A
pretexto da declaração de que não tem de promover ou travar líderes partidários
ou de que não deve “imiscuir-se
na vida dos partidos”, Marcelo Rebelo de Sousa reivindica para si, na qualidade de Presidente
da República, o papel de árbitro. Porém, só árbitro é que Marcelo não
é.
Já em tempos tentei demonstrar que o nosso ordenamento
constitucional confere ao Chefe de Estado funções bem diferentes das do
árbitro, dado o seu poder efetivo, embora não como agente operacional da produção
legislativa ou da atividade executiva, nem mesmo da função judicial, a não ser
na concessão de indultos sob proposta do membro do Governo responsável pela
área da Justiça.
Por outro lado, o árbitro tem o papel da avaliação das
condições para que se efetue o jogo, manda iniciar e finalizar o jogo. Acompanha
o jogo, mas não intervém nele. Limita-se a assinalar falta ou golo, canto ou
saída da linha e a determinar punições no imediato e a fazer relatório para
eventuais sanções a posteriori.
O
Presidente não consegue suficiência para colocar por si um Governo na plenitude
de funções nem é totalmente livre para nomear o Primeiro-Ministro e obviamente
os ministros e secretários de Estado. Pode demitir o Primeiro-Ministro apenas
quando estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas,
moldura situacional demasiado mal definida (Quem sabe dizer o que é isso?). No entanto, dispõe do poder de dissolução do
Parlamento, exceto em determinadas circunstâncias claramente delimitadas no
texto constitucional. De resto, goza de múltiplos e enormes poderes. A questão
reside na interpretação que possa ou não fazer da sua amplitude.
***
Ora, a
interpretação que o atual Presidente faz dos poderes não é a de que são de
árbitro, mas de quem intervém assiduamente no jogo de Estado, de quem o comenta
e de quem se comenta a si mesmo. Isso não é de árbitro. Ademais, não se limita
a representar o Estado e a garantir a sua unidade, mas quer ser o seu
porta-voz.
Fala a
propósito dos diversos acontecimentos por mais comezinhos que sejam: basta que
cheguem ao seu conhecimento. Explica as razões dum veto político lançado sobre
um decreto, como explica as razões por que faz a promulgação de muitos decretos
do Parlamento e do Governo. Adianta-se a soluções legislativas, “prevendo” o
sentido do desfecho do debate ou avisando que falará depois. Não se tornou
neutral na questão da restrição dos contratos de associação entre o Ministério
da Educação e as escolas privadas e forçou um regime transitório no decreto de
avaliação dos alunos do ensino básico. Comentou com bastante amplitude o
orçamento para 2016 e faz bom augúrio do orçamento que vem aí.
E agora
acabou por destacar a “boa” estabilidade política, social e rigor financeiro
vividos em 2016, admitindo mesmo que uma solução governativa baseada no centrão
político não seria clarificadora.
Chegou a
dizer que o Primeiro-Ministro era irritantemente otimista; e agora confessa que
é “inevitável” que existam momentos de discórdia com o Chefe do Governo, porque
o Presidente da República está acima dos partidos e acima dos debates entre
governo e oposição, e garante:
“Para o país é bom que o governo seja forte, mas também é muito bom que a
oposição seja forte, agora quem vai liderar qualquer dos partidos no futuro é
uma decisão dos partidos, a pior coisa que o Presidente da República pode fazer
é estar a imiscuir-se na vida dos partidos, tem de ter uma posição arbitral”.
Acha um
disparate discutir o comando da oposição antes das eleições legislativas,
referindo que seria um erro o PSD abrir uma guerra de sucessão neste momento.
Como
porta-voz e comentador do Estado afirmou:
“É bom que haja na área do governo uma estabilidade que permita aos
portugueses acreditar que aquilo que lhes é prometido vai ser cumprido e é bom
que haja da parte da oposição uma estabilização de propostas políticas”.
E, frisou
que é “bom” para o país que, nos próximos tempos, haja sinais que permitam
converter em crescimento económico o que foi até agora o cumprimento dos
compromissos europeus, o rigor financeiro e a compensação dos setores sociais
que haviam sido sacrificados – está visto que mostra acreditar na solução
governativa encontrada e crê na sua durabilidade. E defende que “temos de criar
mais crescimento para que esta fórmula económica seja mais sustentável”.
***
Não esqueceremos que o Presidente se empenhou nas questões da
Banca, nomeadamente no caso do BPI, no verão passado, e na problemática
atinente à CGD. A propósito do banco público, teve uma postura contraditória,
visto que promulgou o decreto-lei n.º 39/2016, de 28 de julho, com a declaração
de alguma acrimónia sobre vencimentos, mas, a 4 de novembro, proclamou Urbi et Orbi a obrigação de os
administradores entregarem ao TC as declarações de rendimentos e de património,
com base na alegada não revogação da lei de 1983 sobre a matéria. Não se limitou
a um juízo político, mas vestiu a toga de jurisconsulto e de supremo doutor do
Estado, o que veio a congraçar a benevolência de todos os partidos com assento
parlamentar e do próprio TC, que até ao momento não se sentia estimulado.
Mais recentemente, assegurou que a tarefa mais importante dum
sistema financeiro que se quer de boa saúde e solidez sistémica no país é a
capitalização da Caixa Geral de Depósitos, mas acusou as sucessivas
dificuldades que surgem mesmo quando menos se espera, o que a posteriori parece que significava a
leitura que já fazia da crise levantada pelos administradores da CGD que
eclodiu a seguir. Todavia, Marcelo não é inocente nesta matéria, pois, na sua clara
declaração do princípio de novembro, refere:
“…considera-se que a obrigação de declaração
vincula a administração da Caixa Geral de Depósitos. Compete, porém, ao
Tribunal Constitucional decidir sobre a questão em causa. Caso uma sua
interpretação, diversa da enunciada, vier a prevalecer, sempre poderá a
Assembleia da República clarificar o sentido legal também por via legislativa.”
Como é que agora administradores do banco público vêm acusar
o Parlamento, ao qual Marcelo deu uma força inequívoca, de haver tomado uma
postura demagógica e populista ao determinar, com efeitos já neste mandato, que
os administradores da CGD são obrigados à prestação das preditas declarações? É
óbvio que o Parlamento é soberano e só o Presidente da República o pode
contrariar posteriormente pelo mecanismo do veto político ou pelo da submissão
do diploma à fiscalização abstrata da constitucionalidade. É certo que, por
norma, a lei não tem efeitos retroativos, mas, quando o legislador o estabelece
claramente, esses tornam-se incontornáveis.
***
Salva-se, no entanto, a declaração muito curta de Marcelo sobre
a Caixa Geral de Depósitos, em que não mostrou preocupação com a saída de
António Domingues, no sentido de que “as pessoas
mudam, mas as instituições fortes permanecem”. Resta saber se a CGD é e está
mesmo forte quando uma agência de rating
está a querer classificá-la num patamar de lixo. Porém, Marcelo sublinhou a
existência de “um plano”, de “um projeto que vai ser executado”. E, nesse
aspeto, foi acompanhado pelo Primeiro-Ministro, que garantiu que o novo
presidente da administração da Caixa será conhecido ainda esta semana.
Ora, o
Presidente da República, em vez do fardamento de árbitro, veio agora revestir o
de vate da Pátria e de animador da causa. Neste sentido, ao advertir que
responsáveis da ‘troika’ se encontram neste momento em Portugal, pediu que se
pense estruturalmente, a médio prazo, em vez de conjunturalmente, declarando:
“Vivemos, não direi o dia a dia, ou a semana a semana, mas certamente o mês
a mês, com dois orçamentos aprovados em menos de um ano, com o acompanhamento
constante por parte da União Europeia, quando não mesmo da ‘troika’ – que já se
encontra novamente em Portugal”.
Já no
domingo, dia 27, ao falar do sistema financeiro, defendeu que é uma “prioridade
nacional” estabilizá-lo e consolidá-lo, apelando à determinação para que a
economia possa mesmo garantir crescimento e emprego. Declarou-o no seu discurso
no Palácio da Bolsa, no Porto, onde presidiu à entrega do Prémio Manuel António
da Mota, que este ano distinguiu a “Raríssimas
– Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras”.
No entanto,
assumiu que a criação dessa estabilização e consolidação do sistema financeiro
português era um processo complicado. E reconheceu que “é difícil”, apontando
que quando menos se espera, “surgem obstáculos”. Porém, avisou que o importa é
que no dia seguinte é preciso “acordar e continuar o caminho, com determinação,
sabendo exatamente que é uma prioridade nacional”, porque “não há economia que
possa garantir crescimento e emprego e, por isso, justiça social, senão tiver
uma capacidade de financiamento que sustente esses imperativos e que passa pelo
sistema financeiro”.
***
Um político
que faz este tipo tão intenso e diversificado de discurso e que intervém tantas
vezes e de muitos modos será árbitro, mas não é só árbitro. Aliás, não me
parece que se sujeitasse à condição de árbitro neutral como eles têm de tentar
ser. A sua postura neutral é bem mais política e ideológica do que aparenta.
Árbitro, sim, mas não como qualquer árbitro, árbitro que pretende controlar o
jogo e falar dele antes que outros falem.
2016.11.29 – Louro de Carvalho
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