Quando ouvi pela Rádio Renascença, na manhã do dia 21 de novembro, a
notícia de que o Papa Francisco assinara no dia 20, para assinalar o termo do Ano Jubilar da Misericórdia, a Carta Apostólica “Misericordia
et Misera”, não estava a perceber o alcance do título, embora compreendesse
o gesto que, aliás já estava anunciado.
Porém, com a
leitura, ainda que rápida, notei que o título se inspira na interpretação de
Santo Agostinho do episódio da adúltera, narrado por São João (cf Jo 8,1-11). Na verdade, depois que os homens que trouxeram a mulher à presença do
Mestre, porque a tinham apanhado em flagrante, se foram embora ao ouvirem Jesus
desafiar quem está sem pecado a que atire a primeira pedra, ficou apenas Jesus,
a Misericórdia, e a mulher, a mísera. Jesus não a condenou, mandou-a
em paz, recomendando que não tornasse a pecar. Pela Misericórdia, a mísera
passou a redimida.
A esta cena chama Francisco o ícone da misericórdia a indicar “o caminho que
somos chamados a percorrer no futuro”. Assim, como era de esperar, o Bispo de
Roma não quer que o Ano Santo da Misericórdia fique arredado da vida diária da
Igreja.
Ao episódio evocado agrega o Pontífice o relatado por São Lucas aquando do
banquete em casa do fariseu a cujo convite Jesus correspondeu positivamente (cf Lc 7,36-50). Uma pecadora “ungira com perfume os pés
de Jesus, banhara-lhos com as lágrimas e enxugara-lhos com os cabelos (cf 7,37-38). Ao fariseu escandalizado o Senhor atalhou: “São perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas aquele a
quem pouco se perdoa, pouco ama” (7,47).
Trata-se de dois episódios em que prevalece o perdão como “o sinal mais
visível do amor do Pai, que Jesus quis revelar em toda a sua vida” e que se
relacionam com as palavras orantes de perdão no momento de Ele ser pregado na
cruz: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem
o que fazem” (23,34).
Segundo o Papa, “a misericórdia é esta ação concreta do amor que,
perdoando, transforma e muda a vida”. E assim se manifesta “o seu mistério divino”.
“Deus é misericordioso (cf Ex 34,6), a sua misericórdia é eterna (cf Sl 136/135), de geração em geração abraça cada
pessoa que confia n’Ele e transforma-a, dando-lhe a sua própria vida”. É ação
divina que traz imensa alegria a quem dela beneficia, graças ao arrependimento
e ao amor. A misericórdia suscita alegria!
Numa cultura altamente dominada pela tecnologia – insiste Francisco – multiplicam-se
as formas de tristeza e solidão das pessoas, incluindo muitos jovens. O futuro,
refém da incerteza, não permite estabilidade. Por isso, “surgem sentimentos de
melancolia, tristeza e tédio, que podem, pouco a pouco, levar ao desespero”.
Neste contexto, evidencia-se a “necessidade de testemunhas de esperança e de
alegria verdadeira, para expulsar as quimeras que prometem uma felicidade fácil
com paraísos artificiais”. Há tanta necessidade de “reconhecer a alegria que se
revela no coração tocado pela misericórdia” que urge a guarda, como que de um
tesouro, das palavras do Apóstolo: “Alegrai-vos
sempre no Senhor!” (Fl 4,4; cf 1Ts 5,16).
E um Ano intenso, em que nos “foi concedida, em abundância, a graça da
misericórdia” qual “vento impetuoso e salutar” deve ter criado um dinamismo
perpétuo do acolhimento do olhar amoroso de Deus a replicar diariamente junto
do próximo, nomeadamente junto de quem mais sofre. Concluído o jubileu, há que
agradecer e tentar “compreender como se pode continuar, com fidelidade, alegria
e entusiasmo, a experimentar a riqueza da misericórdia divina”. As diversas
comunidades são capazes de permanecer vivas e dinâmicas na obra da nova evangelização
na medida em que a “conversão pastoral”, que estamos
chamados a viver for plasmada dia após dia pela força renovadora da
misericórdia”.
***
Então, que devemos fazer?
- Celebrar a misericórdia. Na liturgia, recorrentemente
se evoca, recebe e vive a misericórdia. Do início ao fim da Celebração
Eucarística, a misericórdia aparece no diálogo entre a assembleia orante e
o coração do Pai, que rejubila ao “derramar o seu amor misericordioso”. E o
Papa aduz vários momentos litúrgicos referentes aos tempos litúrgicos e aos
diversos momentos da Missa. Depois, reconhecendo que, em toda a vida
sacramental, nos é dada com abundância a misericórdia, releva os dois
sacramentos chamados “de cura”: a Reconciliação e a Unção
dos Enfermos – em que se evidencia
a índole parenética e realizadora da referência à misericórdia, tirando partido
da lex orandi, lex credendi. E menciona da fórmula da absolvição:
“Deus, Pai de misericórdia, que, pela morte e
ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo consigo e infundiu o Espírito
para a remissão dos pecados, te conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e
a paz”.
E da unção dos doentes:
“Por esta santa
Unção e pela sua piíssima misericórdia, o Senhor venha em teu auxílio com a
graça do Espírito Santo”.
- Escutar a Palavra de Deus.
Em cada domingo, ela é proclamada na comunidade cristã, para que o Dia do
Senhor seja iluminado pela luz que dimana do mistério pascal. Na
Celebração Eucarística, dá-se verdadeiro diálogo entre Deus e o seu povo. Deus
fala-nos como a amigos, “convive” connosco, oferecendo-nos a sua companhia
e mostrando-nos a senda da vida, e faz-se intérprete dos nossos pedidos e
preocupações tornando-se resposta fecunda a fim de podermos experimentar a sua
proximidade. Neste contexto, a homilia, devidamente cuidada, deve fazer vibrar
o coração dos crentes perante a grandeza da misericórdia.
- Cultivar a Bíblia como
a grande narração das maravilhas da Misericórdia. Deus revela-Se o Criador. O
Espírito Santo, pela palavra dos profetas e pelos escritos sapienciais, moldou
a história de Israel no sentir da proximidade terna de Deus, apesar da
infidelidade do povo. A vida e a pregação de Jesus marcam a história da
comunidade cristã, que entendeu a sua missão com base no mandato que Jesus Cristo
lhe confiou de ser instrumento permanente da misericórdia e do perdão (cf Jo 20,23). E o Apóstolo assegura: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e
adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça” (2 Tm 3,16). Por isso, Francisco sugere que cada
comunidade encontre um domingo no Ano Litúrgico para a renovação do “compromisso
em prol da difusão, conhecimento e aprofundamento da Sagrada Escritura”: o
domingo da Palavra de Deus. E recomenda a lectio divina sobre os temas da misericórdia para
verificar “a grande fecundidade que deriva do texto sagrado”, lido à luz da
tradição espiritual da Igreja, “que leva necessariamente a gestos e obras concretas de caridade”.
- Celebrar a misericórdia no sacramento da Reconciliação.
Nele temos o momento em que sentimos o abraço do Pai, que vem ao nosso encontro
para nos restituir a graça de voltarmos a ser seus filhos. Neste sacramento do
Perdão, Deus mostra a via da conversão e convida a experimentar de novo a sua
proximidade. É o perdão que pode ser obtido, começando antes de mais nada
a viver a caridade. Deus perdoa os pecados, mas também nos pede que
estejamos prontos a perdoar aos outros, como Ele nos perdoa a nós. A oração do
Senhor é clara: “Perdoai-nos as nossas
ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” (Mt 6,12; cf Lc 11,4).
- Manter o serviço dos Missionários
da Misericórdia, cuja ação pastoral evidenciou que Deus não põe
qualquer barreira a quem O procura de coração arrependido, mas vai ao encontro
de todos como um Pai. Será responsabilidade do Conselho Pontifício para a
Promoção da Nova Evangelização seguir os Missionários da Misericórdia, como
expressão direta da solicitude e proximidade do Papa e encontrar as formas mais
coerentes para o exercício deste ministério.
- Preparação cuidadosa dos sacerdotes para o ministério da Confissão,
sendo acolhedores com todos, testemunhas da
ternura paterna, solícitos na ajuda a refletir sobre o mal, claros na
apresentação dos princípios morais, disponíveis para
acompanhar os fiéis na rota penitencial e respeitar o seu passo, clarividentes
no discernimento de cada caso, generosos oferta do perdão.
- Dar ao sacramento da Reconciliação o seu lugar central na vida
cristã, aproveitando para a sua valorização a iniciativa 24 horas para o Senhor perto
do IV domingo da Quaresma.
- Concessão, a partir de agora, a todos os sacerdotes, em virtude do seu
ministério, a faculdade de absolver a todas as pessoas que incorreram no pecado do
aborto.
- Concessão de receber válida e licitamente a absolvição sacramental
dos pecados aos fiéis que frequentam as igrejas oficiadas pelos sacerdotes da Fraternidade
de São Pio X.
- Apreciar o rosto da consolação
da misericórdia. “Consolai,
consolai o meu povo” (Is 40,1): são as palavras que o profeta faz ouvir também hoje, para que chegue uma
palavra de esperança a quantos estão no sofrimento e na aflição. Porém, tal
consolação pode advir também pelo exercício do silêncio ativo, a ouvir quem
precisa de falar e a cultivar a interioridade de vida.
E, num momento particular como o nosso que, entre muitas crises, regista
também a da família, é importante fazer chegar a palavra de força consoladora
às famílias. É preciso salientar a índole de dom e vocação do matrimónio, “que
se há de viver, com a graça de Cristo, no amor generoso, fiel e paciente”. Urge
privilegiar a alegria da família, a alegria da fidelidade e a alegria pelo dom
dos filhos. E é importante saber e sentir que a experiência da misericórdia nos
capacita a encarar as dificuldades humanas com a atitude do amor de Deus, que
acolhe e acompanha.
- Reconhecer a importância do momento da morte. A
Igreja vive esta dramática passagem à luz da ressurreição de Jesus Cristo, que
abriu a estrada para a certeza da vida futura. Vive-se a experiência das exéquias como
oração cheia de esperança para a alma da pessoa falecida e para consolação dos
que sofrem a separação da pessoa amada. Porém, “há necessidade, na pastoral
animada por uma fé viva, de tornar palpável como os sinais litúrgicos e as nossas
orações são expressão da misericórdia do Senhor”.
***
Fechou-se a Porta Santa, que nos introduziu no caminho da caridade, mas a porta da misericórdia do nosso coração
permanece sempre aberta de par em par. Aprendemos que Deus Se inclina sobre nós
(cf Os 11,4), para que também nós possamos imitá-Lo
inclinando-nos sobre os irmãos. Diz-nos o Papa que “a misericórdia renova e redime,
porque é o encontro de dois corações: o de Deus que vem ao encontro do coração
do homem. Este inflama-se e o primeiro cura-o: o coração de pedra fica transformado
em coração de carne (cf Ez 36,26), capaz de amar, não obstante o seu pecado”.
É à luz do que lemos na Bíblia, do que rezamos e do que somos, elucidados
pela pregação, que somos capazes de equacionar e praticar as obras de
misericórdia em concreto (corporais e espirituais) adequando-as às necessidades de cada
lugar e de cada tempo e tornando-as estilo de vida nosso a espelhar o coração
misericordioso de Deus.
E o Papa não esquece a “verificação da grande e positiva incidência da
misericórdia como valor social”. Com efeito, “esta impele a arregaçar as mangas para restituir
dignidade a milhões de pessoas que são nossos irmãos e irmãs, chamados connosco
a construir uma “cidade fiável”. Quer o Pontífice que façamos crescer uma cultura
de misericórdia, “com base na redescoberta do encontro com os outros: uma
cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara
quando vê o sofrimento dos irmãos”. E diz-nos:
“As obras de misericórdia
são ‘artesanais’: nenhuma delas é cópia da outra; as
nossas mãos podem moldá-las de mil modos e, embora seja único o Deus que as
inspira e única a ‘matéria’ de que são feitas, ou seja, a própria misericórdia,
cada uma adquire uma forma distinta”.
Mais. No centro da misericórdia estão os pobres e ação misericordiosa
forma-se na oração:
“A cultura da misericórdia forma-se na oração assídua,
na abertura dócil à ação do Espírito, na familiaridade com a vida dos Santos e
na solidariedade concreta para com os pobres. É um convite premente para não se
equivocar onde é determinante comprometer-se. A tentação de se limitar a fazer
a ‘teoria da misericórdia’ é superada na medida em que esta se faz vida diária
de participação e partilha. (…). Não podemos esquecer-nos dos pobres: trata-se
dum convite hoje mais atual do que nunca, que se impõe pela sua evidência
evangélica.”
Abre-se à nossa frente o tempo da misericórdia. Por isso, o Papa Francisco
instituiu o Dia Mundial dos Pobres, na ocorrência do XXXIII Domingo do
Tempo Comum. Foi a intuição que sentiu à luz do “Jubileu das Pessoas Excluídas
Socialmente”, celebrado quando já se iam fechar as Portas da Misericórdia em todas
as catedrais e santuários do mundo. E diz-nos:
“Será a mais digna preparação para bem viver a
solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, que Se identificou com
os mais pequenos e os pobres e nos há de julgar sobre as obras de misericórdia
(cf Mt 25,31-46).
Será um Dia que vai ajudar as comunidades e cada batizado a refletir como a
pobreza está no âmago do Evangelho e tomar consciência de que não poderá haver
justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer à porta da nossa casa (cf Lc 16,19-21).”
Finalmente, fala-nos contemplando “os olhos misericordiosos da Santa Mãe de
Deus”, que “é a primeira que abre a procissão e nos acompanha no testemunho do
amor” e nos reúne “a todos sob a proteção do seu manto, como A quis
frequentemente representar a arte”. Por isso, confiamos “na sua ajuda materna”
e seguimos “a indicação perene que nos dá de olhar para Jesus, rosto radiante
da misericórdia de Deus”.
***
É uma carta pastoral, organizada em 22 números, assente no texto bíblico,
mormente o Evangelho, vivenciada na Liturgia. Assume tom exortativo e traça um
conjunto de atuações práticas, quer da parte do Pontífice, no atinente às
concessões, quer da parte de toda a Igreja.
Não sei se é mais importante a instituição do Dia Mundial dos Pobres ou, por exemplo, a concessão a todos os sacerdotes de
absolver todas as pessoas (não só as mulheres!) que incorreram no pecado do aborto. É a
misericórdia sobre todas as coisas. Por isso, devem ser tidas em conta todas as
indicações práticas e doutrinais que o Papa nos lega no termo deste Ano Santo.
2016.11.23 – Louro de Carvalho
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