O que parecia altamente improvável aconteceu: Donald
Trump, o multimilionário que foi estrela de um reality show, o
candidato que prometeu construir um muro na fronteira com o México, o homem que
foi acusado de mostras de racismo, xenofobia e misoginia vai liderar os
destinos da maior potência mundial e policiar o mundo. Trump venceu
Hillary Clinton, sucede a Barack Obama e será o 45.º Presidente dos EUA, a
partir do ato de posse a 20 de janeiro de 2017.
Contrariando
pesquisas e previsões, apoiadas em sondagens que maioritariamente davam
vantagem a Hillary Clinton (subestimaram-se as poucas que punham Trump à frente nas intenções de voto), o republicano nova-iorquino derrotou
a democrata, que pensava ter a via aberta para Washington, com uma vitória
expressiva, conquistando 288 lugares no colégio eleitoral. E ainda conseguiu
dar aos republicanos a maioria no Senado.
Com a vitória
do magnata ‘outsider’ marca-se o retorno dos republicanos à Casa Branca após
oito anos de poder nas mãos dos democratas, com os dois mandatos entregues pelo
eleitorado a Barack Obama.
Em 18 meses
de campanha, a candidatura de Trump foi marcada por comentários polémicos. A partir
da promessa aliciante de “fazer a América grande novamente”, conquistou votos
com ideias extremas, como a construção dum muro na fronteira com o México. Através
de discursos centrados nas frustrações e inseguranças de muitos dos americanos,
Trump tornou-se a voz da mudança para milhões deles.
Os acontecimentos
e o desempenho do candidato republicano em noite eleitoral superaram
todas as previsões dos analistas. Ao início da noite, a probabilidade de Trump vencer
as eleições era só de cerca de 30%. Mas tudo a noite modificou. O magnata,
vindo de fora da política, não só venceu a adversária democrata, como o fez com
uma larga vitória, conquistando os referidos 288 lugares no colégio eleitoral e
granjeando para os republicanos a maioria no Senado. Por outro lado, a sua
alocução de vitória esteve quase nos antípodas discursivos das intervenções de campanha.
Confidenciou que recebera um telefonema de felicitações da adversária
democrata; agradeceu a confiança dos eleitores; e assegurou que será o
Presidente de todos os norte-americanos, pedindo àqueles que não o escolheram a
ajuda “para trabalharmos juntos”. Além disso, prometeu “lidar de forma justa”
com todos os povos e nações e, no plano económico, duplicar o crescimento,
declarando que “a América não se contentará com nada que não seja o melhor”.
À medida que as projeções das televisões
norte-americanas eram divulgadas, o mapa eleitoral norte-americano ficava cada
vez mais pintado de vermelho, a cor do Partido Republicano, e as
conquistas em “Estados oscilantes” importantes, como o Ohio, a Flórida ou a
Carolina do Norte, tornaram esta pintura cada vez mais definida e viva.
Nada fazia prever este desfecho. E nem o próprio
Partido Republicano, que desde o primeiro momento mostrou resistências em
atribuir a nomeação a Trump, anteciparia um resultado como este. Apesar de nos
últimos dias a campanha de Clinton ter sido abalada por uma pneumonia e sobretudo
por um novo episódio da novela sobre os e-mails pessoais que enviou ou
recebeu enquanto secretária de Estado, os especialistas continuavam a dar uma
vantagem sólida à democrata. Todavia, as previsões baseadas em sondagens falharam.
Depois duma campanha eleitoral que ficará para a posteridade pelas piores
razões – excessiva crispação e muito pouco sumo político –, Donald Trump, com
um discurso de candidato populista sobre temas tão sensíveis como o sistema
político, a imigração, as relações económicas, a condição feminina ou a
liberdade religiosa, mostrou que as sondagens não passam de sondagens e podem
errar, sobretudo se não tiverem em conta a labilidade de opinião à medida que o
tempo corre para a reta final do evento eleitoral e o receio de, ferindo o “politicamente
correto”, os eleitores revelarem o sincero sentido de voto.
Os reflexos imediatos da vitória de Trump não se
fizeram esperar. O peso (moeda) mexicano caiu abruptamente e as bolsas
asiáticas abriram em queda. Cuba anunciou 5 dias de
exercícios militares pré-agendados para se preparar para possíveis “ações
inimigas”. O choque e a perplexidade perpassaram
o mundo inteiro.
Os resultados das eleições trazem inevitavelmente à
memória o que aconteceu com o referendo no Reino Unido sobre a União Europeia a
meio do ano. Há um certo paralelismo: nos dois casos o eleitorado, desiludido e
até zangado, escolheu a mudança – ainda que esta signifique um rumo
radicalmente diferente de tudo o que se conheceu até então. Vota-se no
desconhecido por tédio para com o conhecido.
Trump, muito além da propalada escolha do menor de
dois males, logrou convencer a América desencantada, a América que, a braços
com uma economia que perdeu o fulgor de outrora, está cansada dum sistema
político viciado. Conseguiu aliciar a América que olha para os imigrantes com
desdém, a que acredita no isolacionismo. É esta América que, dividida em várias,
é apenas uma, a que olha com esperança para Trump como um outsider,
alguém capaz de uma mudança qualquer, mesmo que não se saiba o que isso
realmente significa.
A identidade dos Estados Unidos, como a nação da
liberdade e o berço da multiculturalidade, pode ser profundamente alterada
com a política populista de Trump que promete romper com a tradição
diplomática norte-americana. O futuro do país está em suspenso, mas não só: porque
os destinos da maior potência a nível global mexem com o destino de todos,
é o futuro dos povos e o sentimento de estabilidade do mundo que
está em causa. Será que o Presidente vai manter o discurso pré-eleitoral –
demolidor da supressão da livre convivência e do comércio livre, da murificação
entre povos e grupos, da misoginia e do ataque aos adversários? Ou, ao invés,
tentará uma evolução para o discurso e políticas mais realistas, considerando
as necessidades da América e as exigências do mundo que nela deposita esperança
em intervenções positivas no concerto das nações? Irá condicionar as práticas
definidas e a definir na COP22 em curso?
***
O ano de 2016, que pensaríamos vir a recordar por fenómenos
insólitos – a guerra da Síria, a crise dos refugiados, as ondas de choque da
crise das dívidas públicas e a fragilidade do sistema bancário ou os avanços técnico-científicos
como os carros sem condutores ou a explosão da Inteligência Artificial – de momento
para o outro fica indelevelmente marcado por um evento normal em democracia:
eleições.
Está tão banalizado o recurso aos atos eleitorais e referendários
nas sociedades ocidentais que grande parte dos cidadãos já nem se dá ao
trabalho de votar: cresce a abstenção. No entanto, estas consultas populares
estão a mostrar a sua força de uma forma pouco previsível.
Fitando as últimas décadas, diz Ricardo Costa (Sic
Notícias),“podemos elencar uma série
de acontecimentos incríveis, desde descobertas científicas a mudanças geopolíticas,
de variadas revoluções tecnológicas a guerras sem fim, mas temos dificuldade em
escolher uma eleição como algo que tenha mudado o mundo”. A exceção poderá ter
sido a vitória de Obama: um Presidente afro-americano, que, pouco tempo depois
da posse, foi galardoado com o Prémio Nobel da Paz. Todavia, também essa
eleição assentava na categoria habitual da arrumação das escolhas – esquerda e direita
– que espelha o que nos habituámos a chamar de democracia ocidental representativa
e parlamentar que se tornou como que norma na ordem mundial.
Ora, o que estas eleições trouxeram de novo, como o referendo que ditou o Brexit, é que os eleitorados querem
aproveitar as eleições “como armas de sentido contrário, de protesto contra o
sistema, contra a globalização, contra a abertura ao exterior, contra tudo o
que vem de fora, contra imigrantes ou outros credos, juntando em movimentos ou
ao redor de um candidato imensas multidões de descontentes e saudosos de tempos
aparentemente mais prósperos” (escreve Ricardo Costa). É certo que esta postura eleitoral não é inteiramente nova: tem emergido
em outros atos eleitorais, nomeadamente nas eleições para o Parlamento Europeu
e em eleições regionais e legislativas na Europa, onde têm levantado a crista movimentos
extremistas ou antissistema; mas é novo o fenómeno a uma escala tão extensa e
com uma vitória retumbante.
E é o ano de 2016 que marca a entrada em pleno desta tendência no centro
eleitoral, apagando as fronteiras ideológicas e eliminando as distâncias entre os
extremos. Foi o Brexit, foi Trump;
será referendo constitucional italiano e poderá ser Marine Le Pen nas
presidenciais francesas, contra a fraqueza económica da França e o peso do
Islão, ou o voto no primeiro partido alemão de extrema-direita com sucesso desde
1945 nas eleições do ano de 2017.
Trump é, segundo Ricardo Costa, “um produto do seu próprio sucesso, de uma autoestima
sem fim que soube cavalgar todas as contradições da democracia americana” e,
opino eu, é produto igualmente do apoio que logrou concitar em torno de si e do
seu discurso, aglutinando zangados, descontentes e insatisfeitos com a
mediocridade política. O “não político” entrou na “política” a prometer sentido
de gestão, o que é impossível. Para tanto, disse uma coisa e o seu contrário, mentiu,
inventou, ofendeu, insultou e prometeu o que não cumprirá, arredando todos os potenciais
e efetivos candidatos. Percebendo uma América farta dos partidos convencionais,
quase destruiu o Partido Republicano, as suas elites e a sua máquina até os
submeter. Que irá fazer na Casa Branca? De que América grande está o Presidente
escolhido a falar?
***
Porém, há que fazer diferente de Trump, aceitar os resultados ou, como ele,
aceitar os resultados porque ganhou. Talvez seja oportuno expor aqui a posição
da Santa Sé na perspetiva do cardeal Secretário de Estado Pietro Parolin, pela
Rádio Vaticano:
“Creio que, antes de
tudo, tomamos conhecimento com respeito da vontade expressa pelo povo americano
neste exercício de democracia que, soube, foi caraterizado também por uma
grande afluência às urnas”.
E depois, o cardeal fez seus votos
ao novo presidente,
“Para que o Senhor o
ilumine e o ampare ao serviço da sua pátria naturalmente, mas também ao serviço
do bem-estar e da paz no mundo. Acredito que hoje exista a necessidade de todos
trabalharem para mudar a situação mundial, que é uma situação de grave
dilaceração, de grave conflito.”.
Por fim, como a nação americana precisa e merece, pedindo a paz e a bênção:
“God Bless America”!
2016.11.09 – Louro de Carvalho
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