domingo, 29 de julho de 2018

“Quem trabalha no bloco operatório é como quem trabalha num sacrário”


A frase foi citada, em entrevista à agência Ecclesia, por Dom António Luciano, Bispo de Viseu, que diz tê-la ouvido a Dom Alberto Cosme do Amaral, então Bispo Auxiliar de Coimbra, no encerramento do seu curso de enfermagem.
Dessa longa entrevista recolhem-se sobretudo asserções ligadas ao sentido da profissão e à formação em Teologia Moral e Bioética, bem como ao ensino conexo com estas.  
O Bispo enfermeiro que viveu a infância “numa família cristã, num ambiente cristão”, conta que um dia foi um padre missionário à escola primária e, enquanto os outros miúdos se afastaram do padre, ele agarrou-se-lhe à batina.
Entretanto, provavelmente por influência duma enfermeira conterrânea, fez a formação em enfermagem em Coimbra, passando a trabalhar nos HUC (Hospitais da Universidade de Coimbra). A seguir, fez o curso de enfermagem militar e passou a Leiria, Caldas da Rainha e Lisboa, na Estrela, onde fez a formação militar, após o que foi para o Hospital Militar em Coimbra, daí tendo sido mobilizado para Moçambique (já depois da revolução abrilina) onde esteve de agosto de 1974 a abril de 1975, passando por Quelimane e Nampula, onde atendeu “muitos traumatizados de guerra e muitos mutilados”.
Diz ter servido quase sempre no bloco operatório, com exceção de uns meses depois do serviço militar em que ajudou a abrir um serviço de neurotraumatologia. Mas no tempo de seminário, trabalhou em Lisboa, no Hospital de São Francisco, e no Hospital da Nazaré, onde estavam as irmãs de São José de Cluny e aonde ia durante as férias de verão fazer um pouco de praia e ajudava; e, ainda, na Clínica de Santa Filomena, em Coimbra.
Interpelado sobre a atenção e proximidade que punha nos cuidados de saúde, confessa que teve “sempre muito contacto com as pessoas simples, humildes, pobres, doentes”, no que vinha habituado da vida em família. E conta:
Em casa dos meus pais e avós, muita gente ia ajudar no serviço. Eles tinham comércio e lavoura, iam pessoas gratuitamente que ajudavam e ali tomavam a refeição. Sempre me habituei a estar com os mais necessitados e pobres. Os meus pais deram-me essa lição.”.
Foi com o ideal cristão para enfermagem e integrou-se como aluno na associação dos enfermeiros católicos, procurando transpor discretamente “aquele espírito evangélico e cristão que levava”, inspirado enunciado evangélico “o que fizerdes ao mais pequenino dos meus irmãos, é a mim que fazeis”. Reconhecendo que isto sempre o orientou, citou a frase plasmada em epígrafe e proferida no encerramento do curso por Dom Alberto Cosme do Amaral, da qual nunca mais se esqueceu: “Quem trabalha no bloco operatório é como quem trabalha num sacrário”. E foi, depois, “trabalhar para o bloco operatório”.
Desse trabalho encarece a atenção “à pessoa doente e aos médicos”, pois, como discorre, “um bloco operatório é um lugar de muita responsabilidade, onde a vida entra e pode não sair”. Por isso, tudo tem de estar bem preparado, “tanto da parte médica como da enfermagem, técnica e do pessoal de apoio” – o que tem suscitado “sempre uma cooperação muito grande, um espírito de família”. Confessa que a preocupação por que o doente saia dali com vida se sente sobretudo quando são “grandes sinistrados, em urgências” ou numa intervenção de risco – o que impõe uma atenção redobrada. E o enfermeiro, ora bispo, pensava “que, interiormente, muitos pediriam a Deus que os ajudasse naquele trabalho tão importante da cirurgia e da medicina”.
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Sobre o momento atual que a área da saúde enfrenta, nomeadamente algumas tensões entre a classe dos enfermeiros e o Ministério da Saúde, diz que se tem apercebido dessa tensão, que significa “um momento de reviravolta também histórica na relação Ministério/profissionais”. E chama a atenção para a necessidade de, antes de mais, “se olhar para a pessoa humana e para os cuidados que se têm de dar com qualidade”, esperando “que nunca aconteça que nós não demos ao doente o que devemos dar por falta de recursos económicos”. Acredita no equilíbrio entre o Ministério e os grupos profissionais, que hão de encontrar o melhor para a saúde”, porque esta “é um bem integral”, no dizer de João Paulo II, pelo que “temos de a promover mesmo quem não tenha fé”. Por outro lado, a OMS (Organização Mundial de Saúde) “quer que a saúde seja para todos”, o que, entre nós, “é uma conquista que se fez com a nossa revolução de abril”.
Confessa não se ter debruçado sobre o tema da discussão sobre a nova Lei de Bases da Saúde, mas que procura “ouvir médicos, enfermeiros e administradores e ver o que se pode fazer”, advertindo que é precisa “muita atenção e prudência”, pois “não podemos queimar etapas, mas saber respeitar para colher bons frutos”.
Quanto à ideia de voltar ao SNS (Serviço Nacional de Saúde) das origens, “gratuito, prestado por entidades públicas e assente na carreira dos médicos”, declara:
Isso foi um bem, seria bom se realmente se fizesse isso. Mas eu, desde muito novo, aprendi uma coisa: todos os ministérios podem dar prejuízos, mas o da saúde e da educação são sempre ministérios que dão prejuízo porque investem no que é o maior bem das pessoas. Os recursos podem não ser os suficientes, mas há que correr riscos! Se tivermos a saúde e as respostas gratuitas para todos, melhor. Mas compreendo que, em nome da justiça, quem possa pagar deverá ajudar os que são os mais necessitados.”.
Diz que gosta “de ir ao médico e pagar” o que deve pagar e que prefere “pagar toda a vida para esta ou para aquela instituição e nunca vir a precisar dela”. Isto é “contribuir para os outros”; é “a justiça social, que é importante para além da justiça evangélica”, que procura viver.
Sobre um SNS que conte com a iniciativa privada e social, pensa que “é saudável” e nos ajuda “a equilibrar”, pois, “no confronto, vemos de onde vêm as melhores respostas”.
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Revela que acompanhou o debate em torno da possível legalização da eutanásia “com muita expectativa, apreciando a posição dos comunistas e tendo participado, em nome da Igreja católica num dos colóquios, o inter-religioso, com intervenção dum médico judaico, dum representante islâmico e dum representante da associação das Igrejas evangélicas. Além disso, acompanhou “outros debates” e esteve na conclusão, em Lisboa, presidida pelo Presidente da República, tendo gostado “muito das conferências, principalmente dos peritos internacionais que nos chamaram a atenção para o facto de que, antes de decidir, é precisa prudência e cuidado”. E lembra o espanhol Diego Graz, “que terminou essa conferência” e que “dizia ser necessária muita cautela, estudar, falar e levar o debate às pessoas para que sintam a responsabilidade como sua”; “e depois virá o resto”.
No atinente à defesa da vida do início ao fim, discorre:
A saúde e as respostas do Governo devem seguir na linha de prestação de cuidados continuados e paliativos com qualidade. Eu sei que isto gasta dinheiro e envolve mais pessoal, mas isto é dignificante do ser humano, do seu valor e da sua presença no mundo. Se estamos numa sociedade que está a perder natalidade e onde o envelhecimento é global, devemos mostrar que queremos vida para todos. E, se queremos, temos de lhe dar qualidade.”.
Sobre o conflito entre a saúde e as questões económicas, refere:
Tive um professor na Faculdade de Medicina, em Lisboa, o professor João Ribeiro Silva, que dizia: em nome dos dólares pode-se estragar muita coisa do que é a vida das pessoas e alterar o que são os princípios éticos. E os princípios éticos aqui são fundamentais para uma boa harmonia e respeito pela pessoa, pela dignidade e pelo respeito das diferenças na tolerância. Esse é que é o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo. Nós temos de saber levar às pessoas de uma outra forma e de uma outra naturalidade.”.
E deixou um apontamento sobre as periferias:
O Papa Francisco fala na proximidade e ainda há dias comentava que a primeira periferia sou eu, tem de começar por mim. Se não me entender como periferia não vou às dos outros. […] Ser em Igreja um hospital de campanha é estar sempre disponível, próximo e preparado para acolher as pessoas e para responder às suas necessidades. Haverá sempre uma marca pessoal que o Evangelho, todos os dias, nos convida a inovar. Aí está a beleza de Deus que é levada às pessoas, em especial aos mais frágeis, aos doentes, aos que vivem abandonados. É aí que o hospital de campanha se constrói. Também dentro das catedrais, mas fora delas, no Paço episcopal…”.
Não há, pois, um lugar único onde se possam situar as periferias humanas, mas eles estão onde as pessoas sofrem a doença, a debilidade, o ultraje à dignidade, a marginalização e o descarte. E a saída às periferias prepara-se no sítio onde estamos – penso seu.
Quanto ao facto de as questões de início e fim de vida poderem ser definidas mais por oportunismos políticos do que pelo que está em causa, a defesa da vida, explicita:
São questões complexas. Mas é ir ao terreno, onde estão as pessoas e ver as suas necessidades e melhorá-las. O que exige mais esforço! Por vezes, em nome da ideologia, pega-se em assuntos que são importantes para o debate, mas outros são mais relevantes para as pessoas viverem com dignidade.”.
Julgando que a educação sobre estas matérias é importante, lamenta e aponta sinais positivos:
Temos um défice de educação para a cidadania, o que traz um défice de educação para a fé e dificuldades quando temos de decidir. As decisões são, neste caso, de consciência, e hoje falta-nos uma formação séria para a consciência humana e, depois, para uma consciência iluminada pelo Evangelho, pela Boa Nova de Jesus Cristo. Este sinal hoje de estarmos a trabalhar para destruir a vida é muito negativo e terrível na nossa sociedade quando temos outros sinais positivos que nos devem animar e entusiasmar.”.
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Foi neste enquadramento que o entrevistador induziu Dom António Luciano a abordar o estudo da ética e bioética. E o entrevistado revela-se:
Desde novo, na enfermagem, ainda aluno, onde tive a sorte de me integrar num bom grupo. Na escola tive bons mestres e bons professoras e um bom diretor de escola que nos ensinava, antes de mais, a ser pessoas, homens e mulheres, mas também com postura. O estudo da ética e bioética vieram iluminar-me, mas foi desde a escola de enfermagem e em Roma, sem dúvida, e sendo professor destas matérias.”.
E continuou a autonarrativa:
Fui professor da Escola de Enfermagem e Saúde, a partir de outubro de 1989 até 2011, quando começou a crise (era contratado e ficaram os que lá estavam). Mas continuei na Universidade Católica Portuguesa, em Viseu, em cursos de gestão, de serviço social, de arquitetura e medicina dentária e na Universidade da Beira Interior, como capelão. Integrei o grupo de trabalho de Ética e História das Ideias em Medicina, desde a fundação da Faculdade até ao ano passado.”.
Sobre o espaço dado à ética nos alunos que procuram o conhecimento técnico para o exercício duma profissão, diz que é uma boa questão e prefere dar testemunho a teorizar. Fala de mensagens várias de antigos alunos, da enfermagem ou da medicina, e de outros que acompanhou como capelão da UBI (Universidade da Beira Interior) e do IPG (Instituto Politécnico da Guarda), podendo referir que encontrou “sempre a preocupação pela ética”. É certo que alguns pouco se interessavam, mas avisava-os:
Agora pode ser menos importante, mas um dia vão lembrar-se do que disse o Padre Luciano porque isto vai aparecer-te na vida e tens de saber responder de imediato”.
Como capelão, quando a UBI acolheu a Faculdade de Ciências da Saúde, foi, com o Padre José Manuel Pereira de Almeida, convidado para trabalhar com o Dr. Silvério e o Dr. Jorge, médicos no IPO de Lisboa, que tinham um trabalho entre Ética e Filosofia, e lecionou parte de Ética e Bioética e História das Ideias em Medicina. E assegura que a UBI apostou numa metodologia diferente assente numa aprendizagem baseada no aluno. 
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Foi Dom António dos Santos, então Bispo da Guarda, que o mandou para Roma estudar Teologia Moral. Fez o biénio em Teologia Moral, na academia Alfonsiana, terminando com a tese “Ser livre em Cristo, Projeto responsável do homem”; aproveitou todos os cursos e conferências que podia fazer porque em Roma havia muita coisa; e frequentei um curso de Mariologia.
Não pensa que a dimensão da moral tenha sido esquecida no quotidiano da vida da Igreja, mas constata que não se lhe deu “o valor que se devia”. Embora procure não fazer pregação com moralismos, entende que a desculpa dos moralismos pode significar menor apreço pela dimensão moral dos atos e situações. Com efeito, assegura que “não há uma vida séria que seja cristã se não tiver uma boa base moral”. E abona esta asserção com as seguintes palavras de Paulo VI em Fátima: “Homem sede Homens”.
Concedendo que “tudo assenta na capacidade, nas competências dadas a cada pessoa, de decidir”, sublinha que “aí temos um trabalho muito importante a fazer, a formação da consciência”. De facto, “sou livre na medida em que me sentir Homem livre, mas criativo, responsável, coerente, transparente, mesmo dentro da Igreja” – diz.
Considera que “a vida moral e a vida espiritual devem produzir o fruto da caridade para a vida do mundo”. E sobre a relação, por vez tensa, entre a norma e a moral, responde “com uma palavra: amor” – escudado no dito de João Paulo II de que “santidade igual a amor”. E diz:
É isto que falta no mundo. Eu respeito o amor que é só humano e o nosso Papa emérito Bento XVI fala muito nisso na carta encíclica ‘Deus é Amor’. Mas, para um crente, o amor é isso. A parte moral não se vê, mas está lá.”.
E sintetiza, dizendo que “a norma é aceitar o projeto de Deus em nós”, o “Projeto responsável do homem”, o título que apôs à tese de licenciatura.
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Interpelado sobre a revolução que Francisco está a fazer, assegura que todos “queremos colaborar para que ele a faça”, cabendo à Igreja a primeira responsabilidade, mas o mundo também tem um contributo a dar “porque o nosso Papa é humanista, fala para todas as pessoas, não faz aceção de pessoas”. E acrescenta:
Nós só teremos o tal mundo novo se vivermos isto. Por isso, poderíamos viver mais em paz com alegria, disponibilidade e satisfação interior, sem problemas em chegar ao final do dia para fazer um exame de consciência.”. 
Questionado se um homem dos hospitais, da Igreja, escolhido para Bispo de Viseu, corresponde ao perfil ideal desejado por Francisco para uma Igreja qual “hospital de campanha”, frisa:
Não sei. Nunca tinha pensado nisso. Eu sou um bispo para a Igreja. Sempre fui um homem eclesial. E um padre eclesial. O Concílio Vaticano II sempre me iluminou muito e como enfermeiro recebi muitos dos seus ensinamentos.”.
E abona as suas credenciais com a simplicidade de que quem aprendeu com o Padre Vitor Feytor Pinto, de quem é muito amigo e que trabalhava muito com os enfermeiros, com o Padre Vítor Franco, natural de Peniche, capelão nos Hospitais Civis de Lisboa, que visitou dias antes de ele morrer, internado no Hospital de São José. Diz, com humildade, que aprendeu “muito com esta gente: o que era o Concílio e a sua dinâmica na pastoral da saúde e dos doentes”; que “acompanhou depois o Conselho Pontifício para a Pastoral da Saúde”; e contactou “muita gente nestes meandros, gente com horizontes sobre isto de ser padre e bispo num hospital de campanha”.
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Ora, Viseu tem o hospital de campanha aberto e o enfermeiro-bispo está a postos. Prosit!
2018.07.28 – Louro de Carvalho

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