É
esta uma notável asserção de resposta de Dom José Tolentino Mendonça a Paulo
Rocha numa entrevista à agência Ecclesia
por este conduzida e hoje, dia 27, publicada no respetivo site.
O
Arcebispo eleito de Sauva, cuja ordenação episcopal vai ocorrer no próximo dia
28, sábado, pelas 16 horas, no Mosteiro dos Jerónimos, falou sobre o Arquivo Secreto do Vaticano
e a Biblioteca Apostólica, que vão ficar sob a sua direção a partir de 2 de
setembro. E enfatizou a relevância que podem ter estes serviços no Pontificado
de Francisco e das “convergências” que pretende promover num cargo onde vai começar por aprender e
depois encontrar “um fio condutor” que faça justiça à sua “riqueza
extraordinária”.
O enunciado em epígrafe tem
a ver com a hipótese levantada pelo entrevistador de este poder “ser um passo
para outros que se possam dar no Vaticano”. E Dom José Tolentino responde
“Eu darei todos os passos entre a minha casa
e a biblioteca. Esses serão os meus passos. E são esses que eu quero pensar bem
e fazer o melhor possível. […] Estamos nas mãos de Deus. O aqui e o agora são o
grande lugar onde Deus nos fala!”.
***
O
entrevistado começou por referir, sobre esta mais antiga biblioteca do mundo,
que “é um grande repositório da memória da Igreja, dos Papas, do Cristianismo e
da Humanidade”. Com
efeito, ali “estão documentos que
testemunham as culturas do Ocidente, do Oriente, tesouros da identidade dos
povos que se conservaram através dos séculos”. Assim, constitui um espólio
representativo da memória dos homens e “uma
força de futuro como nós dizemos, das raízes”.
Por isso, na ótica do Arcebispo, “o Arquivo e a Biblioteca
Apostólica são uma garantia da vitalidade e do futuro da própria Igreja”.
Quanto
ao “desafio de dar
vitalidade a algo” que, alegadamente, muitas vezes, parece estar “fechado a
sete chaves, conservando pó sobre vários volumes”, o prelado corrigiu,
aduzindo:
“No ano passado aconteceram dezenas de
empréstimos a nível mundial de obras e tesouros do arquivo e da biblioteca. Há
uma política de empréstimos e de presença que abre as portas do arquivo e da
biblioteca ao mundo inteiro. Há mais de dois mil investigadores acreditados
junto do Arquivo e da Biblioteca que, ao mais alto nível, fazem as suas investigações.
De secreto tem pouco!”.
E explicou o sentido da palavra “secreto” naquele
contexto:
“Secreto quer dizer privado. É um arquivo
que pertence à Igreja, mas claramente penso que é necessário retirar essa
parte ficcional de um arquivo que esconde segredos inacessíveis. Tem os
segredos que normalmente qualquer arquivo guarda.”.
Sobre a função das
bibliotecas, considera
uma biblioteca como “lugar de cultura, de pensamento, de diálogos, de
encontros” e “uma fronteira da ciência, onde se guarda a memória mas também onde
pulsa o desejo de futuro”, compaginando “a possibilidade de fazer
coisas, de estabelecer novos nexos e de dar uma nova vida aos textos”. Na
verdade, “os textos não têm apenas uma vida”; têm obviamente “aquele momento em
que foram escritos, mas têm muitas possibilidades escondidas em si”, de modo
que “todas as vezes que são lidos, mostrados, recontextualizados… são
possibilidades novas que se abrem”.
Em relação ao facto Mendo
Castro Henrique dizer que Tolentino Mendonça “é alguém que tem a capacidade de
projetar o futuro, olhando assim a Biblioteca”, o novel responsável pela
Biblioteca Apostólica, confessando ter sempre essa
preocupação, explicitou:
“Por um lado, penso que cabe ao
bibliotecário zelar pela integralidade daquele tesouro e fazer tudo para que
ele passe nas melhores condições às gerações futuras; e, ao mesmo tempo,
colocá-lo a falar para o presente, dando uma nova oportunidade àqueles textos,
permitindo novos encontros que sejam uma sementeira de diálogos, da construção
da paz, que é no fundo aquilo que está por detrás da finalidade da cultura”.
***
Quanto a projetos, diz que
tem sempre “projetos definidos”, mas, para já, “o projeto é aprender” e de forma progressiva, como explica:
“Quando se chega a um lugar e a um lugar que
não se conhece, o que se tem de fazer é aprender com as pessoas que lá estão,
ouvir, conhecer, perceber o que se faz, valorizar. […] Depois, pouco a pouco,
com as pessoas que lá estão, tentar encontrar um fio condutor que faça justiça
àquela riqueza extraordinária que é uma biblioteca.”.
E, referindo que uma biblioteca “é a consolidação da sabedoria de
épocas, de gerações, o sonho, as esperanças”, lembrou uma bela frase de
Paulo VI na sua visita à Biblioteca Apostólica: “A biblioteca é o lugar onde
sentimos ressoar os passos de Cristo pela história da humanidade”. E
acentuou a “fidelidade à história da humanidade, uma humanidade que Deus ama,
que o Arquivo e a Biblioteca testemunham”.
Por outro lado, entende que
o diálogo cultural através dos livros duma Biblioteca como aquela, que é “repositório da história do cristianismo”, constitui “uma responsabilidade muito grande”, pois “nos
ajuda a ser exigentes connosco próprios e com o nosso tempo e a dar elevação ao
debate público, a dar profundidade, a dar uma largueza diferente às nossas
preocupações que muitas vezes são as mais imediatistas, da agenda, do que se
tem de resolver”. De facto, “uma
biblioteca serve para dar profundidade ao nosso olhar (…) para rasgar novos horizontes, para complexificar o
que muitas vezes é reduzido de forma simplista” – constituindo “um
contributo enorme para a cultura e civilização”.
***
No atinente à reforma em curso por obra deste Papa,
considera que “assenta num mergulho nas raízes, numa profundidade de olhar que
permite analisar a história sem ficar preso àquilo que é o mais imediato ou o
mais previsível”. E explica a modo de justificação:
“Os grandes profetas inspiram-se não apenas
numa leitura dos sinais dos tempos, mas também procuram inspiração nas grandes
figuras do pensamento, nesse capital de inquietação e de sede que habitou,
antes de nós, o coração dos homens. Por isso, uma reforma nunca parte do nada,
mas coloca-se sempre numa tradição, em continuidade com uma força, um vigor que
vem detrás. No cristianismo sempre foi assim: sempre que a Igreja pensou em
reforma, foi sempre redescobrindo as suas próprias origens e o essencial da
experiência que ela realiza.”.
Reiterando que é possível
fomentar a cultura do encontro que o Papa promove, discorre:
“Numa biblioteca estão livros muito
diferentes. Estão os pontos de vista diversos. Uma Biblioteca é um laboratório
da diversidade. […] E a Biblioteca Apostólica não deixa de ser uma Biblioteca.
Tem o testemunho dos mártires, tem as grandes obras dos Papas, cada um com o
seu carisma, porque o Espírito Santo é múltiplo. É uno e, ao mesmo tempo, é
múltiplo. O sentido da comunhão não elimina a beleza da diversidade que se
complementa evangelicamente. Uma biblioteca é o lugar onde essa atmosfera de
comunhão na diversidade se respira.”.
Assegurando que esta biblioteca testemunha o que o
cristianismo é como experiência fundamental e o que tem sido historicamente,
comenta:
“Isso claramente é de uma beleza muito
grande porque, enquanto realidade espiritual, sobrenatural, a Igreja é
conduzida pelo Espírito e o Espírito tem fantasia, não nos deixa fixados numa
única forma, mas é polifónico, manifesta-se através de vozes e de profetismos
diferentes. Uma Biblioteca do cristianismo tem de fazer justiça à diversidade
que está no ADN da própria experiência cristã.”.
***
No capítulo da relação Cultura
e do desejo de encontro na Igreja Católica, situa-se no quadro do papel do Conselho Pontifício para a
Cultura e testemunha:
“O Pontifício Conselho tem, nestes anos,
elaborado um conjunto extraordinário de iniciativas que mostram esse desejo,
muito grande, de encontro. Saliento uma, que se realizou em Portugal, o Átrio
dos Gentios, onde se colocam em diálogo crentes e não crentes, sobre temas que
dizem respeito a todos. A vida não é monopólio de ninguém; e todos podemos
escutar-nos com grande ganho, uns aos outros.”.
Mais diz que este Dicastério “tem sido uma espécie de
antena, de sonda, de campo aberto para o diálogo e encontro”, o que “tem sido,
certamente, muito enriquecedor para a história da Igreja contemporânea”, a qual
“ganha
muito em ouvir, em conversar amigavelmente sobre os temas, em despertar o
encontro, possibilitá-lo, convocá-lo”, pois essa é “a sua missão”.
Sobre a liderança do setor
da Cultura com o Cardeal Gianfranco Ravasi e os grandes passos que vêm sendo
dados nessa atitude de diálogo, agora sob a égide entusiasta de Francisco,
frisa:
“No século XX, desde que foi criado, o
Conselho Pontifício para a Cultura teve sempre grandes figuras que o conduziram
de uma forma muito inspirada. Mas, nestes últimos anos, a liderança do Cardeal
Ravasi tem brilhado de facto pela criatividade, pela consistência das
propostas, pela profundidade da sabedoria que é colocada em ato, pela
capacidade de gerar encontros e de fazer notícia positiva com acontecimentos
que unem toda a gente em torno do essencial.”.
Partindo da inteligência e do incansável espírito
pastoral, do amor à Igreja, da cultura e da ciência bíblica de Ravasi, atira:
“Eu considero o Cardeal Ravasi um dos
grandes mestres do catolicismo contemporâneo e, sem dúvida, que lhe devo muito.
Comecei por conhecê-lo por biblista, e admirá-lo; e, mesmo na minha tese de
doutoramento, cito-o abundantemente, porque aprendi muito com ele. A arte de
ler os textos, a hermenêutica bíblica em diálogo com a cultura, o convívio que
tive o privilégio de ter com ele nestes anos a partir do Conselho Pontifício
para a Cultura e a amizade que se tem cimentado fazem-me perceber que a
proximidade com esta grande figura do catolicismo e da cultura representa na
minha vida um dom inestimável.”.
E sobre as relações de
futuro com o purpurado, refere
que, sendo a biblioteca “um espaço de cultura”, é de manter como atitude
fundamental o espírito de convergência com o Pontifício Conselho para a Cultura
e com os demais órgãos da Cúria Romana, porque o Arquivo e a Biblioteca estão “para
servir”.
Considera que o Pontifício Conselho para a Cultura, o
Arquivo e a Biblioteca não são os únicos polos fundamentais do diálogo cultural
no Vaticano, pois “esse é o espírito comum da Santa Sé e isso é importante para
as pessoas”. Como se desconhecem muitas vezes os nomes, as figuras, não se percebe o
“maravilhoso serviço” prestado pela Santa Sé e pela Cúria Romana.
***
Quando o entrevistador o questiona sobre a vontade
pessoal de dialogar, marcante do seu itinerário biográfico, certamente a
levá-lo a criar pontes em diversos âmbitos e com
diferentes personalidades, é perentório, mas humilde, ao discorrer:
“Penso que um cristão tem de ter uma paixão
pelas pessoas, pelos seres humanos. Verdadeiramente não há duas pessoas iguais.
Não temos de ter medo da diferença, mas temos de sentir uma sedução pelo ponto
de vista diferente, pelo que olha o mundo a partir de outro humor, outro olhar,
de outro conhecimento, porque ganhamos sempre com o encontro, com o
conhecimento.”.
Do ponto de vista pastoral e cultural, sublinha a
necessidade de “vencer as lógicas de capelinha” e de se abrir “ao que é mais
belo, à possibilidade de caminharmos juntos, através da História, e de “encontrarmos
sentido não naquilo que nos afasta e separa, mas no que nos une, que é sempre o
mais forte”, já que, apesar das diferenças, “todo o ser humano é imagem e
semelhança de Deus”; nele, “Deus reverbera a sua voz de maneira original e
irrepetível”.
Apontando a existência
ainda de um certo proselitismo religioso de parte a parte – e não só da parte
de atores da Igreja Católica, vinca a timidez e o
receio que há da parte da Igreja Católica em fomentar o diálogo, como acontece
muitas vezes, por parte das pessoas que, estando de fora, também manifestam “um
preconceito e uma timidez em relação ao que pode ser um diálogo com a
eclesialidade”. Assim, entende que há necessidade de “desmontar medos, receios
e fazer experiência” – grande ou pequena, entre pessoas, famílias, grupos e
instituições – mas que seja capaz de induzir o estabelecimento da “cultura do encontro
como repete incessantemente o Papa Francisco”.
Confessa não imaginar a sua vida sem os 20 anos de
trabalho na Universidade, na Pastoral da Cultura, na Capela do Rato, na cultura
portuguesa. Repete a frase que não é sua, mas que adota: “eu sou uma obra dos outros”.
E dá o seguinte testemunho:
“Olhando para estes 20 anos, não só porque
me procurei dar, mas porque nós crescemos com as pessoas que conhecemos, aquilo
que muda a nossa vida verdadeiramente são os encontros que temos. A
multiplicação da vida que damos aos outros, a aposta que fazemos numa relação
de confiança e de amizade é sempre fecunda. Pelo menos, em mim, deixa um
perfume inapagável.”.
Relativamente à
espiritualidade que enforma a sua vida sacerdotal, prontifica-se a dar com gosto o seu testemunho, “porque somos
diferentes e os nossos pontos de partida são diferentes e não conheço todas as
realidades”; e vinca:
“Para a minha espiritualidade tem sido muito
importante o que recebo dos outros, crentes e até dos não crentes que me
ensinam muito sobre Deus. Há agnósticos que me ensinam muito sobre Deus porque
me colocam as perguntas e eu tomo-as como uma possibilidade de caminho e até de
oração para mim.”.
E adverte para o risco de a espiritualidade que teime
em ficar fechada num determinado círculo acabar por “ficar mais pobre”. Com
efeito, na sua perspetiva, Cristo desafia-nos a “sermos Igreja em saída”, pois “envia
os discípulos várias vezes em missão; e é no envio, neste mandato do encontro,
que podemos encontrar páginas inesperadas do Evangelho”. São páginas “que estão
à nossa espera”; e “só nessa surpresa dos encontros nós podemos captá-la”.
Face ao problema que lhe é
posto sobre a ortodoxia, afasta os fantasmas visto ser o cristianismo “uma experiência essencial”, “uma verdade, mas que
não nos põe “contra os outros”. Ao invés, é “uma verdade que me abre
radicalmente aos outros” na hospitalidade e não com “uma
fronteira vigiada policialmente”. Daí conclui não haver que “ter
medo do encontro porque o amor é a grande ortodoxia”, expressa na caridade,
na hospitalidade ao outro.
Sobre o alcance da necessidade de, a partir do que desafia o Papa, a Igreja “abandonar uma moral fria e de escritório”,
vincada pelo entrevistado no 12.º Encontro Internacional das Equipas de
Nossa Senhora em Fátima, Dom José Tolentino Mendonça explicita:
“O Papa desafia-nos muito a isso, a termos,
de facto, uma moral que tenha em conta as pessoas, o serviço às pessoas, à
vida, à vida frágil, à vida nua. E que seja uma ética atravessada pela
experiência de Jesus, do Evangelho. Essa nunca pode ser apenas uma moral de
escritório. Tem de ser um caminho palmilhado. Tem de ser aquela estrada que o
pai do Filho Pródigo, o Pai Misericordioso faz, tomando ele a iniciativa de
abraçar aquele filho e reintroduzi-lo na festa da comunhão. Essa é a grande
moral cristã.”.
Confessa ter ele próprio passado por essa experiência na
pregação dos Exercícios Espirituais à Cúria Romana e ao Papa, tendo-o
impressionado “a qualidade daquelas pessoas, qualidade também orante”.
***
Por fim, aprecia o desafio que lhe foi colocado de colaborar de perto com o Papa Francisco,
reconhecendo neste desafio um privilégio muito grande, uma palavra de
ordem que, “na obediência e na fidelidade à Igreja”, sentiu dever acolher,
embora consciente das suas limitações e imperfeições. E revela que rezou a
resposta, porque tinha de “ser uma resposta em consciência e em liberdade”,
pelo que, em seu justo entender, “não houve uma hesitação”, mas “um
discernimento”.
***
Resta que a Igreja reze pelo bom desempenho episcopal
e administrativo-pastoral do novo prelado português e que ele esteja sempre
movido pela paixão pelas pessoas, cultura e diálogo!
2018.07.27 – Louro de Carvalho
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