Na alocução proferida no Consistório
Ordinário Público para a criação de novos cardeais, a 19 de novembro, comentou
uma passagem do Evangelho de Lucas (Lc 6,27-36) que integra o chamado discurso da planície e nos dá um outro rosto do
próximo.
A Lei antiga, em consonância com a
intuição primária e o sentimento natural do homem, ordenava que se amasse o
próximo na pessoa do vizinho e do compatriota (cf Lv 19,18). Ora, Jesus, depois de proclamar
as bem-aventuranças e as correspondentes ameaças (vd Lc 6,20-26), contrapõe à dita Lei o seu modo de preceituar: “mas eu digo-vos…”. A
conjunção copulativa adversativa “mas” articula esse modo com a 4.ª
bem-aventurança enunciada por Lucas, a evocar a perseguição: “Felizes
sereis, quando os homens vos odiarem, quando vos expulsarem, vos
insultarem e rejeitarem o vosso nome como infame, por causa do
Filho do Homem” (Lc 6,22).
O amor
limitado ao vizinho e ao compatriota levava positivamente à exclusão do inimigo,
que facilmente podia ser legitimadora do ódio e, sobretudo, suscitar a
vingança, ainda que nos termos da proporcionalidade. O preceito evangélico,
encontrando o exemplo no Mestre, assume uma forma singular: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, rezai
pelos que vos caluniam” (Lc 6,27-28; cf Rm
12,14; 1Cor 4,12; Jo 3,16-18).
Na verdade, o
verdadeiro amor ao próximo, a verdadeira caridade, a da entrega pessoal, sem
reservas e sem espera de retribuição, tem como modelo o Pai, que Se mostra
benigno até com os ingratos e maus. O próximo, segundo Jesus é, não apenas o
vizinho ou o amigo, mas também, e sobretudo, o desconhecido e o inimigo. Com
efeito, é de perguntar, se amamos os que nos amam, que agradecimento é que merecemos,
pois também os pecadores amam aqueles que os amam (cf Lc 6,32). Os discípulos amam
em grau heroico para serem filhos do
Altíssimo.
A ordem de Jesus
em mandar-nos falar bem daqueles que nos maldizem (desprezam, invejam ou
querem mal) entronca no
que Ele também fez, como sublinha Pedro: ultrajado, não replicava com injúrias,
atormentado, não ameaçava, mas entregava-Se àquele que julga com justiça (1Pe 2,23). Também os apóstolos, que tinham sido instados a seguir o
exemplo do Mestre – “Dei-vos exemplo
para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo 13,15) – passaram fome, sede e nudez, foram esbofeteados,
afrontados, perseguidos e difamados e tornaram-se lixo do mundo, mas
bendisseram, suportaram e consolaram (cf
1Cor 4,11-13). E, a exemplo do Senhor, que rezava, no alto da cruz,
implorando o perdão porque os seus algozes (e os
decisores da Sua morte) não sabiam o que faziam, também nós devemos rezar por
todos, até por quem nos calunia.
E Jesus, depois, fala na segunda pessoa do singular,
dirigindo-se a cada um:
“A quem te bater numa das faces,
oferece-lhe também a outra; e a quem te levar a capa, não impeças de levar
também a túnica. Dá a todo aquele
que te pede e, a quem se apoderar do que é teu, não lho reclames.” (Lc
6,29-30).
Em Mateus,
resulta mais clara a referência ao aspeto legal e verbal, enquanto em Lucas
parece ter mais em conta os aspetos físicos das ofensas (o discurso de Mateus é
mais jurídico). Por outro
lado, Lucas inverte a ordem de Mateus: da sequência túnica e capa, passa à sequência capa e túnica. Com efeito, na Palestina, a capa ou manto, utilizada
para dormir ao ar livre, é considerada muito mais importante que a túnica.
Outrora, teve um valor especial como garantia legal (vd Dt 24,10-13; Rt 3,9). Ora, embora seja lícita e recomendável a defesa própria, a
exigência ao máximo dos nossos direitos contra tudo e contra todos não é
solução evangélica. Na verdade, para quem venceu o ódio com o amor, receber uma
bofetada, ceder o manto, dar um presente ou emprestar um objeto será coisa de
bem pouca monta. E Jesus cedeu a Sua liberdade a quem O vendeu por 30 dinheiros
e tomaram-Lhe a túnica e o manto e permitiu que Lhe batessem – atitude bem
diferente da lei de Talião: olho por olho, dente por dente – que inspirava a
justiça dos povos.
Obviamente, o
Senhor não quer deixar em plena liberdade os agressores, opressores e
prepotentes, mas pretende com a espada do bem rebentar a cadeia do mal, tirar
do coração todo o rancor, que é a raiz da vingança e de todo o mal, e fazer crescer
o amor, semente do bem.
***
O Papa, no
seu comentário, frisa que, após a instituição dos Doze, Jesus descera com os
discípulos a um local plano, onde a multidão estava à espera para O escutar e
ser curada por Ele. Assim, a vocação dos Apóstolos aparece associada a este
“pôr-se a caminho” da planície, para encontrar a multidão que se sentia “atormentada”
(Lc 6,18). A escolha
deles, em vez de os induzir a ficar lá no alto, leva-os ao seio da multidão,
coloca-os no meio das suas tribulações e ansiedades. O Senhor revela que o
verdadeiro cume se alcança na planície, que nos lembra que o cume do apostolado
se situa no horizonte do convite: “Sede
misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Esta é a
norma basilar, visto que nos propõe o exemplo vivo da misericórdia (acima da
perfeição), o Pai, espelhado no Filho
primogénito, sua imagem. Os filhos do Altíssimo seguem necessariamente o
exemplo do Pai (Aquele que é verdadeiramente misericordioso), em união com o Filho primogénito. E devem ser
imagem viva dessa bondade: “Deus amou de tal modo o mundo (pecador) que por ele entregou o Seu Filho Unigénito” (Jo 3,16).
O convite a
que se refere Francisco é acompanhado por 4 imperativos ou exortações, que
implicam 4 ações que “darão forma, encarnarão e tornarão palpável o caminho do
discípulo”. São 4 etapas da mistagogia da misericórdia: “amai, fazei o
bem, abençoai e rezai”. “São
quatro ações que realizamos facilmente com os amigos, com as pessoas mais ou
menos chegadas, próximas na estima, nos gostos, nos costumes”. O problema surge
porque Jesus especifica agora com muita clareza os destinatários destas
ações, como acima foi explicitado (cf Lc 6,27-28). E não nos
vem espontaneamente a vontade de as fazer a pessoas que aparecem a nossos olhos
como o adversário ou o inimigo. Ao ver tais pessoas, a nossa atitude primária e
instintiva é desqualificá-las, desacreditá-las, amaldiçoá-las. Até as demonizamos para termos uma “santa” justificação
para nos livrarmos delas. Mas Jesus, referindo-Se ao inimigo, diz: “ama-o,
faz-lhe bem, abençoa-o e reza por ele”. Esta é a condição para sermos chamados
filhos do Altíssimo. De facto, os filhos nascem do amor dos pais. Assim, o amor
cristão faz-nos nascer como filhos de Deus, irmãos de Cristo e coerdeiros do
Reino com Jesus (cf Rm 8,17).
Na mensagem
de Jesus veiculada pela passagem do Evangelho ora comentada, esconde-se a força
e o segredo do núcleo do evangelho, de que “dimana a fonte da nossa alegria, a
força da nossa missão e o anúncio da Boa Nova”. Diz o Papa, a este respeito:
“O inimigo é alguém que devo amar. No coração de Deus, não há inimigos;
Deus tem apenas filhos. Nós erguemos muros, construímos barreiras e
classificamos as pessoas. Deus tem filhos, e não foi para Se livrar deles que
os quis. O amor de Deus tem o sabor da fidelidade às pessoas, porque é um amor
entranhado, um amor materno/paterno que não as deixa ao abandono, mesmo quando
erraram. O nosso Pai não espera pelo momento em que formos bons, para amar o
mundo; para nos amar, não espera pelo momento em que formos menos injustos, ou
mesmo perfeitos; ama-nos porque escolheu amar-nos, ama-nos porque nos deu o
estatuto de filhos.
Ou, como
refere Paulo, amou-nos mesmo quando éramos seus inimigos (cf Rm 5,10). E o amor incondicional do Pai para com todos constitui
a exigência de conversão para o nosso pobre coração, que pretende “julgar,
dividir, contrapor e condenar”.
E “saber que
Deus ama mesmo quem O rejeita é fonte de confiança e estímulo à missão”.
A vida em
sociedade é tecida por relações de interesses e reciprocidades que geram lucro,
poder e prestígio. E, nesta nossa época, desafiam-nos “problemáticas e interrogativos
fortes à escala mundial”. Ressurgem, de foram epidémica nas nossas sociedades, “a
polarização e a exclusão” como única forma de resolver conflitos. Quem vive ao
nosso lado depressa “possui a condição de desconhecido, imigrante ou refugiado”;
e “torna-se uma ameaça, adquire a condição de inimigo”, às vezes, só “porque
vem duma terra distante ou porque tem outros costumes”, porque “pensa de
maneira diferente e mesmo porque tem outra fé”. E, sem nos darmos conta, esta
lógica invade o “nosso modo de viver, agir e proceder”. Depois, “tudo e todos
começam a ter sabor de inimizade” e “as diferenças transformam-se em sintomas
de hostilidade, ameaça e violência” ou acarretam situações de precariedade e
sofrimento. Mas o Evangelho quer vir revolucionar o campo das relações humanas,
mesmo as que parecem normais, mostrando que, numa sociedade justa e fraterna,
as relações devem ser gratuitas e generosas, à semelhança do amor
misericordioso do Pai.
Em Lucas, o
Senhor prescreve que façamos aos demais homens, independentemente de quem eles
sejam, o que queremos que eles nos façam (vd Lc 6,31), o que refere de forma mais palpável o que tão
ricamente vem contido nas audazes ordens de Jesus antes explicitadas. Desta norma
basilar promanam todos os preceitos. É norma que no Antigo Testamento vem
enunciada de forma negativa: “Não faças aos
outros o que não te agrada” (Tb 4,15). Porém, o discípulo de Cristo não pode cingir-se a
não fazer o mal, deve pugnar por fazer a outrem todo o bem que para si deseja,
seguro que a medida com que medir será aquela com que será medido (vd Lc 6,33).
Segundo o
Papa, se “o vírus da polarização e da inimizade permeia as nossas maneiras de
pensar, sentir e agir”, a isto poderá obviar a riqueza e a universalidade da
Igreja palpavelmente constatável no Colégio Cardinalício, como diz Francisco:
“Vimos de terras distantes, temos costumes, cor da pele, línguas e
condições sociais distintas; pensamos de forma diferente e também celebramos a
fé com vários ritos. E nada de tudo isto nos torna inimigos; pelo contrário, é
uma das nossas maiores riquezas.”.
Assim, o
Pastor dos Pastores assegura que Jesus não cessa de descer do monte e insiste
em “inserir-nos na encruzilhada da nossa história para anunciarmos o Evangelho
da Misericórdia”. Assim, para Francisco, a missão dos cardeais insere-se na
resposta ao convite de Jesus:
“Continua a chamar-nos e a enviar-nos à ‘planície’ dos nossos povos,
continua a convidar-nos a gastar a nossa vida apoiando a esperança do nosso
povo, como sinais de reconciliação. Como Igreja, continuamos a ser convidados a
abrir os nossos olhos para vermos as feridas de tantos irmãos e irmãs privados
da sua dignidade, provados na sua dignidade.”.
E, usando a
2.ª pessoa do singular, explica a cada cardeal o cerne desta passagem do
Evangelho:
“O caminho para o céu começa na planície, no dia-a-dia da vida repartida e
compartilhada, duma vida gasta e doada: na doação diária e silenciosa do que
somos. O nosso cume é esta qualidade do amor; a nossa meta e
aspiração é procurar na planície da vida, juntamente com o povo de Deus,
transformar-nos em pessoas capazes de perdão e reconciliação.”
Finalmente,
segreda a cada um algo que não é exclusivo dos cardeais, mas peculiar ao
cristão:
“Aquilo que hoje se te pede é que guardes no teu coração e no coração da
Igreja este convite a ser misericordioso como o Pai, sabendo que, ‘se alguma
coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja
tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com
Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de
sentido e de vida’ (EG, 49).”
***
Queira Deus que todos os cristãos se tornem “cardeais”, se não do Papa, ao
menos, de Cristo e da comunidade em que se inserem, mostrando como Jesus o
rosto misericordioso do Pai.
2016.11.20 – Louro de Carvalho
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