O Vaticano promoveu, no quadro do Ano da Misericórdia, o jubileu dos
reclusos, a 6 de novembro, e o jubileu das pessoas excluídas socialmente no
passado dia 13.
Por motivos diferentes, reclusos, sem-abrigo, migrantes (muitos deles) e refugiados e população remetida a guetos,
bairros de lata, bairros problemáticos e acampamentos de massas são excluídos
pela sociedade sob pretextos vários.
Olhando o mundo com olhos cristãos, não pode deixar de ressoar nas
mentes, nas famílias e nas comunidades eclesiais a força interpelante das duas
obras de misericórdia atinentes a estas situações: visitar os encarcerados e acolher
os peregrinos. Porém, estas obras de visita ou de acolhimento não podem ser
entendidas como uma floração sobejante da vida do homem que se deixou tocar
pela fé, mas como radicalmente resultantes da força que tem a “visita” de Deus
ao seu povo – visita redentora ou libertadora e não simpática ou acomodatícia –
e com a abrangência e intensidade do que significa acolher. Não é visitar para
se mostrar, dizer palavras e aconselhar paciência ou receber dando uma sopa
quente e deixando dormir no palheiro.
A resposta às situações de emergência impõe-se em primeira linha sem ter
que filosofar muito e sem esperar por planificações estruturadas e com
estratégias eivadas de eficácia. Todavia, não podemos resignar-nos à resposta
às emergências; é preciso preparar a estruturação da mudança de encarcerado,
logo que possível, a integrado “económica e socialmente”, banindo estigmas e
preconceitos, o que implica tanto a mudança de vida do ex-recluso como a conversão
de mentalidade e de postura da parte dos elementos da sociedade considerada sã;
e é preciso pensar no acolhimento e integração dos sem-abrigo e de todos os
estigmatizados pela migração sofrida, situação de refugiado, drogado,
delinquente ou residente em gueto ou bairro problemático.
Depois, é de analisar as estruturas económicas, políticas, financeiras e
sociais que possibilitam e deixam aninhar e desenvolver estas situações de
degradação, indignidade e exploração – que podem ter sido construídas
intencionalmente na luta pelo poder, riqueza e prestígio. Ou seja, como dizia
Bruto da costa, recém-falecido, é preciso ultrapassar (não quer dizer que esta não deva continuar a ter
lugar) a caridade interpessoal e passar à caridade política, pois é neste
patamar que se constrói a justiça social que leva a não dar só por caridade o
que é devido por justiça.
Além disso, há que relacionar estas duas obras de misericórdia (que o são enquanto espelho da compaixão divina e
que levam os homens a comportamentos adequados), que são imperativo
da justiça à moda de Deus, com as demais. Com efeito, na cadeia, na rua, no
bairro ou na falta de abrigo pode abundar o abandono e a solidão, a fome e a
sede, a nudez e a falta de teto, a doença e a enfermidade, o erro e o vício. E lá
urge a palavra e a escuta, aconselhamento, correção fraterna, saciedade da fome
e da sede, cobertura da nudez, construção ou reparação da casa e sua
higienização, abertura do futuro pela via do trabalho e do amparo na doença e
na velhice.
E é necessário fazermos destas obras o critério da preparação para a
vinda do Senhor como refere o Evangelho de Mateus na terceira e última parte do
capítulo 25 (vd Mt 25,31-46) e
assumirmos a responsabilidade pelo cuidado dos irmãos para que se sintam
pessoas.
***
Mas as obras de misericórdia acima referenciadas têm a sua voz concreta
específica.
Assim o Papa, no jubileu dos reclusos, dirigiu o apelo a favor do
melhoramento das condições de vida nas prisões de todo o mundo, para que seja
respeitada plenamente a dignidade humana dos reclusos. Além disso, reafirmou a
importância da reflexão sobre a necessidade duma justiça penal que não seja exclusivamente
punitiva, mas aberta à esperança e à perspetiva de reinserção do réu na
sociedade, e submeteu à consideração das competentes Autoridades civis de cada
país a possibilidade de realizarem, neste Ano Santo da Misericórdia, “um ato de
clemência em relação aos reclusos considerados idóneos para beneficiar de tal
medida”.
Resta
saber se o Ano da Misericórdia tem eco suficiente nos Estados para que a
resposta ao apelo papal seja o mais completa possível. É óbvio que o referido
ato de clemência pode ser oferecido na modalidade de indulto ou na de amnistia.
E é sempre de ter conta a situação de cada um. Todavia, os Estados ofereceram
amnistia por motivos menos ponderosos.
Na
homilia da Missa do dia 6, Francisco ofereceu aos encarcerados a palavra da misericórdia como expressão do amor de
Deus e contrapôs à privação da liberdade, eventualmente merecida pela violação
da lei, a esperança que “não pode desfalecer”, sublinhando:
“Uma coisa é o que merecemos pelo mal realizado;
outra, diversa, é a ‘respiração’ da esperança, que não pode ser sufocada por
nada nem ninguém. O nosso coração sempre espera o bem; devemos isso à
misericórdia com que Deus vem ao nosso encontro sem nos abandonar jamais.”.
Citando a
Carta aos Romanos, em que o apóstolo Paulo fala de Deus como sendo o “Deus da
esperança” (15,13), o Papa ensina:
“Deus
espera! A sua
misericórdia não O deixa tranquilo. É como aquele Pai da parábola, que sempre espera o regresso do filho que errou (cf Lc 15,11-32). Deus não Se dá trégua nem
descanso, enquanto não encontrar a ovelha que estava perdida (cf Lc 15,5).”.
E infere:
“Ora, se Deus espera, então a
esperança não pode ser tirada a ninguém, porque é a força para continuar; é a tensão para o futuro, a fim de transformar a
vida; é um impulso para o amanhã, a fim de o amor – com
que, apesar de tudo, somos amados – se poder tornar um caminho novo... Em suma,
a esperança é a prova interior da força da misericórdia de Deus, que pede para
olhar em frente e, com a fé e o abandono n’Ele, vencer a atração para o mal e o
pecado.”.
Sabendo que
não depende do Papa nem da Igreja a concessão da liberdade, o Pontífice frisa
que ninguém pode ser impedido de desejar a liberdade e de acalentar a esperança
contra a a dureza das estruturas, a imobilidade das mentes e os preconceitos e
estigmatizações. Por outro lado, sabe que ninguém se pode considerar justo
diante de Deus e o cárcere pode ter de acolher qualquer um de nós, já que todos
erramos. E para todos está disponível o perdão de Deus, como dom de Deus e como
interpelação à capacidade de perdão da parte dos homens.
E Francisco
apontou a imagem da Virgem Maria que representa a Mãe que “sustenta nos seus
braços Jesus com uma corrente quebrada, as correntes da escravidão e da prisão”;
e implorou que Ela pouse sobre cada um o seu olhar materno; e faça brotar do
coração a força da esperança “para uma vida nova e digna de ser vivida na
liberdade plena e no serviço do próximo”.
***
Na homilia do dia 13, Francisco denunciou a esclerose
espiritual que se concentra na produção de bens e serviços e não nas pessoas a
amar. Partindo destas palavras de Malaquias, “…nascerá o sol de justiça, trazendo nos seus raios a salvação” –
dirigidas aos que têm confiança no Senhor e depõem a sua esperança n’Ele,
escolhendo-O como bem supremo da vida e recusando-se a viver só para si mesmos
e para os seus interesses –, o Pontífice colocou algumas questões:
“Onde procuro a minha segurança? No Senhor ou
noutras seguranças que desgostam a Deus? Para onde está direcionada a minha
vida? Está dirigida ao Senhor da vida ou para coisas que passam e não saciam?”.
São questões similares das que
sugere a passagem evangélica (Lc 21,5-19) do XXXIII domingo do Tempo Comum (Ano C). Com efeito, “Jesus encontra-se em Jerusalém,
para a última e mais importante página da sua vida terrena: a sua morte e
ressurreição. As pessoas estavam a falar das belezas exteriores do templo,
quando Jesus lhes disse: Dias virão em
que, de tudo o que estais a ver, não ficará pedra sobre pedra: tudo será
destruído”. Tais enunciados
suscitaram a interrogação sobre quando aquelas coisas iriam acontecer e qual o
sinal desse momento.
Obviamente, a curiosidade e o medo são coisas que preocupam
as pessoas e não o essencial. Ora, se as pessoas, que são discípulos de Cristo,
se preocuparem com o essencial, não temerão as provas mais graves e
injustas que lhes venham a acontecer. Porque o essencial é a perseverança no
bem e colocar a plena confiança em Deus. Com efeito, se as pessoas se moldarem pelo coração de Deus
manifestado em Cristo, não temerão a fornalha ardente que as atravessará como
diz Malaquias. O fogo queima a palha, mas preserva e endurece a pedra rija. Para
os pobres de si, mas ricos de Deus, brilhará o sol da sua justiça: são os
pobres em espírito, a quem Jesus promete o reino dos céus (cf Mt 5,3) e de quem Deus, pela boca do profeta Malaquias, declara: são meus (Ml 3,17). O profeta contrapõe-nos aos soberbos, aos que puseram
em autossuficiência e nos bens do mundo a segurança da vida.
E, se esperamos a “visita” de Cristo, não nos dedicamos à
futilidade, mas trabalhamos para termos a morada preparada para O receber quando bater à nossa porta; não cruzamos os braços como
faziam os Tessalonicenses. Mas trabalhamos para merecermos o alimento e o
repouso e progredimos na fé e na caridade, mostrando as razões da nossa
esperança aos demais. E, como promete o Evangelho, será pela constância da
nossa fé que salvaremos as nossas almas.
Quem segue
Jesus não escuta os profetas da desgraça, a futilidade dos horóscopos, a
pregação e a previsão que amedronta, distraindo daquilo que conta. Ele convida
a distinguir, de entre as muitas vozes que se ouvem, aquilo que vem d’Ele e o
que vem do falso espírito, e a não temer os cataclismos de cada época ou as
perseguições pela fé. Pede a perseverança no bem e a plena confiança em Deus,
que não desilude, não esquece os seus fiéis, a sua propriedade preciosa.
Assim o Papa diz-nos que Jesus nos pede que perseveremos no bem e que ponhamos “plena
confiança em Deus” porque “há duas riquezas que não desaparecem nunca” e que
têm verdadeiro “valor na vida”: “o Senhor e o próximo”; e, em particular, as
“pessoas concretas”, as pessoas excluídas:
“A
pessoa humana, colocada por Deus no cume do criado, é muitas vezes descartada,
porque são preferidas as coisas que passam. E isto é inaceitável, porque o
homem é o bem mais precioso aos olhos de Deus. E é grave que se habituem a este
descarte”.
No jubileu dos excluídos, das pessoas sem-abrigo e em situação
de precariedade, clamando que não olhar o excluído é “virar a face a Deus”, é
uma “esclerose espiritual”, Francisco afirmou:
“ É um
sintoma de esclerose espiritual quando o interesse se concentra nas coisas a
produzir, e não nas pessoas a amar. Assim, nasce a trágica contradição dos
nossos tempos: quanto mais aumentam o progresso e as possibilidades, o que é um
bem, tanto mais são aqueles que não lhe podem aceder.”
Apesar de, neste dia 13, se encerrarem as Portas da Misericórdia nas Catedrais e
nos Santuários de todo o mundo, o Santo Padre apelou a que não fechemos “os
olhos perante Deus que nos olha e perante o próximo que nos interpela” – o
“Lázaro” ou “irmão excluído” para quem deve ser direcionada a nossa atenção
deixando para trás “interesses”, “privilégios” e “poder”.
Está em jogo o dever e direito da Igreja (dos cristãos) de olhar a
humanidade que sofre e chora e, simbolicamente, fazer deste dia “O dia dos pobres”, como quer o Papa
Francisco.
2016.11.14 –
Louro de Carvalho
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