quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O árbitro que o é e não o é

A pretexto da declaração de que não tem de promover ou travar líderes partidários ou de que não deve “imiscuir-se na vida dos partidos”, Marcelo Rebelo de Sousa reivindica para si, na qualidade de Presidente da República, o papel de árbitro. Porém, só árbitro é que Marcelo não é. 
Já em tempos tentei demonstrar que o nosso ordenamento constitucional confere ao Chefe de Estado funções bem diferentes das do árbitro, dado o seu poder efetivo, embora não como agente operacional da produção legislativa ou da atividade executiva, nem mesmo da função judicial, a não ser na concessão de indultos sob proposta do membro do Governo responsável pela área da Justiça.
Por outro lado, o árbitro tem o papel da avaliação das condições para que se efetue o jogo, manda iniciar e finalizar o jogo. Acompanha o jogo, mas não intervém nele. Limita-se a assinalar falta ou golo, canto ou saída da linha e a determinar punições no imediato e a fazer relatório para eventuais sanções a posteriori.  
O Presidente não consegue suficiência para colocar por si um Governo na plenitude de funções nem é totalmente livre para nomear o Primeiro-Ministro e obviamente os ministros e secretários de Estado. Pode demitir o Primeiro-Ministro apenas quando estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas, moldura situacional demasiado mal definida (Quem sabe dizer o que é isso?). No entanto, dispõe do poder de dissolução do Parlamento, exceto em determinadas circunstâncias claramente delimitadas no texto constitucional. De resto, goza de múltiplos e enormes poderes. A questão reside na interpretação que possa ou não fazer da sua amplitude.
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Ora, a interpretação que o atual Presidente faz dos poderes não é a de que são de árbitro, mas de quem intervém assiduamente no jogo de Estado, de quem o comenta e de quem se comenta a si mesmo. Isso não é de árbitro. Ademais, não se limita a representar o Estado e a garantir a sua unidade, mas quer ser o seu porta-voz.
Fala a propósito dos diversos acontecimentos por mais comezinhos que sejam: basta que cheguem ao seu conhecimento. Explica as razões dum veto político lançado sobre um decreto, como explica as razões por que faz a promulgação de muitos decretos do Parlamento e do Governo. Adianta-se a soluções legislativas, “prevendo” o sentido do desfecho do debate ou avisando que falará depois. Não se tornou neutral na questão da restrição dos contratos de associação entre o Ministério da Educação e as escolas privadas e forçou um regime transitório no decreto de avaliação dos alunos do ensino básico. Comentou com bastante amplitude o orçamento para 2016 e faz bom augúrio do orçamento que vem aí.
E agora acabou por destacar a “boa” estabilidade política, social e rigor financeiro vividos em 2016, admitindo mesmo que uma solução governativa baseada no centrão político não seria clarificadora.
Chegou a dizer que o Primeiro-Ministro era irritantemente otimista; e agora confessa que é “inevitável” que existam momentos de discórdia com o Chefe do Governo, porque o Presidente da República está acima dos partidos e acima dos debates entre governo e oposição, e garante:
“Para o país é bom que o governo seja forte, mas também é muito bom que a oposição seja forte, agora quem vai liderar qualquer dos partidos no futuro é uma decisão dos partidos, a pior coisa que o Presidente da República pode fazer é estar a imiscuir-se na vida dos partidos, tem de ter uma posição arbitral”.
Acha um disparate discutir o comando da oposição antes das eleições legislativas, referindo que seria um erro o PSD abrir uma guerra de sucessão neste momento.
Como porta-voz e comentador do Estado afirmou:
“É bom que haja na área do governo uma estabilidade que permita aos portugueses acreditar que aquilo que lhes é prometido vai ser cumprido e é bom que haja da parte da oposição uma estabilização de propostas políticas”.
E, frisou que é “bom” para o país que, nos próximos tempos, haja sinais que permitam converter em crescimento económico o que foi até agora o cumprimento dos compromissos europeus, o rigor financeiro e a compensação dos setores sociais que haviam sido sacrificados – está visto que mostra acreditar na solução governativa encontrada e crê na sua durabilidade. E defende que “temos de criar mais crescimento para que esta fórmula económica seja mais sustentável”.
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Não esqueceremos que o Presidente se empenhou nas questões da Banca, nomeadamente no caso do BPI, no verão passado, e na problemática atinente à CGD. A propósito do banco público, teve uma postura contraditória, visto que promulgou o decreto-lei n.º 39/2016, de 28 de julho, com a declaração de alguma acrimónia sobre vencimentos, mas, a 4 de novembro, proclamou Urbi et Orbi a obrigação de os administradores entregarem ao TC as declarações de rendimentos e de património, com base na alegada não revogação da lei de 1983 sobre a matéria. Não se limitou a um juízo político, mas vestiu a toga de jurisconsulto e de supremo doutor do Estado, o que veio a congraçar a benevolência de todos os partidos com assento parlamentar e do próprio TC, que até ao momento não se sentia estimulado.
Mais recentemente, assegurou que a tarefa mais importante dum sistema financeiro que se quer de boa saúde e solidez sistémica no país é a capitalização da Caixa Geral de Depósitos, mas acusou as sucessivas dificuldades que surgem mesmo quando menos se espera, o que a posteriori parece que significava a leitura que já fazia da crise levantada pelos administradores da CGD que eclodiu a seguir. Todavia, Marcelo não é inocente nesta matéria, pois, na sua clara declaração do princípio de novembro, refere:
“…considera-se que a obrigação de declaração vincula a administração da Caixa Geral de Depósitos. Compete, porém, ao Tribunal Constitucional decidir sobre a questão em causa. Caso uma sua interpretação, diversa da enunciada, vier a prevalecer, sempre poderá a Assembleia da República clarificar o sentido legal também por via legislativa.”
Como é que agora administradores do banco público vêm acusar o Parlamento, ao qual Marcelo deu uma força inequívoca, de haver tomado uma postura demagógica e populista ao determinar, com efeitos já neste mandato, que os administradores da CGD são obrigados à prestação das preditas declarações? É óbvio que o Parlamento é soberano e só o Presidente da República o pode contrariar posteriormente pelo mecanismo do veto político ou pelo da submissão do diploma à fiscalização abstrata da constitucionalidade. É certo que, por norma, a lei não tem efeitos retroativos, mas, quando o legislador o estabelece claramente, esses tornam-se incontornáveis.   
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Salva-se, no entanto, a declaração muito curta de Marcelo sobre a Caixa Geral de Depósitos, em que não mostrou preocupação com a saída de António Domingues, no sentido de que “as pessoas mudam, mas as instituições fortes permanecem”. Resta saber se a CGD é e está mesmo forte quando uma agência de rating está a querer classificá-la num patamar de lixo. Porém, Marcelo sublinhou a existência de “um plano”, de “um projeto que vai ser executado”. E, nesse aspeto, foi acompanhado pelo Primeiro-Ministro, que garantiu que o novo presidente da administração da Caixa será conhecido ainda esta semana.
Ora, o Presidente da República, em vez do fardamento de árbitro, veio agora revestir o de vate da Pátria e de animador da causa. Neste sentido, ao advertir que responsáveis da ‘troika’ se encontram neste momento em Portugal, pediu que se pense estruturalmente, a médio prazo, em vez de conjunturalmente, declarando:
“Vivemos, não direi o dia a dia, ou a semana a semana, mas certamente o mês a mês, com dois orçamentos aprovados em menos de um ano, com o acompanhamento constante por parte da União Europeia, quando não mesmo da ‘troika’ – que já se encontra novamente em Portugal”.
Já no domingo, dia 27, ao falar do sistema financeiro, defendeu que é uma “prioridade nacional” estabilizá-lo e consolidá-lo, apelando à determinação para que a economia possa mesmo garantir crescimento e emprego. Declarou-o no seu discurso no Palácio da Bolsa, no Porto, onde presidiu à entrega do Prémio Manuel António da Mota, que este ano distinguiu a “Raríssimas – Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras”.
No entanto, assumiu que a criação dessa estabilização e consolidação do sistema financeiro português era um processo complicado. E reconheceu que “é difícil”, apontando que quando menos se espera, “surgem obstáculos”. Porém, avisou que o importa é que no dia seguinte é preciso “acordar e continuar o caminho, com determinação, sabendo exatamente que é uma prioridade nacional”, porque “não há economia que possa garantir crescimento e emprego e, por isso, justiça social, senão tiver uma capacidade de financiamento que sustente esses imperativos e que passa pelo sistema financeiro”.
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Um político que faz este tipo tão intenso e diversificado de discurso e que intervém tantas vezes e de muitos modos será árbitro, mas não é só árbitro. Aliás, não me parece que se sujeitasse à condição de árbitro neutral como eles têm de tentar ser. A sua postura neutral é bem mais política e ideológica do que aparenta. Árbitro, sim, mas não como qualquer árbitro, árbitro que pretende controlar o jogo e falar dele antes que outros falem.

2016.11.29 – Louro de Carvalho  

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