segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Não olhar o excluído é “virar a face a Deus”

O Vaticano promoveu, no quadro do Ano da Misericórdia, o jubileu dos reclusos, a 6 de novembro, e o jubileu das pessoas excluídas socialmente no passado dia 13.
Por motivos diferentes, reclusos, sem-abrigo, migrantes (muitos deles) e refugiados e população remetida a guetos, bairros de lata, bairros problemáticos e acampamentos de massas são excluídos pela sociedade sob pretextos vários.
Olhando o mundo com olhos cristãos, não pode deixar de ressoar nas mentes, nas famílias e nas comunidades eclesiais a força interpelante das duas obras de misericórdia atinentes a estas situações: visitar os encarcerados e acolher os peregrinos. Porém, estas obras de visita ou de acolhimento não podem ser entendidas como uma floração sobejante da vida do homem que se deixou tocar pela fé, mas como radicalmente resultantes da força que tem a “visita” de Deus ao seu povo – visita redentora ou libertadora e não simpática ou acomodatícia – e com a abrangência e intensidade do que significa acolher. Não é visitar para se mostrar, dizer palavras e aconselhar paciência ou receber dando uma sopa quente e deixando dormir no palheiro.
A resposta às situações de emergência impõe-se em primeira linha sem ter que filosofar muito e sem esperar por planificações estruturadas e com estratégias eivadas de eficácia. Todavia, não podemos resignar-nos à resposta às emergências; é preciso preparar a estruturação da mudança de encarcerado, logo que possível, a integrado “económica e socialmente”, banindo estigmas e preconceitos, o que implica tanto a mudança de vida do ex-recluso como a conversão de mentalidade e de postura da parte dos elementos da sociedade considerada sã; e é preciso pensar no acolhimento e integração dos sem-abrigo e de todos os estigmatizados pela migração sofrida, situação de refugiado, drogado, delinquente ou residente em gueto ou bairro problemático.
Depois, é de analisar as estruturas económicas, políticas, financeiras e sociais que possibilitam e deixam aninhar e desenvolver estas situações de degradação, indignidade e exploração – que podem ter sido construídas intencionalmente na luta pelo poder, riqueza e prestígio. Ou seja, como dizia Bruto da costa, recém-falecido, é preciso ultrapassar (não quer dizer que esta não deva continuar a ter lugar) a caridade interpessoal e passar à caridade política, pois é neste patamar que se constrói a justiça social que leva a não dar só por caridade o que é devido por justiça.
Além disso, há que relacionar estas duas obras de misericórdia (que o são enquanto espelho da compaixão divina e que levam os homens a comportamentos adequados), que são imperativo da justiça à moda de Deus, com as demais. Com efeito, na cadeia, na rua, no bairro ou na falta de abrigo pode abundar o abandono e a solidão, a fome e a sede, a nudez e a falta de teto, a doença e a enfermidade, o erro e o vício. E lá urge a palavra e a escuta, aconselhamento, correção fraterna, saciedade da fome e da sede, cobertura da nudez, construção ou reparação da casa e sua higienização, abertura do futuro pela via do trabalho e do amparo na doença e na velhice.
E é necessário fazermos destas obras o critério da preparação para a vinda do Senhor como refere o Evangelho de Mateus na terceira e última parte do capítulo 25 (vd Mt 25,31-46) e assumirmos a responsabilidade pelo cuidado dos irmãos para que se sintam pessoas.
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Mas as obras de misericórdia acima referenciadas têm a sua voz concreta específica.
Assim o Papa, no jubileu dos reclusos, dirigiu o apelo a favor do melhoramento das condições de vida nas prisões de todo o mundo, para que seja respeitada plenamente a dignidade humana dos reclusos. Além disso, reafirmou a importância da reflexão sobre a necessidade duma justiça penal que não seja exclusivamente punitiva, mas aberta à esperança e à perspetiva de reinserção do réu na sociedade, e submeteu à consideração das competentes Autoridades civis de cada país a possibilidade de realizarem, neste Ano Santo da Misericórdia, “um ato de clemência em relação aos reclusos considerados idóneos para beneficiar de tal medida”.
Resta saber se o Ano da Misericórdia tem eco suficiente nos Estados para que a resposta ao apelo papal seja o mais completa possível. É óbvio que o referido ato de clemência pode ser oferecido na modalidade de indulto ou na de amnistia. E é sempre de ter conta a situação de cada um. Todavia, os Estados ofereceram amnistia por motivos menos ponderosos.
Na homilia da Missa do dia 6, Francisco ofereceu aos encarcerados a palavra da misericórdia como expressão do amor de Deus e contrapôs à privação da liberdade, eventualmente merecida pela violação da lei, a esperança que “não pode desfalecer”, sublinhando:
“Uma coisa é o que merecemos pelo mal realizado; outra, diversa, é a ‘respiração’ da esperança, que não pode ser sufocada por nada nem ninguém. O nosso coração sempre espera o bem; devemos isso à misericórdia com que Deus vem ao nosso encontro sem nos abandonar jamais.”.
Citando a Carta aos Romanos, em que o apóstolo Paulo fala de Deus como sendo o “Deus da esperança” (15,13), o Papa ensina: 
Deus espera! A sua misericórdia não O deixa tranquilo. É como aquele Pai da parábola, que sempre espera o regresso do filho que errou (cf Lc 15,11-32). Deus não Se dá trégua nem descanso, enquanto não encontrar a ovelha que estava perdida (cf Lc 15,5).”.
E infere:
“Ora, se Deus espera, então a esperança não pode ser tirada a ninguém, porque é a força para continuar; é a tensão para o futuro, a fim de transformar a vida; é um impulso para o amanhã, a fim de o amor – com que, apesar de tudo, somos amados – se poder tornar um caminho novo... Em suma, a esperança é a prova interior da força da misericórdia de Deus, que pede para olhar em frente e, com a fé e o abandono n’Ele, vencer a atração para o mal e o pecado.”.
Sabendo que não depende do Papa nem da Igreja a concessão da liberdade, o Pontífice frisa que ninguém pode ser impedido de desejar a liberdade e de acalentar a esperança contra a a dureza das estruturas, a imobilidade das mentes e os preconceitos e estigmatizações. Por outro lado, sabe que ninguém se pode considerar justo diante de Deus e o cárcere pode ter de acolher qualquer um de nós, já que todos erramos. E para todos está disponível o perdão de Deus, como dom de Deus e como interpelação à capacidade de perdão da parte dos homens. 
E Francisco apontou a imagem da Virgem Maria que representa a Mãe que “sustenta nos seus braços Jesus com uma corrente quebrada, as correntes da escravidão e da prisão”; e implorou que Ela pouse sobre cada um o seu olhar materno; e faça brotar do coração a força da esperança “para uma vida nova e digna de ser vivida na liberdade plena e no serviço do próximo”.
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Na homilia do dia 13, Francisco denunciou a esclerose espiritual que se concentra na produção de bens e serviços e não nas pessoas a amar. Partindo destas palavras de Malaquias, “…nascerá o sol de justiça, trazendo nos seus raios a salvação” – dirigidas aos que têm confiança no Senhor e depõem a sua esperança n’Ele, escolhendo-O como bem supremo da vida e recusando-se a viver só para si mesmos e para os seus interesses –, o Pontífice colocou algumas questões:
Onde procuro a minha segurança? No Senhor ou noutras seguranças que desgostam a Deus? Para onde está direcionada a minha vida? Está dirigida ao Senhor da vida ou para coisas que passam e não saciam?”.
São questões similares das que sugere a passagem  evangélica (Lc 21,5-19) do XXXIII domingo do Tempo Comum (Ano C). Com efeito, “Jesus encontra-se em Jerusalém, para a última e mais importante página da sua vida terrena: a sua morte e ressurreição. As pessoas estavam a falar das belezas exteriores do templo, quando Jesus lhes disse: Dias virão em que, de tudo o que estais a ver, não ficará pedra sobre pedra: tudo será destruído. Tais enunciados suscitaram a interrogação sobre quando aquelas coisas iriam acontecer e qual o sinal desse momento. 
Obviamente, a curiosidade e o medo são coisas que preocupam as pessoas e não o essencial. Ora, se as pessoas, que são discípulos de Cristo, se preocuparem com o essencial, não temerão as provas mais graves e injustas que lhes venham a acontecer. Porque o essencial é a perseverança no bem e colocar a plena confiança em Deus. Com efeito, se as pessoas se moldarem pelo coração de Deus manifestado em Cristo, não temerão a fornalha ardente que as atravessará como diz Malaquias. O fogo queima a palha, mas preserva e endurece a pedra rija. Para os pobres de si, mas ricos de Deus, brilhará o sol da sua justiça: são os pobres em espírito, a quem Jesus promete o reino dos céus (cf Mt 5,3) e de quem Deus, pela boca do profeta Malaquias, declara: são meus (Ml 3,17). O profeta contrapõe-nos aos soberbos, aos que puseram em autossuficiência e nos bens do mundo a segurança da vida.
E, se esperamos a “visita” de Cristo, não nos dedicamos à futilidade, mas trabalhamos para termos a morada preparada para O receber quando bater à nossa porta; não cruzamos os braços como faziam os Tessalonicenses. Mas trabalhamos para merecermos o alimento e o repouso e progredimos na fé e na caridade, mostrando as razões da nossa esperança aos demais. E, como promete o Evangelho, será pela constância da nossa fé que salvaremos as nossas almas.
Quem segue Jesus não escuta os profetas da desgraça, a futilidade dos horóscopos, a pregação e a previsão que amedronta, distraindo daquilo que conta. Ele convida a distinguir, de entre as muitas vozes que se ouvem, aquilo que vem d’Ele e o que vem do falso espírito, e a não temer os cataclismos de cada época ou as perseguições pela fé. Pede a perseverança no bem e a plena confiança em Deus, que não desilude, não esquece os seus fiéis, a sua propriedade preciosa.
Assim o Papa diz-nos que Jesus nos pede que perseveremos no bem e que ponhamos “plena confiança em Deus” porque “há duas riquezas que não desaparecem nunca” e que têm verdadeiro “valor na vida”: “o Senhor e o próximo”; e, em particular, as “pessoas concretas”, as pessoas excluídas:
“A pessoa humana, colocada por Deus no cume do criado, é muitas vezes descartada, porque são preferidas as coisas que passam. E isto é inaceitável, porque o homem é o bem mais precioso aos olhos de Deus. E é grave que se habituem a este descarte”.
No jubileu dos excluídos, das pessoas sem-abrigo e em situação de precariedade, clamando que não olhar o excluído é “virar a face a Deus”, é uma “esclerose espiritual”, Francisco afirmou:
“ É um sintoma de esclerose espiritual quando o interesse se concentra nas coisas a produzir, e não nas pessoas a amar. Assim, nasce a trágica contradição dos nossos tempos: quanto mais aumentam o progresso e as possibilidades, o que é um bem, tanto mais são aqueles que não lhe podem aceder.”
Apesar de, neste dia 13, se encerrarem as Portas da Misericórdia nas Catedrais e nos Santuários de todo o mundo, o Santo Padre apelou a que não fechemos “os olhos perante Deus que nos olha e perante o próximo que nos interpela” – o “Lázaro” ou “irmão excluído” para quem deve ser direcionada a nossa atenção deixando para trás “interesses”, “privilégios” e “poder”.
Está em jogo o dever e direito da Igreja (dos cristãos) de olhar a humanidade que sofre e chora e, simbolicamente, fazer deste dia “O dia dos pobres”, como quer o Papa Francisco.

2016.11.14 – Louro de Carvalho

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