A frase foi citada, em entrevista à agência Ecclesia, por Dom António Luciano, Bispo
de Viseu, que diz tê-la ouvido a Dom Alberto Cosme do Amaral, então Bispo
Auxiliar de Coimbra, no encerramento do seu curso de enfermagem.
Dessa longa entrevista recolhem-se sobretudo asserções
ligadas ao sentido da profissão e à formação em Teologia Moral e Bioética, bem
como ao ensino conexo com estas.
O Bispo enfermeiro que viveu a infância “numa família
cristã, num ambiente cristão”, conta que um dia foi um padre missionário à
escola primária e, enquanto os outros miúdos se afastaram do padre, ele
agarrou-se-lhe à batina.
Entretanto, provavelmente por influência duma
enfermeira conterrânea, fez a formação em enfermagem em Coimbra, passando a
trabalhar nos HUC (Hospitais da Universidade de Coimbra). A seguir, fez o curso de enfermagem militar e
passou a Leiria, Caldas da Rainha e Lisboa, na Estrela, onde fez a formação
militar, após o que foi para o Hospital Militar em Coimbra, daí tendo sido
mobilizado para Moçambique (já depois da revolução abrilina) onde esteve de agosto de 1974 a abril de 1975,
passando por Quelimane e Nampula, onde atendeu “muitos traumatizados de guerra
e muitos mutilados”.
Diz ter servido quase sempre no bloco operatório, com
exceção de uns meses depois do serviço militar em que ajudou a abrir um serviço
de neurotraumatologia. Mas no tempo de seminário, trabalhou em Lisboa, no Hospital
de São Francisco, e no Hospital da Nazaré, onde estavam as irmãs de São José de
Cluny e aonde ia durante as férias de verão fazer um pouco de praia e
ajudava; e, ainda, na Clínica de Santa Filomena, em Coimbra.
Interpelado sobre a atenção
e proximidade que punha nos cuidados de saúde, confessa que teve “sempre muito contacto com as pessoas simples,
humildes, pobres, doentes”, no que vinha habituado da vida em família. E conta:
“Em casa dos meus pais e avós, muita gente
ia ajudar no serviço. Eles tinham comércio e lavoura, iam pessoas gratuitamente
que ajudavam e ali tomavam a refeição. Sempre me habituei a estar com os mais
necessitados e pobres. Os meus pais deram-me essa lição.”.
Foi com o ideal cristão para enfermagem e integrou-se
como aluno na associação dos enfermeiros católicos, procurando transpor
discretamente “aquele espírito evangélico e cristão que levava”, inspirado
enunciado evangélico “o que fizerdes ao
mais pequenino dos meus irmãos, é a mim que fazeis”. Reconhecendo que isto
sempre o orientou, citou a frase plasmada em epígrafe e proferida no
encerramento do curso por Dom Alberto Cosme do Amaral, da qual nunca mais se
esqueceu: “Quem trabalha no bloco
operatório é como quem trabalha num sacrário”. E foi, depois, “trabalhar
para o bloco operatório”.
Desse trabalho encarece a atenção “à pessoa doente e
aos médicos”, pois, como discorre, “um
bloco operatório é um lugar de muita responsabilidade, onde a vida entra e pode
não sair”. Por isso, tudo tem de estar bem preparado, “tanto da parte
médica como da enfermagem, técnica e do pessoal de apoio” – o que tem suscitado
“sempre uma cooperação muito grande, um espírito de família”. Confessa que a
preocupação por que o doente saia dali com vida se sente sobretudo quando são “grandes
sinistrados, em urgências” ou numa intervenção de risco – o que impõe uma
atenção redobrada. E o enfermeiro, ora bispo, pensava “que, interiormente,
muitos pediriam a Deus que os ajudasse naquele trabalho tão importante da
cirurgia e da medicina”.
***
Sobre o momento atual que a área da saúde
enfrenta, nomeadamente algumas tensões entre a classe dos enfermeiros e o
Ministério da Saúde, diz que se tem apercebido dessa tensão, que significa “um
momento de reviravolta também histórica na relação Ministério/profissionais”. E
chama a atenção para a necessidade de, antes de mais, “se olhar para a pessoa
humana e para os cuidados que se têm de dar com qualidade”, esperando “que
nunca aconteça que nós não demos ao doente o que devemos dar por falta de
recursos económicos”. Acredita no equilíbrio entre o Ministério e os grupos
profissionais, que hão de encontrar o melhor para a saúde”, porque esta “é um bem integral”, no dizer de João
Paulo II, pelo que “temos de a promover mesmo quem não tenha fé”. Por outro
lado, a OMS (Organização Mundial de Saúde) “quer que
a saúde seja para todos”, o que, entre nós, “é uma conquista que se fez com a
nossa revolução de abril”.
Confessa não se ter debruçado sobre o tema da
discussão sobre a nova Lei de Bases da Saúde, mas que procura “ouvir médicos,
enfermeiros e administradores e ver o que se pode fazer”, advertindo que é
precisa “muita atenção e prudência”, pois “não podemos queimar etapas, mas
saber respeitar para colher bons frutos”.
Quanto à ideia de voltar
ao SNS (Serviço Nacional de Saúde) das origens, “gratuito,
prestado por entidades públicas e assente na carreira dos médicos”, declara:
“Isso foi um bem, seria bom se realmente se
fizesse isso. Mas eu, desde muito novo, aprendi uma coisa: todos os ministérios
podem dar prejuízos, mas o da saúde e da educação são sempre ministérios que
dão prejuízo porque investem no que é o maior bem das pessoas. Os recursos
podem não ser os suficientes, mas há que correr riscos! Se tivermos a saúde e
as respostas gratuitas para todos, melhor. Mas compreendo que, em nome da
justiça, quem possa pagar deverá ajudar os que são os mais necessitados.”.
Diz que gosta “de ir ao médico e pagar” o que deve
pagar e que prefere “pagar toda a vida para esta ou para aquela instituição e
nunca vir a precisar dela”. Isto é “contribuir para os outros”; é “a justiça
social, que é importante para além da justiça evangélica”, que procura viver.
Sobre um SNS que conte com
a iniciativa privada e social, pensa que “é
saudável” e nos ajuda “a equilibrar”, pois, “no confronto, vemos de onde vêm as
melhores respostas”.
***
Revela que acompanhou o
debate em torno da possível legalização da eutanásia “com muita expectativa, apreciando a posição dos
comunistas e tendo participado, em nome da Igreja católica num dos colóquios, o
inter-religioso, com intervenção dum médico judaico, dum representante islâmico
e dum representante da associação das Igrejas evangélicas. Além disso,
acompanhou “outros debates” e esteve na conclusão, em Lisboa, presidida pelo
Presidente da República, tendo gostado “muito das conferências, principalmente
dos peritos internacionais que nos chamaram a atenção para o facto de que,
antes de decidir, é precisa prudência e cuidado”. E lembra o espanhol Diego
Graz, “que terminou essa conferência” e que “dizia ser necessária muita
cautela, estudar, falar e levar o debate às pessoas para que sintam a
responsabilidade como sua”; “e depois virá o resto”.
No atinente à defesa da
vida do início ao fim, discorre:
“A saúde e as respostas do Governo devem
seguir na linha de prestação de cuidados continuados e paliativos com
qualidade. Eu sei que isto gasta dinheiro e envolve mais pessoal, mas isto é
dignificante do ser humano, do seu valor e da sua presença no mundo. Se estamos
numa sociedade que está a perder natalidade e onde o envelhecimento é global,
devemos mostrar que queremos vida para todos. E, se queremos, temos de lhe dar
qualidade.”.
Sobre o conflito entre a
saúde e as questões económicas, refere:
“Tive um professor na Faculdade de Medicina,
em Lisboa, o professor João Ribeiro Silva, que dizia: em nome dos dólares
pode-se estragar muita coisa do que é a vida das pessoas e alterar o que são os
princípios éticos. E os princípios éticos aqui são fundamentais para uma boa
harmonia e respeito pela pessoa, pela dignidade e pelo respeito das diferenças
na tolerância. Esse é que é o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo. Nós temos
de saber levar às pessoas de uma outra forma e de uma outra naturalidade.”.
E deixou um apontamento sobre as periferias:
“O Papa Francisco fala na proximidade e
ainda há dias comentava que a primeira periferia sou eu, tem de começar por
mim. Se não me entender como periferia não vou às dos outros. […] Ser em Igreja
um hospital de campanha é estar sempre disponível, próximo e preparado para
acolher as pessoas e para responder às suas necessidades. Haverá sempre uma
marca pessoal que o Evangelho, todos os dias, nos convida a inovar. Aí está a
beleza de Deus que é levada às pessoas, em especial aos mais frágeis, aos
doentes, aos que vivem abandonados. É aí que o hospital de campanha se
constrói. Também dentro das catedrais, mas fora delas, no Paço episcopal…”.
Não há, pois, um lugar único onde se possam situar as periferias
humanas, mas eles estão onde as pessoas sofrem a doença, a debilidade, o ultraje
à dignidade, a marginalização e o descarte. E a saída às periferias prepara-se
no sítio onde estamos – penso seu.
Quanto ao facto de as
questões de início e fim de vida poderem ser definidas mais por oportunismos
políticos do que pelo que está em causa, a defesa da vida, explicita:
“São questões complexas. Mas é ir ao
terreno, onde estão as pessoas e ver as suas necessidades e melhorá-las. O que
exige mais esforço! Por vezes, em nome da ideologia, pega-se em assuntos que
são importantes para o debate, mas outros são mais relevantes para as pessoas
viverem com dignidade.”.
Julgando que a educação sobre estas matérias é
importante, lamenta e aponta sinais positivos:
“Temos um défice de educação para a
cidadania, o que traz um défice de educação para a fé e dificuldades quando
temos de decidir. As decisões são, neste caso, de consciência, e hoje falta-nos
uma formação séria para a consciência humana e, depois, para uma consciência
iluminada pelo Evangelho, pela Boa Nova de Jesus Cristo. Este sinal hoje de
estarmos a trabalhar para destruir a vida é muito negativo e terrível na nossa
sociedade quando temos outros sinais positivos que nos devem animar e
entusiasmar.”.
***
Foi neste enquadramento que
o entrevistador induziu Dom António Luciano a abordar o estudo da ética e
bioética. E o entrevistado revela-se:
“Desde novo, na enfermagem, ainda aluno, onde
tive a sorte de me integrar num bom grupo. Na escola tive bons mestres e bons
professoras e um bom diretor de escola que nos ensinava, antes de mais, a ser
pessoas, homens e mulheres, mas também com postura. O estudo da ética e
bioética vieram iluminar-me, mas foi desde a escola de enfermagem e em Roma,
sem dúvida, e sendo professor destas matérias.”.
E continuou a autonarrativa:
“Fui professor da Escola de Enfermagem e
Saúde, a partir de outubro de 1989 até 2011, quando começou a crise (era
contratado e ficaram os que lá estavam). Mas continuei na Universidade Católica
Portuguesa, em Viseu, em cursos de gestão, de serviço social, de arquitetura e
medicina dentária e na Universidade da Beira Interior, como capelão. Integrei o
grupo de trabalho de Ética e História das Ideias em Medicina, desde a fundação
da Faculdade até ao ano passado.”.
Sobre o espaço dado à ética
nos alunos que procuram o conhecimento técnico para o exercício duma profissão,
diz que é uma boa questão e prefere dar testemunho a teorizar. Fala de mensagens
várias de antigos alunos, da enfermagem ou da medicina, e de outros que acompanhou
como capelão da UBI (Universidade da Beira Interior) e do
IPG (Instituto Politécnico da
Guarda), podendo
referir que encontrou “sempre a
preocupação pela ética”. É certo que alguns pouco se interessavam, mas avisava-os:
“Agora pode ser menos importante, mas um dia
vão lembrar-se do que disse o Padre Luciano porque isto vai aparecer-te na vida
e tens de saber responder de imediato”.
Como capelão, quando a UBI acolheu a Faculdade de
Ciências da Saúde, foi, com o Padre José Manuel Pereira de Almeida, convidado
para trabalhar com o Dr. Silvério e o Dr. Jorge, médicos no IPO de Lisboa, que
tinham um trabalho entre Ética e Filosofia, e lecionou parte de Ética e
Bioética e História das Ideias em Medicina. E assegura que a UBI apostou numa
metodologia diferente assente numa aprendizagem baseada no aluno.
***
Foi Dom António dos Santos,
então Bispo da Guarda, que o mandou para Roma estudar Teologia Moral. Fez o biénio em
Teologia Moral, na academia Alfonsiana, terminando com a tese “Ser livre em
Cristo, Projeto responsável do homem”; aproveitou todos os cursos e
conferências que podia fazer porque em Roma havia muita coisa; e frequentei um
curso de Mariologia.
Não pensa que a dimensão da
moral tenha sido esquecida no quotidiano da vida da Igreja, mas constata que não se lhe deu “o valor que se devia”. Embora procure
não fazer pregação com moralismos, entende que a desculpa dos moralismos pode significar
menor apreço pela dimensão moral dos atos e situações. Com efeito, assegura que
“não há uma vida séria que seja cristã se
não tiver uma boa base moral”. E abona esta asserção com as seguintes
palavras de Paulo VI em Fátima: “Homem
sede Homens”.
Concedendo que “tudo
assenta na capacidade, nas competências dadas a cada pessoa, de decidir”,
sublinha que “aí temos um
trabalho muito importante a fazer, a
formação da consciência”. De facto, “sou livre na medida em que me sentir
Homem livre, mas criativo, responsável, coerente, transparente, mesmo dentro da
Igreja” – diz.
Considera que “a vida moral e a vida espiritual devem
produzir o fruto da caridade para a vida do mundo”. E sobre a relação, por vez
tensa, entre a norma e a moral, responde “com uma palavra: amor” – escudado no dito de João Paulo II de que “santidade igual
a amor”. E diz:
“É isto que falta no mundo. Eu respeito o amor
que é só humano e o nosso Papa emérito Bento XVI fala muito nisso na carta
encíclica ‘Deus é Amor’. Mas, para um
crente, o amor é isso. A parte moral não se vê, mas está lá.”.
E sintetiza, dizendo que “a norma é aceitar o projeto
de Deus em nós”, o “Projeto responsável
do homem”, o título que apôs à tese de licenciatura.
***
Interpelado sobre a revolução que Francisco está a
fazer, assegura que todos “queremos colaborar para que ele a faça”, cabendo à
Igreja a primeira responsabilidade, mas o mundo também tem um contributo a dar “porque
o nosso Papa é humanista, fala para todas as pessoas, não faz aceção de pessoas”.
E acrescenta:
“Nós só teremos o tal mundo novo se vivermos
isto. Por isso, poderíamos viver mais em paz com alegria, disponibilidade e
satisfação interior, sem problemas em chegar ao final do dia para fazer um
exame de consciência.”.
Questionado se um homem dos
hospitais, da Igreja, escolhido para Bispo de Viseu, corresponde ao perfil
ideal desejado por Francisco para uma Igreja qual “hospital de campanha”,
frisa:
“Não sei. Nunca tinha pensado nisso. Eu sou um
bispo para a Igreja. Sempre fui um homem eclesial. E um padre eclesial. O
Concílio Vaticano II sempre me iluminou muito e como enfermeiro recebi muitos
dos seus ensinamentos.”.
E abona as suas credenciais com a simplicidade de que
quem aprendeu com o Padre Vitor Feytor Pinto, de quem é muito amigo e que
trabalhava muito com os enfermeiros, com o Padre Vítor Franco, natural de
Peniche, capelão nos Hospitais Civis de Lisboa, que visitou dias antes de ele morrer,
internado no Hospital de São José. Diz, com humildade, que aprendeu “muito com
esta gente: o que era o Concílio e a sua dinâmica na pastoral da saúde e dos
doentes”; que “acompanhou depois o Conselho Pontifício para a Pastoral da Saúde”;
e contactou “muita gente nestes meandros, gente com horizontes sobre isto de
ser padre e bispo num hospital de campanha”.
***
Ora, Viseu
tem o hospital de campanha aberto e o enfermeiro-bispo está a postos. Prosit!
2018.07.28 –
Louro de Carvalho
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