tomou conta de Diu, em 1961. Hoje, os turistas visitam a fortaleza, mas sem acesso ao estabelecimento prisional enquanto ele estiver em funcionamento. A ideia é que toda a Fortaleza fique acessível aos visitantes; e já há planos para a dotar de novas funcionalidades e se tornar mais atrativa.
***
fortaleza de Diu localiza-se na ilha de Diu, na Índia, no extremo sul da península de Katiavar, à entrada do golfo de Cambaia, na costa do Gujarate ou Guzerate. Sucede a um antigo forte que ali existia. Com efeito, na ilha de Diu, localizava-se o velho forte de Pani-Kote ou de Simbor (forte do mar), situado, como a aldeia de Gogolá, no reino de Junaghar. A superfície total de Simbor não ultrapassaria 1 km2. Além da cidade e fortaleza, na ilha, existiam sete aldeias: Fodão, MalaIa, Dangravari, Nagoá, ]asoatraque, Brancavará e Bunchervará.
Uma das primeiras manifestações do estilo renascentista no Oriente português destaca-se pela imponente muralha (de 7 quilómetros de perímetro total) pelo lado de terra que ascendia a 250 metros de comprimento, reforçada por baluartes e apoiada por numerosos fortes e fortins espalhados pelos 40 quilómetros quadrados da ilha. Tendo em conta a informação de Dom João de Castro sobre as fortificações no Estado Português da Índia, de que “...são estas fortalezas tão fracas que, tirando Diu, nenhuma é capaz de se poder defender oito dias dos nossos inimigos” (carta de 30 de outubro de 1540), Gaspar Correia, no seu Lendas da Índia (c. 1560), ao referir-se à fortaleza de Diu, registou: “...nunca outra tal nestas partes se viu”.
A defesa era composta, pelo lado de terra, por uma 1.ª linha, sobre o fosso exterior, amparada pelo Baluarte de São Domingos (defendendo o Portão de Armas), pelo Baluarte de São Nicolau e pelo Baluarte de São Filipe. A segunda linha, interna, era integrada, pelo lado de terra, pela Torre de Menagem, pelo Baluarte Cavaleiro e pelo Baluarte de São Tiago; pelo lado do mar, pelo Baluarte Chato (sueste) e pelo Baluarte de Santa Luzia (este); e, pelo lado do canal, pela Couraça, pelo Baluarte de Santa Teresa e pelo Baluarte de São Jorge.
A defesa era complementada pelo chamado Fortim do Mar, um forte de pequenas dimensões estrategicamente erguido em meio das águas, na embocadura do canal, e que, em nossos dias, controla a atividade dos numerosos barcos de pesca na área.
Em 1992, o Museu da Marinha em Lisboa adquiriu um modelo em pedra da Fortaleza de Diu, com o nome do seu artífice e a data do trabalho (Deuchande Narane mestre – fez 1894).
Considerada pelos peritos em arquitetura militar a mais importante e bem fortificada estrutura erguida no Estado Português da Índia, foi, pela sua importância estratégica, alvo da cobiça e dos inúmeros cercos e ataques de árabes, turcos, indianos e de diversas tentativas neerlandesas para se apoderarem dela em fins do século XVII. Mas, apesar de reputada como inexpugnável, acompanhou o declínio de Diu a partir do século XVIII até à queda final em dezembro de 1961.
Segundo informação de 1597, em Diu viveriam pouco mais de 200 famílias portuguesas, e uma população muçulmana que atingia os 2000 habitantes. Os indus seriam também em número considerável já que, em 1613, chegavam aos quatro ou cinco mil. No inverno juntar­-se-iam em Diu mais de 1000 estrangeiros: persas, mogores e outros. António Bocarro, em 1634, dá conta já da decadência de muitas casas «mui nobres», localizadas na fortaleza e pertencentes a «cazados portuguezes». A «ma visinhança» dos capitães obrigara-os a mudarem­-se para o exterior.
Diu era um importante entreposto comercial aquando da chegada portuguesa à costa da Índia. Por isso, desde 1513, ali se tentou sem sucesso, logo com Afonso de Albuquerque, estabelecer uma feitoria. E não foram coroadas de êxito algumas tentativas de conquista empreendidas por Diogo Lopes de Sequeira, em 1521, e  por Dom Nuno da Cunha, em 1523 e em 1531.
Em 1534, Martim Afonso de Sousa iniciou negociações com o sultão Bahadur Xá, vindo a obter a posse da ilha em troca de ajuda militar portuguesa prestada contra o Grão-Mogol de Déli, que o expulsara dos seus domínios. E as obras de edificação da Fortaleza foram iniciadas pelo 7.º governador do Estado Português na Índia, Dom Nuno da Cunha, em 20 de novembro de 1535, tendo ficado concluídas em 1536.
Entretanto, Bahadur Xá, livre da ameaça e arrependido da sua generosidade, tentou reaver Diu, para o que matou o governador da praça e chamou em auxílio uma frota turca. Conhecedor da traição, Martim Afonso mandou prender Bahadur, que acabou morto numa refrega. Seguiu-se um período de guerra entre os portugueses e a gente do Guzerate. O novo sultão celebrou um acordo com a Sublime Porta e, em 1538, forças Guzerates comandadas por Coja Sofar, senhor de Cambaia, com o reforço duma armada egípcia do Paxá Al Khadim (talvez designação turca de Solimão, o Magnífico), pôs cerco a Diu, defendida por tropas portuguesas comandada por António da Silveira. E as forças Guzerates foram dispersadas com o auxílio de Martim Afonso de Sousa.
Com a sua estrutura reparada e reforçada, Diu foi duramente castigada em novo cerco, posto por novo exército Guzerate comandado pelo mesmo Coja Sofar, no verão de 1546. Cinco meses os defensores resistiram sob o comando de Dom João de Mascarenhas, recebendo alguns reforços e suprimentos pelo mar até que, em 11 de novembro, um reforço naval sob o comando de Dom João de Castro, posteriormente recompensado com o cargo de 4.º Vice-rei da Índia, decidiu a vitória em prol dos Portugueses.
Neste cerco, pereceram Coja Sofar e Dom Fernando, filho de Dom João de Castro. Assim lhe foi comunicada a perda por seu outro filho, também enviado em socorro da praça:
Meu irmão, que Deus haja, achei morto; é certo que Vossa Mercê perdeu um filho e eu um irmão para muito sentir, mas nós havemos de morrer e o manjar da Guerra são homens e os melhores” (in “carta de Dom Álvaro de Castro a Dom João de Castro, Diu, 27 de agosto de 1546).
Dom João de Castro, dirigindo-se ao filho Dom Fernando, enviado a socorrer a praça sitiada pela segunda vez, tinha afirmado: “Por cada pedra daquela fortaleza arriscarei um filho”. O episódio da libertação da Fortaleza de Diu pelas tropas de Dom João de Castro encontra-se retratado uma tapeçaria em fios de lã, seda, ouro e prata, confecionada em 1557 e exposta no Kunsthistoriches Museum em Viena, na Áustria.
Os episódios foram registados por Camões, em Os Lusíadas, em tom de profecia de Júpiter a tranquilizar Vénus, protetora do Gama e companheiros, prenunciando o que os portugueses iriam fazer na Ásia, mesmo depois da viagem dos portugueses:
Vereis a inexpugnável Dio forte / Que dous cercos terá, dos vossos sendo. / Ali se mostrará seu preço e sorte, / Feitos de armas grandíssimos fazendo. / Envejoso vereis o grão Mavorte / Do peito lusitano, fero e horrendo. / Do mouro ali verão que a voz extrema / Do falso Mahamede ao céu blasfema.”. (Canto II, estância 50).
E, no canto X, novamente por meio da profecia, mas desta vez de Calíope, refere as vitórias dos portugueses nas estrofes 10 a 74 e, em Diu, por doze estrofes (60 a 71). O poeta conclui a história do cerco dizendo:
Feitos farão tão dinos de memória / Que não caibam em verso ou larga história” (Canto X, est. 71- 7-8)
Dom João de Castro, para reconstruir as muralhas da fortaleza, arruinadas pelo cerco (a fortaleza, no dizer do próprio, encontrava-se tão gravemente destruída que nela não havia de aproveitável um só palmo de parede), solicitou à Câmara Municipal de Goa um empréstimo de 20 mil pardaus (pardau – antiga moeda da Índia portuguesa, de valor variável entre 220 e 1$250 réis), dando em garantia a própria barba. A Câmara liberou o empréstimo, mas rejeitou o exótico penhor. As obras de reconstrução foram conduzidas por Francisco Pires,  mestre de pedraria  que, pela saída do reino para a Índia em 1546, de passagem levara o risco para a Fortaleza de São Sebastião na ilha de Moçambique.
A partir do século XVIII , o progresso inglês levado às cidades vizinhas do Katiavar, retiraram importância económica a Diu, que perdeu importância estratégica (tal como as costas de Oman e do Guzerate) no final do século XIX, com a abertura do Canal do Suez.
Por fim, caiu sob ataque das forças da União Indiana, em 19 de dezembro de 1961, sem possibilidade de receber reforços, após esgotada a sua munição. Foi diante dos seus muros que se desenrolou o episódio da lancha Veja, que sucumbiu ante os ataques de duas esquadrilhas de aviões a jato que atuaram em apoio à invasão. Não obstante, as suas imponentes muralhas, com sete quilómetros de perímetro ainda são motivo de orgulho para os habitantes de Diu que têm na memória a presença portuguesa de cuja herança se consideram fiéis depositários.
Cf Dn, 21 de julho de 2018; Matos, Artur Teodoro (1999), O Tombo de Diu 1592, Centro de Estudos Damião de Góis; Wiquipédia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Fortaleza_de_Diu; http://ensina.rtp.pt/artigo/fortaleza-diu-india/; http://fortalezas.org/?ct=fortaleza&id_fortaleza=748&muda_idioma=PT; https://www.indiaportuguesa.com/primeiro-cerco-de-diu-ndash-1538.html.
2018.07.21 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário