A
razão desta reflexão em torno do tema enunciado em epígrafe resulta da pergunta
que me foi lançada, há uns meses, por alma bem intencionada se eu concordava
com a celebração da missa por várias intenções. E eu respondi que, sem ter em
conta o que esteja estabelecido pela disciplina eclesiástica, que é normativa,
nada há a opor a tal prática, dado que ninguém é capaz de esgotar o valor
infinito da missa.
A
seguir, veio outra questão, se cada pessoa deve pagar como se a intenção da
missa fosse só indicada por si ou se podia ser no sistema de cada um pagar o
que entendesse. E a minha resposta foi análoga à anterior, no sentido de que
tudo depende do que estiver estabelecido disciplinarmente. Com efeito, do ponto
de vista teológico e doutrinal, nada há a opor a uma a outra forma de agir.
Porém,
senti-me na obrigação de esclarecer que a missa – enquanto renovação do
sacrifício de Cristo na cruz do Calvário, já por nós entregue na ceia pascal, e
banquete dos filhos de Deus e assembleia de irmãos que a ela levam as
preocupações e as ofertas de si próprios e de alguns dos seus bens e dela
recebem o penhor de vida eterna e o sustento espiritual para as tarefas da vida
– é de valor infinito, pelo que incalculável. Assim, ninguém paga a missa.
Mesmo
aquilo que se aprendeu de que uma parte do fruto da missa é para o sacerdote
celebrante, outra para o fiel que oferece o estipêndio e outra pelas intenções
da Igreja, além do muito mais que se possa acrescentar, não é compatível com o
caráter infinito e imensurável da missa. Só é justificável esta pretensa
distribuição para efeitos de arrumação metodológica.
E
eu explicitei que, face às necessidades de a Igreja prover à promoção do culto,
à condigna sustentação do clero e à ajuda aos pobres, é natural que as
autoridades eclesiais tenham encarado a participação na missa também pelo lado
do estipêndio que o fiel cristão possa dar a pretexto da celebração da missa,
agregando a esta oferta alguma ou algumas das suas intenções particulares. Isto
obviamente não significa paga pela missa, compra/venda ou coisa parecida, nem
monopólio ou posição dominante sobre a missa – longe o agouro das sociedades
comerciais ou das antigas regras de companhia. Aliás, quem estipula taxas tem
referido – talvez muitos não o notem – refere que não se deve deixar de celebrar
missa por quem não pode pagar.
Ora,
se ninguém contesta o facto de uma pessoa solicitar a celebração da missa por
uma ou por várias intenções, também não se pode contestar, do ponto de vista
doutrinal, a possibilidade de a missa ser pedida por uma ou por várias pessoas
– singulares ou coletivas –, cada uma com uma ou várias intenções, e oferecer
cada uma um estipêndio fixo ou voluntário.
***
É
de recordar que os cristãos se organizaram de vários modos ao longo da História
da Igreja: desde o sistema comunitário descrito no Livro dos Atos dos Apóstolos
(At
2, 42-47 e 4,32-37: tinham tudo em comum e entre eles não havia necessitados) ao sistema das coletas (At
24,17; Rm 15,25-27; 1Cor 16,1-4; 2Cor, caps 8-9; Gl 2,10) e ao sistema estipendiário,
hoje predominante.
Em
muitas comunidades, quando as dádivas eram em produtos da terra ou dos
rebanhos, a Igreja recebia o dízimo, que era destinado ao culto, aos servidores
da pregação e do altar e aos pobres. E mantém-se a preocupação da Igreja pela
promoção do culto e pela construção e manutenção dos templos, com a sustentação
condigna do clero e com a colmatação das necessidades dos pobres. O diácono Lourenço
aprestou os pobres como o tesouro da Igreja.
O
estipêndio pela missa, como pelos outros serviços eclesiais, enquadra-se
naquela tríplice preocupação e não no escopo de pagar – o que às vezes parece
acontecer, dada a constante mercantilização da vida. E há valores que revertem
para o próprio ministro da Igreja, outros para a paróquia ou comunidade local,
outros para a cúria diocesana, outros para a cúria romana e outros
necessariamente para as necessidades que as Igrejas entendem dever colmatar.
Não se trata de simonia, que seria a compra (por dinheiro e
outras mercês) de
cargos eclesiásticos, bens espirituais e priorização no acesso aos sacramentos
e aos sacramentais.
***
Mas
em relação à missa ainda se coloca outra questão: E aquelas pessoas de quem
ninguém se lembra? É certo que boas almas rezam e mandam celebrar missas por
aqueles que estão abandonados das orações dos crentes, mas também nos ensinavam
que estes ficariam cobertos pelo tesouro espiritual da Igreja. E não devemos
esquecer que a missa não é aplicável apenas por defuntos, mas por vivos e
defuntos; e não é somente pelas pessoas em si, mas também por suas intenções e
em ação de graças por benefícios concedidos.
Pode
perguntar-se: E a obrigação de justiça da parte de quem recebe o estipêndio
para com quem o confiou? De facto, a doutrina canónica fala da relação de
justiça do sacerdote que recebeu dinheiros para missas. Porém, deve esclarecer-se
que essa é a obrigação de quem recebeu dinheiro para com a pessoa que lho
entregou. Não abrange o fruto da missa.
Gosto
de comparar, embora de forma meio inadequada, o que se passa com o fruto da
missa – e a obrigação de contribuir – com o que se passa, por exemplo com os
impostos e os prémios de seguro. Cada cidadão paga os impostos que lhe são
determinados pelo poder, obviamente conforme a capitação ou o consumo. E todos
têm acesso por igual aos benefícios públicos, pelo menos de acordo com as suas
necessidades e justas aspirações, como cada segurado paga o prémio estabelecido
e recebe conforme o sinistro ou risco coberto, independentemente da totalidade
do montante que tenha acumulado na entrega de valores premiais.
Em
relação à missa, cada um deve dispor do que pode em oferta, em associação
orante e serviçal, na certeza de que Deus a todos e a tudo provê, sem deixar
ninguém nem nada de fora. Com efeito, o amor, a sabedoria e a misericórdia da
parte de Deus são inclusivos. Convém que não sejam as pessoas a cavar a
exclusão.
***
Também,
neste aspeto, vale a pena reparar no princípio da “lex credendi, lex orandi”. As orações eucarísticas – bastando
mencionar a Oração Eucarística I (ou Cânone Romano), a Oração Eucarística II, a
Oração Eucarística III e a Oração Eucarística IV. Todas nos dizem por quem se
celebra a missa.
A
Oração Eucarística I indica: “Nós
Vo-la [esta
oblação pura e santa]
oferecemos pela Vossa Igreja santa e
católica”. E pede-se a “paz” e a “unidade”. Depois, vem a comemoração (ou
memento) dos vivos – podem nomear-se alguns – em que se
fala “de todos os que estão aqui
presentes”…, que “Vos oferecem este sacrifico de louvor por si e por todos os seus, pela redenção das suas
almas, para a salvação e segurança que esperam”. Vem, a seguir a comemoração
dos santos, especificando-se alguns, mas rematando, “e de todos os santos”. Ainda antes da consagração, se refere “a oblação
que nós, vossos servos, com toda a
vossa família Vos apresentamos”. Já depois da consagração, pede-se que a
oferenda (agora o Corpo e Sangue de Cristo) seja apresentada no altar
celeste, “para que todos nós,
participando deste altar, pela comunhão do Corpo e Sangue do vosso Filho,
alcancemos a plenitude das bênçãos e graças do Céu”. A seguir, temos a
comemoração (ou memento) dos defuntos: podem
especificar-se uns tantos (os das intenções pedidas), mas, pede-se, “Concedei-lhes,
Senhor a eles e a todos os que descansam
em Cristo o lugar da consolação e da paz”.
A
Oração Eucarística II é menos pródiga
nestas referências, mas traz o essencial:
“Lembrai-Vos,
Senhor, da Vossa Igreja, dispersa por toda a terra, e tornai-a perfeita na
caridade em comunhão com o Papa N…, com o nosso Bispo N… e todos aqueles que
estão ao serviço do vosso povo”.
Pode
fazer-se menção daquele(s) defunto(s) por quem se tem a intenção especial de
celebrar. Todavia, a seguir, rezamos pelos (outros) “nossos irmãos que adormeceram
na esperançada ressurreição e de todos
aqueles que na vossa misericórdia partiram deste mundo”. E pedimos ao Senhor
que “tenha misericórdia de nós” e nos dê “a graça de participar na vida eterna”
na companhia de “todos os santos”. É a
comunhão com a Igreja celeste.
A
Oração Eucarística III tem uma
formulação parecida com a anterior, mas suplica:
“Por este sacrifício de
reconciliação, dai, Senhor, a salvação e
a paz ao mundo inteiro; confirmai a vossa
Igreja na fé e na caridade, ao longo da sua peregrinação na terra, com o
vosso servo o Papa N…, o nosso Bispo N… e todos os Bispos e ministros
sagrados, e todo o povo por Vós
redimido. Atendei benignamente às preces desta família, que Vos dignastes
reunir na vossa presença.”.
Depois,
roga-se:
“Reconduzi a Vós, Pai de
misericórdia, todos os vossos filhos
dispersos”.
E a comemoração dos defuntos é como segue:
“Lembrai-Vos dos nossos irmãos
defuntos e de todos os que morreram
na vossa amizade. Acolhei-os com bondade no vosso reino, onde também nós
esperamos ser recebidos, para vivermos com eles eternamente na vossa glória,
por Jesus Cristo, nosso Senhor.”
E
a Oração Eucarística IV é um
autêntico memorial da História da Salvação e da ação de Jesus Cristo na Ceia,
na Cruz, na descida à mansão dos mortos, na ressurreição e ascensão. E,
“enquanto esperamos a sua vinda gloriosa, nós Vos oferecemos o seu Corpo e Sangue, o sacrifício do vosso agrado e de
salvação para todo o mundo”. É isto
que se reza.
E temos a
menção de “todos aqueles por quem oferecemos este sacrifício”:
“O vosso servo o Papa N…, o
nosso Bispo N… e todos os Bispos e ministros sagrados, os fiéis que Vos
apresentam as suas ofertas, os membros desta assembleia, todo o vosso povo santo e todos
aqueles que Vos procuram de coração sincero”.
Depois, vem a pequena comemoração dos defuntos, sem a
hipótese de especificação:
“Lembrai-Vos também dos nossos
irmãos que adormeceram na paz de Cristo e de todos os defuntos cuja fé só Vós conhecestes”.
Finalmente, vem
a comunhão com a Igreja celeste e com todo o universo – na globalização
cósmica:
“E a todos nós, vossos filhos,
concedei, Pai de misericórdia, a graça de alcançarmos a herança do Céu, com a
Virgem Santa Maria, Mãe de Deus, São José, seu esposo, os Apóstolos e todos os Santos, para que, no vosso
reino, com a criação inteira liberta do pecado e da morte, cantemos eternamente
a vossa glória por Jesus Cristo, nosso Senhor”.
***
Por mais voltas que se dê e por mais e melhores
estipêndios que se estabeleçam, ninguém nem nada fica excluído da Celebração
Eucarística. É a reunião de todos os filhos de Deus com as circunstâncias que
os rodeiam. É a oferta do povo santo, em nome de toda a criação aleluiática.
O valor da missa é, pois, infinito e imensurável.
Importa aderir, aceitar e celebrar para glória do nome de Deus e para bem de
toda a santa Igreja ao redor da qual se espera que todos venham a reunir-se!
2016.11.25 – Louro
de Carvalho
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