segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Deus dos vivos e não de mortos – a ressurreição

O Evangelho do XXXII Domingo do Tempo Comum no Ano C (Lc 20,27-40; cf Mt 22,23-33; Mc 12, 18-37) relata-nos o episódio dos saduceus que foram interrogar Jesus em torno de hipotéticas consequências da lei do levirato (Dt 25,5-10; Gn 38,8) levada ao extremo. A lei, citada livremente pelos evangelistas e que tinha em vista a conservação da família, prescrevia que, se hum homem morresse e deixasse a mulher sem filhos, o irmão devia desposar a viúva e o filho que dela tivesse ficaria com o nome do defunto.
A esta perícopa Lancellotti e Bocalli designam-na por “A ressurreição e o Deus dos vivos”. E asseguram que as diversas facções do judaísmo se vão revezando diante de Jesus a ver se o apanham em alguma contradição. Desta vez, foram os saduceus que partem da sua crítica radical em face da ressurreição dos mortos e são reduzidos ao silêncio.
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Os saduceus – no tempo de Cristo e no Novo Testamento – eram aristocratas, pretensos descendentes da família sacerdotal. Tendiam a ser ricos e a ocupar cargos poderosos, incluindo o cargo de primeiro sacerdote e de sumo sacerdote, bem como a maioria dos 70 lugares do conselho regente chamado Sinédrio.
Tentavam manter a paz com base no seguimento das decisões de Roma (Israel nesta época estava sob o controlo romano) e pareciam estar mais preocupados com a política do que com o aspeto religioso. E, porque estavam sempre a acomodar os gostos de Roma e porque eram ricos e da classe alta, não se relacionavam bem com o homem comum nem o homem comum os tinha em alta estima. O homem comum relacionava-se melhor com os fariseus. E, embora os saduceus ocupassem a maioria dos lugares no Sinédrio, sabe-se que o mais das vezes tinham de concordar com as ideias da minoria farisaica, já que os fariseus eram os mais populares com o povo.
No campo religioso, os saduceus eram doutrinalmente mais conservadores que os fariseus e professavam uma espécie de deísmo prematuro, moldando a vida segundo o princípio epicureu de ignorância da vida futura. Encaravam a tradição oral como tendo igual autoridade à da Palavra de Deus escrita, enquanto os fariseus consideravam apenas a Palavra Escrita como sendo de Deus.
Assim, os saduceus, que relevavam a tradição oral: eram extremamente autossuficientes, a ponto de negarem o envolvimento de Deus na vida quotidiana; negavam qualquer forma de ressurreição dos mortos (cf Mt 22,23-33; Mc 12,18-27; At 23,8); negavam qualquer vida depois da morte, defendendo a crença de que a alma perecia com a morte e acreditando que não há qualquer penalidade ou recompensa depois da vida terrena; e negavam a existência de um mundo espiritual, ou seja, de anjos e demónios (At 23,8; cf Flávio José, Guerra Judaica, 2,8,14).
Porque mais preocupado com a política do que com a religião, o grupo dos saduceus não se preocupou com Jesus até as coisas chegarem ao ponto de Jesus vir chamar a atenção indesejada de Roma. Foi então que os fariseus e saduceus se uniram e planearam a morte de Cristo (Jo 11,48-50; Mc 14,53; Mc 15,1). Outras passagens que mencionam os saduceus são Atos 4,1 e Atos 5,17. E os saduceus foram implicados na morte de Tiago pelo historiador Flávio Josefo (cf At 12,1-2).
Este grupo deixou de existir em 70 dC. Dado que a sua existência se baseava nos seus laços políticos e sacerdotais, quando Roma destruiu Jerusalém e o Templo os saduceus também foram eliminados.
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Agora é a vez de os saduceus, através duma historieta quase ridícula (aliás contos similares com vista à negação da vida do além são recorrentes na literatura rabínica), darem ensejo a Jesus para proclamar uma verdade fundamental para a fé cristã: a ressurreição será para todos os seres humanos e Cristo é as primícias da nossa ressurreição.
A argumentação de Jesus é de tipo rabínico, pois, afirmando que Deus é o Deus de Abraão de Isaac e de Jacob e dos demais patriarcas, conclui-se pela imortalidade destes, mas não necessariamente da sua ressurreição in corpore. Esta vê-se melhor no livro de Job (Jb 19,25-27a):
“Eu sei que o meu redentor vive e prevalecerá, por fim, sobre o pó da terra; e, depois de a minha pele se des­prender da carne, na minha própria carne verei a Deus. Eu mesmo o verei, os meus olhos e não outros o hão de contemplar!”.
Também os sete irmãos Macabeus (vd 2 Mac 7,1-2.9-14), apoiados e animados pela mãe, se deixaram morrer às mãos de Antíoco, rei da Síria, crentes de que o Deus vivo, o rei do universo “há de ressuscitar-nos para a vida eterna, se morrermos fiéis às suas leis” (v. 9) e “o Criador do mundo, autor do nasci­mento do homem e origem de todas as coisas, restituir-vos-á, na sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora vos sacrificardes a vós mesmos por amor das suas leis” (v.23). E Judas Macabeu (vd 2 Mac 12,43-46) “mandou fa­zer uma co­leta, recolhendo cerca de duas mil dracmas, que enviou a Jeru­sa­lém, para que se oferecesse um sacrifício pelo pecado, agindo digna e santa­mente ao pensar na ressurreição; por­que, se não esperasse que os mor­tos ressus­citariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles (vv. 43-44). 
No fundo, está em evidência a certeza de que Deus não revoga os seus dons e o estado em que os mortos se encontram no sheol é transitório e de exceção. A esta asserção se deve acrescentar o conceito semita de vida humana, que não se concebe sem o corpo. É assim este dom irrevogável de Deus ainda que passe pelo estado de exceção no sheol.
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Fazendo um pouco de exegese:
Moisés nos prescreveu (v. 28): os saduceus, escudando-se na Lei de Moisés, aplicada a um caso improvável – sete irmãos a casarem sucessivamente com a mesma mulher por morte do predecessor – pensavam ter encontrado um argumento irrefutável para a sua tese como se fosse palavra divina. A ordem de que o irmão do defunto devia casar com a viúva para lhe dar prole não podia ter uma aplicação interminável, como sugere o emprego do número sete, na utilização da expressão sete irmãos, um número de totalidade.
Sete irmãos (v. 29) – Este é efetivamente um número simbólico, como se disse, aqui propositadamente hiperbólico para ridicularizar a verdade da ressurreição.
De quem será mulher/esposa? (v. 33) – O judaísmo, em geral, concebia a ressurreição como um retorno à vida com todas as exigências temporais, como a alimentação e a sexualidade mesmo na dimensão procriativa.
Os filhos deste século casam-se (v. 34) – O termo grego aiôn (no hebraico, ‘olâm) não indica o período de 100 anos solares, mas uma época da história religiosa ou o curso presente da vida dos homens, enfatizando o aspeto pior desta vida, representado pelos interesses materiais e pelas injustiças que muitas vezes ela comporta. Os homens que não têm outras perspetivas para lá das atuais são chamados filhos deste século ou deste mundo. Além disso a expressão “Os filhos deste século” pode considerar-se em contraste com a expressão “Os filhos de Deus” (v.36), que o são por serem “filhos da ressurreição” e não por alusão a Gn 6,2-3 (“Os filhos de Deus, vendo que as filhas dos homens eram belas, escolheram entre elas as que bem quiseram, para mulheres”).
Ter parte naquele século (v. 35) é um segmento que significa participar na vida divina. Os homens e as mulheres que têm parte naquele século não se dão nem são dados em casamento, são e vivem como os anjos, isentos de quaisquer necessidades materiais. A esta situação escatológica assemelha-se a situação daqueles e daquelas que positivamente renunciam ao matrimónio por amor a Jesus (Lc 14,26; 18,29), por virtude da vocação específica que inclui a aspiração à plenitude da vida celeste. Depois, os felizes contemplantes de Deus jamais poderão morrer. Serão totalmente livres como filhos de Deus e da ressurreição, pois a vida que Jesus lhes outorga torna-os filhos de Deus para sempre.
O próprio Moisés dá a entender (v. 37). Também Jesus tira o seu argumento da Escritura para demonstrar algo mais que a simples possibilidade da ressurreição: os homens, embora mortos para este século (e apesar de a ressurreição final ainda não se ter dado), estão sempre vivos diante de Deus. O argumento de Jesus parte duma asserção bíblica, prossegue com uma verdade religiosa evidente, a de que Deus é Deus dos vivos e não dos mortos, e termina com a asserção da realidade da ressurreição, pois “para Ele todos vivem”, expressa no episódio das sarça ardente (vd Ex 3,6), onde se relata a manifestação de Deus a Moisés no monte Horeb.
Todos vivem para Ele (v. 38). Esta é uma adição de Lucas em relação a Marcos e Mateus que aplica as ideias de Jesus sobre a vida da ressurreição a todo aquele que está vivo já na Igreja. Por consequência, os cristãos não devem preocupar-se em excesso pela parusia (o fim dos tempos). Anote-se que esta referência à vida já aparece em Lucas como decorrente do cumprimento dos mandamentos a introduzir a parábola do bom samaritano – “faz isso e viverás” (vd Lc 10,25-28). E Mateus (Mt 22,34-40) e Marcos (Mc 12,28-34) colocam o mandamento do amor a seguir ao episódio da discussão com os saduceus sobre a ressurreição.
Alguns escribas (v. 39), obviamente fariseus, contrários aos saduceus e firmes detentores da ressurreição apoiam a argumentação do Mestre. A sua frase de aprovação, “falaste muito bem”, não exprime, na perspetiva lucana, apenas a satisfação dos escribas, mas também e sobretudo a fé da Igreja em seu Mestre e Senhor ressuscitado (vd At 17,18). 
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O facto da ressurreição é atestado por Paulo, porquanto nós agora gememos nesta tenda ansiando por nos revestirmos daquela habitação celeste, obra de Deus, não construída por mãos humanas, de modo que o que é mortal seja absorvido pela vida (cf “Cor 5,1-10). Por outro lado, “o amor de Cristo nos absorve completamente, ao pensar que um só morreu por todos e, portanto, todos morreram. Ele morreu por todos, a fim de que, os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2Cor 14-15; cf Fl 1,20-23; Gl2,19).
Paulo fala da ressurreição de Cristo:
“Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas e depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma só vez, a maior parte dos quais ainda vive, enquanto alguns já morreram. Depois, apareceu a Tiago e, a seguir, a todos os Apóstolos. Em último lugar, apareceu-me também a mim, como a um aborto.” (1 Cor 1,3-8).
Depois, fala da ressurreição dos mortos:
“Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como é que alguns de entre vós dizem que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. Mas se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã é também a vossa fé. (…).Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram. Porque, assim como por um homem veio a morte, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. E, como todos morrem em Adão, assim em Cristo todos voltarão a receber a vida. Mas cada um na sua própria ordem: primeiro, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda. Depois, será o fim: quando Ele entregar o reino a Deus e Pai, depois de ter destruído todo o principado, toda a dominação e poder.” (1Cor 1,12-14.20-24). 
E, segundo o Evangelho de João, Jesus, que ressuscitara a filha de Jairo (Mc 5,35-43), o filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17) e ia ressuscitar Lázaro (Jo 11,1-44), afirma-se como a própria ressurreição e a vida para benefício de todos os crentes, ao responder a Marta que prontamente confessou a fé na ressurreição no último dia:
“Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá para sempre.” (Jo 11,25-26).
Com razão, “a multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum. Com grande poder, os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e uma grande graça operava em todos eles.” (At 4,32-33).
E nós, no símbolo dos apóstolos, clamamos: “Ressuscitou ao terceiro dia” e “[Creio] na ressurreição da carne e na vida eterna”. E, no símbolo niceno-constantinoplitano, proclamamos: Ressuscitou ao terceiro dia conforme as Escrituras” e “espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir”.

2016.11.07 – Louro de Carvalho

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