O
Evangelho do XXXII Domingo do Tempo Comum no Ano C (Lc 20,27-40; cf Mt
22,23-33; Mc 12, 18-37)
relata-nos o episódio dos saduceus que foram interrogar Jesus em torno de
hipotéticas consequências da lei do levirato (Dt 25,5-10; Gn
38,8) levada ao
extremo. A lei, citada livremente pelos evangelistas e que tinha em vista a
conservação da família, prescrevia que, se hum homem morresse e deixasse a
mulher sem filhos, o irmão devia desposar a viúva e o filho que dela tivesse
ficaria com o nome do defunto.
A
esta perícopa Lancellotti e Bocalli designam-na por “A ressurreição e o Deus dos vivos”. E asseguram que as diversas
facções do judaísmo se vão revezando diante de Jesus a ver se o apanham em
alguma contradição. Desta vez, foram os saduceus que partem da sua crítica
radical em face da ressurreição dos mortos e são reduzidos ao silêncio.
***
Os saduceus – no tempo de Cristo e no Novo Testamento – eram
aristocratas, pretensos descendentes da família sacerdotal. Tendiam a ser ricos
e a ocupar cargos poderosos, incluindo o cargo de primeiro sacerdote e de sumo
sacerdote, bem como a maioria dos 70 lugares do conselho regente chamado Sinédrio.
Tentavam manter a paz com base no seguimento das decisões de
Roma (Israel nesta época estava sob o controlo romano) e pareciam
estar mais preocupados com a política do que com o aspeto religioso. E, porque
estavam sempre a acomodar os gostos de Roma e porque eram ricos e da classe
alta, não se relacionavam bem com o homem comum nem o homem comum os tinha em alta
estima. O homem comum relacionava-se melhor com os fariseus. E, embora os
saduceus ocupassem a maioria dos lugares no Sinédrio, sabe-se que o mais das
vezes tinham de concordar com as ideias da minoria farisaica, já que os fariseus
eram os mais populares com o povo.
No
campo religioso, os saduceus eram doutrinalmente
mais conservadores que os fariseus e professavam uma espécie de deísmo
prematuro, moldando a vida segundo o princípio epicureu de ignorância da vida
futura. Encaravam a tradição oral como tendo igual autoridade à da Palavra de
Deus escrita, enquanto os fariseus consideravam apenas a Palavra Escrita como
sendo de Deus.
Assim, os saduceus, que relevavam a tradição oral: eram
extremamente autossuficientes, a ponto de negarem o envolvimento de Deus na
vida quotidiana; negavam qualquer forma de ressurreição dos mortos (cf Mt 22,23-33; Mc 12,18-27; At 23,8); negavam
qualquer vida depois da morte, defendendo a crença de que a alma perecia com a
morte e acreditando que não há qualquer penalidade ou recompensa depois da vida
terrena; e negavam a existência de um mundo espiritual, ou seja, de anjos e
demónios (At 23,8; cf Flávio José, Guerra Judaica, 2,8,14).
Porque mais preocupado com a política do que com a religião,
o grupo dos saduceus não se preocupou com Jesus até as coisas chegarem ao ponto
de Jesus vir chamar a atenção indesejada de Roma. Foi então que os fariseus e
saduceus se uniram e planearam a morte de Cristo (Jo 11,48-50; Mc 14,53; Mc 15,1). Outras passagens que mencionam
os saduceus são Atos 4,1 e Atos 5,17. E os saduceus foram implicados na morte
de Tiago pelo historiador Flávio Josefo (cf At
12,1-2).
Este
grupo deixou de existir em 70 dC. Dado que a sua
existência se baseava nos seus laços políticos e sacerdotais, quando Roma
destruiu Jerusalém e o Templo os saduceus também foram eliminados.
***
Agora é a vez de os saduceus, através duma historieta quase
ridícula (aliás contos similares com vista à
negação da vida do além são recorrentes na literatura rabínica), darem ensejo
a Jesus para proclamar uma verdade fundamental para a fé cristã: a ressurreição
será para todos os seres humanos e Cristo é as primícias da nossa ressurreição.
A argumentação de Jesus é de tipo rabínico, pois, afirmando
que Deus é o Deus de Abraão de Isaac e de Jacob e dos demais patriarcas,
conclui-se pela imortalidade destes, mas não necessariamente da sua
ressurreição in corpore. Esta vê-se
melhor no livro de Job (Jb 19,25-27a):
“Eu sei que o meu redentor
vive e prevalecerá, por fim, sobre o pó da terra; e, depois de a minha pele se
desprender da carne, na minha própria carne verei a Deus. Eu mesmo o verei, os
meus olhos e não outros o hão de contemplar!”.
Também
os sete irmãos Macabeus (vd 2 Mac 7,1-2.9-14), apoiados e animados pela mãe, se deixaram
morrer às mãos de Antíoco, rei da Síria, crentes de que o Deus vivo, o rei do
universo “há de ressuscitar-nos para a vida
eterna, se morrermos fiéis às suas leis” (v. 9) e “o
Criador do mundo, autor do nascimento do homem e origem de todas as coisas,
restituir-vos-á, na sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora
vos sacrificardes a vós mesmos por amor das suas leis” (v.23). E Judas Macabeu
(vd 2 Mac 12,43-46) “mandou fazer uma coleta, recolhendo cerca de
duas mil dracmas, que enviou a Jerusalém, para que se oferecesse um
sacrifício pelo pecado, agindo digna e santamente ao pensar na ressurreição; porque, se não esperasse que os mortos
ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles (vv. 43-44).
No fundo, está em
evidência a certeza de que Deus não revoga os seus dons e o estado em que os
mortos se encontram no sheol é
transitório e de exceção. A esta asserção se deve acrescentar o conceito semita
de vida humana, que não se concebe sem o corpo. É assim este dom irrevogável de
Deus ainda que passe pelo estado de exceção no sheol.
***
Fazendo um pouco de exegese:
Moisés nos
prescreveu (v. 28): os saduceus,
escudando-se na Lei de Moisés, aplicada a um caso improvável – sete irmãos a
casarem sucessivamente com a mesma mulher por morte do predecessor – pensavam
ter encontrado um argumento irrefutável para a sua tese como se fosse palavra
divina. A ordem de que o irmão do defunto devia casar com a viúva para lhe dar
prole não podia ter uma aplicação interminável, como sugere o emprego do número
sete, na utilização da expressão sete irmãos, um número de totalidade.
Sete irmãos (v. 29) – Este é efetivamente um número simbólico, como se disse,
aqui propositadamente hiperbólico para ridicularizar a verdade da ressurreição.
De quem será mulher/esposa? (v. 33) – O judaísmo, em geral, concebia a ressurreição como um
retorno à vida com todas as exigências temporais, como a alimentação e a
sexualidade mesmo na dimensão procriativa.
Os filhos deste
século casam-se (v. 34) – O termo grego aiôn
(no hebraico, ‘olâm) não indica o
período de 100 anos solares, mas uma época da história religiosa ou o curso
presente da vida dos homens, enfatizando o aspeto pior desta vida, representado
pelos interesses materiais e pelas injustiças que muitas vezes ela comporta. Os
homens que não têm outras perspetivas para lá das atuais são chamados filhos
deste século ou deste mundo. Além disso a expressão “Os filhos deste século” pode considerar-se em contraste com a
expressão “Os filhos de Deus” (v.36), que o são por serem “filhos da ressurreição” e não por
alusão a Gn 6,2-3 (“Os filhos
de Deus, vendo que as filhas dos homens eram belas, escolheram entre elas as
que bem quiseram, para mulheres”).
Ter parte
naquele século (v. 35) é um segmento
que significa participar na vida divina. Os homens e as mulheres que têm parte
naquele século não se dão nem são dados em casamento, são e vivem como os
anjos, isentos de quaisquer necessidades materiais. A esta situação
escatológica assemelha-se a situação daqueles e daquelas que positivamente
renunciam ao matrimónio por amor a Jesus (Lc
14,26; 18,29), por virtude da vocação específica que inclui a aspiração à
plenitude da vida celeste. Depois, os felizes contemplantes de Deus jamais
poderão morrer. Serão totalmente livres como filhos de Deus e da ressurreição,
pois a vida que Jesus lhes outorga torna-os filhos de Deus para sempre.
O próprio Moisés
dá a entender (v. 37). Também Jesus
tira o seu argumento da Escritura para demonstrar algo mais que a simples
possibilidade da ressurreição: os homens, embora mortos para este século (e apesar de a ressurreição final ainda não se ter dado), estão sempre
vivos diante de Deus. O argumento de Jesus parte duma asserção bíblica,
prossegue com uma verdade religiosa evidente, a de que Deus é Deus dos vivos e
não dos mortos, e termina com a asserção da realidade da ressurreição, pois
“para Ele todos vivem”, expressa no episódio das sarça ardente (vd Ex 3,6), onde se relata a manifestação de Deus a Moisés no monte
Horeb.
Todos vivem para
Ele (v. 38). Esta é uma adição de Lucas em relação a Marcos e Mateus
que aplica as ideias de Jesus sobre a vida da ressurreição a todo aquele que
está vivo já na Igreja. Por consequência, os cristãos não devem preocupar-se em
excesso pela parusia (o fim dos tempos). Anote-se que
esta referência à vida já aparece em Lucas como decorrente do cumprimento dos
mandamentos a introduzir a parábola do bom samaritano – “faz isso e viverás” (vd Lc
10,25-28). E Mateus (Mt 22,34-40) e Marcos (Mc 12,28-34) colocam o mandamento do amor a seguir ao episódio da
discussão com os saduceus sobre a ressurreição.
Alguns escribas (v. 39), obviamente fariseus, contrários aos saduceus e firmes
detentores da ressurreição apoiam a argumentação do Mestre. A sua frase de
aprovação, “falaste muito bem”, não
exprime, na perspetiva lucana, apenas a satisfação dos escribas, mas também e
sobretudo a fé da Igreja em seu Mestre e Senhor ressuscitado (vd At 17,18).
***
O facto da ressurreição é atestado por Paulo, porquanto nós
agora gememos nesta tenda ansiando por nos revestirmos daquela habitação
celeste, obra de Deus, não construída por mãos humanas, de modo que o que é
mortal seja absorvido pela vida (cf “Cor
5,1-10). Por outro lado, “o amor de Cristo nos
absorve completamente, ao pensar que um só morreu por todos e, portanto, todos
morreram. Ele morreu por todos, a
fim de que, os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que
por eles morreu e ressuscitou” (2Cor 14-15; cf Fl 1,20-23; Gl2,19).
Paulo fala da ressurreição de Cristo:
“Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu
próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao
terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu
a Cefas e depois aos Doze. Em
seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma só vez, a maior parte dos
quais ainda vive, enquanto alguns já morreram. Depois, apareceu a Tiago e, a seguir,
a todos os Apóstolos. Em último
lugar, apareceu-me também a mim, como a um aborto.” (1 Cor 1,3-8).
Depois, fala da ressurreição dos mortos:
“Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos,
como é que alguns de entre vós dizem que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos,
também Cristo não ressuscitou. Mas
se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã é também a vossa fé. (…).Mas não! Cristo ressuscitou dos
mortos, como primícias dos que morreram. Porque,
assim como por um homem veio a morte, também por um homem vem a ressurreição
dos mortos. E, como todos morrem
em Adão, assim em Cristo todos voltarão a receber a vida. Mas cada um na sua própria ordem:
primeiro, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua
vinda. Depois, será o fim: quando
Ele entregar o reino a Deus e Pai, depois de ter destruído todo o principado,
toda a dominação e poder.” (1Cor 1,12-14.20-24).
E,
segundo o Evangelho de João, Jesus, que ressuscitara a filha de Jairo (Mc 5,35-43), o filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17) e ia ressuscitar Lázaro (Jo 11,1-44), afirma-se como a própria ressurreição e a vida
para benefício de todos os crentes, ao responder a Marta que prontamente confessou
a fé na ressurreição no último dia:
“Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem crê em mim,
mesmo que tenha morrido, viverá. E
todo aquele que vive e crê em mim não morrerá para sempre.” (Jo 11,25-26).
Com
razão, “a multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um
só coração e uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre
eles tudo era comum. Com grande
poder, os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus,
e uma grande graça operava em todos eles.” (At 4,32-33).
E nós, no símbolo dos apóstolos, clamamos: “Ressuscitou ao terceiro dia” e “[Creio] na ressurreição da carne e na vida eterna”.
E, no símbolo niceno-constantinoplitano, proclamamos: “Ressuscitou ao terceiro dia conforme as Escrituras” e “espero a ressurreição dos mortos e a
vida do mundo que há de vir”.
2016.11.07
– Louro de Carvalho
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