Pela primeira vez, se procedeu à comemoração
conjunta católico-luterana da Reforma. Para assinalar o V centenário da Reforma
operada no século XVI, o Papa Francisco deslocou-se a Lund, na Suécia, a 31 de
outubro, num propósito muito eclesial no campo do ecumenismo.
Obviamente que o Papa não despiu as vestes de Chefe
de Estado, pelo que se encontrou com o Primeiro-Ministro, no Aeroporto
Internacional de Malmö, e fez a visita de cortesia à Família Real, no
Palácio Real Kungshuset em Lund. Porém,
as ações mais significativas e que motivaram a deslocação pontifical
foram a oração ecuménica e a declaração conjunta, na Catedral
Luterana de Lund, bem como o evento ecuménico e o encontro com Delegações Ecuménicas na
Arena Malmö, em Malmö.
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Na oração ecuménica, o Papa fez um discurso homilético a partir das
palavras de Jesus no contexto da Última Ceia, “Permanecei em Mim, que Eu
permaneço em vós” (Jo 15,4) – que nos levam a “sondar o coração de Cristo pouco antes da sua doação
definitiva na cruz” em amor por nós e no desejo de unidade para todos os que n’Ele
creem.
Manifestando o desejo comum de permanecer unidos a Ele para termos a vida,
ousa pedir-Lhe a graça da ajuda a estarmos mais unidos “para darmos, juntos, um
testemunho mais eficaz de fé, esperança e caridade” e declara este como “um
momento propício para dar graças a Deus pelo esforço de muitos irmãos”, de
diferentes comunidades eclesiais, que não se resignaram com a divisão, mas
mantiveram viva a esperança da reconciliação entre todos os que creem no único
Senhor”. Referindo-se ao contexto da comemoração comum da Reforma de 1517,
assegura tratar-se de “nova oportunidade para acolher um percurso comum”,
desenvolvido “ao longo dos últimos 50 anos no diálogo ecuménico entre a
Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica”; e reconhece a possibilidade conjunta
de “reparar um momento crucial da nossa história, superando controvérsias e
mal-entendidos”.
Atendendo a que “o dono da vinha é o Pai (cf 15,1), que dela cuida e a poda para dar mais fruto (cf 15,2), apela a que olhemos, “com amor e honestidade, para o nosso passado”
reconhecendo o erro e pedindo perdão, porque “a nossa divisão se afastava da
intuição originária do povo de Deus” e “historicamente foi perpetuada mais por
homens de poder deste mundo do que por vontade do povo fiel, que sempre e em
toda parte precisa de ser guiado, com segurança e ternura, pelo seu Bom Pastor”.
E salienta a “vontade sincera de professar e defender a verdadeira fé” surgida
de ambos os lados, a partir da consciência de que “nos fechamos em nós mesmos
com medo ou preconceitos relativamente à fé que os outros professam com uma
acentuação e uma linguagem diferentes”. Porém, como dizia João Paulo II, “não
devemos deixar-nos guiar pelo intento de nos tornarmos árbitros da história”,
mas “pela intenção de compreendermos melhor os acontecimentos e de sermos
portadores da verdade”.
A separação, diz o Papa, fonte imensa de sofrimentos e incompreensões”,
também nos levou “a tomar consciência sinceramente de que, sem Ele, nada
podemos fazer” e que teremos “a possibilidade de compreender melhor alguns
aspetos da nossa fé”. Por isso, Francisco refletiu:
“Com gratidão, reconhecemos que a Reforma contribuiu
para dar maior centralidade à Sagrada Escritura na vida da Igreja. Através da
escuta comum da Palavra de Deus nas Escrituras, o diálogo entre a Igreja
Católica e a Federação Luterana Mundial, cujo cinquentenário celebramos, deu
passos importantes. Peçamos ao Senhor que a sua Palavra nos mantenha unidos,
porque Ela é fonte de alimento e vida; sem a sua inspiração, nada podemos
fazer.”
Evocando um dos principais corifeus da Reforma, explicitou:
“A experiência espiritual de Martinho Lutero
interpela-nos lembrando-nos que nada podemos fazer sem Deus. Como posso ter um Deus misericordioso?
Esta é a pergunta que constantemente atormentava Lutero. Na verdade, a questão
da justa relação com Deus é a questão decisiva da vida. Como é sabido, Lutero
descobriu este Deus misericordioso na Boa Nova de Jesus Cristo encarnado, morto
e ressuscitado. Com o conceito ‘só por graça divina’ recorda-nos que Deus tem sempre a
iniciativa e que precede qualquer resposta humana inclusive no momento em que
procura suscitar tal resposta. Assim, a doutrina da justificação exprime a
essência da existência humana diante de Deus.”
É Cristo que “intercede por nós como mediador junto do Pai, pedindo-Lhe a
unidade dos seus discípulos para que ‘o mundo creia’ (Jo 17,21) – o que “nos conforta e impele a
unir-nos a Jesus para implorar o Pai com insistência. Assim, nós, luteranos e
católicos, “rezamos juntos nesta Catedral e estamos conscientes de que, sem
Deus, nada podemos fazer; pedimos o seu auxílio para sermos membros vivos
unidos a Ele, sempre carecidos da sua graça para podermos levar, juntos, a sua
Palavra ao mundo”, necessitado da sua “ternura e misericórdia”.
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Um dos resultados da celebração católico-luterana do
V centenário da Reforma é a Declaração
Conjunta a partir do segmento textual evangélico:
“Permanecei em Mim, que Eu
permaneço em vós. Tal como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, mas só
permanecendo na videira, assim também acontecerá convosco, se não permanecerdes
em Mim.” (Jo 15,4).
Com
coração agradecido, os dois líderes iniciam o ano
comemorativo do V centenário da Reforma e os 50 anos do “constante e frutuoso
diálogo ecuménico entre católicos e luteranos”, que ajudaram “a superar muitas
diferenças e aprofundaram a compreensão e confiança” mútuas, bem como
facultaram a aproximação mútua no serviço comum ao próximo.
Do
conflito à comunhão. Reconhecem os “dons espirituais e
teológicos recebidos através da Reforma, mas lamentam “diante de Cristo que
luteranos e católicos tenham ferido a unidade visível da Igreja”, como lamentam
que “diferenças teológicas” tenham sido “acompanhadas por preconceitos e
conflitos”, com a instrumentalização da religião “para fins políticos”. Porém,
sabem que a fé e o batismo comuns exigem a conversão diária para repelir “as
divergências e conflitos históricos que dificultam o ministério da
reconciliação”. Por isso, rezam pela cura das feridas e lembranças “que turvam
a nossa visão uns dos outros”; rejeitam categoricamente “todo o ódio e
violência, passados e presentes, especialmente os implementados em nome da
religião”; escutam “o mandamento de Deus para se pôr de parte todo o conflito”;
e sentem-se libertos “pela graça para nos dirigirmos para a comunhão a que Deus
nos chama”.
O
compromisso em prol dum testemunho comum. Comprometem-se “a
testemunhar juntos a graça misericordiosa de Deus”, “visível em Cristo
crucificado e ressuscitado”, e “a crescer ainda mais na comunhão radicada no
Batismo, procurando remover os obstáculos ainda existentes que nos impedem de
alcançar a unidade plena”. Verificam o anseio de “muitos membros das nossas
comunidades” em “receber a Eucaristia a uma única Mesa como expressão concreta
da unidade plena” e assumem a “responsabilidade pastoral comum de dar resposta
à sede e fome espirituais que o nosso povo tem de ser um só em Cristo”. E,
sabendo daquele desejo das comunidades, fazem dele o objetivo dos seus “esforços
ecuménicos”, que desejam “levar por diante” inclusive renovando o comum “empenho
no diálogo teológico”. Entretanto, rezam “a Deus para que católicos e luteranos
saibam testemunhar juntos o Evangelho de Jesus Cristo, convidando a humanidade
a ouvir e receber a boa notícia da ação redentora de Deus” e pedem-Lhe “inspiração,
ânimo e força” para poderem continuar “juntos no serviço, defendendo a
dignidade e os direitos humanos, especialmente dos pobres, trabalhando pela
justiça e rejeitando todas as formas de violência”. Porque Deus nos chama a
estar perto de quantos “anseiam por dignidade, justiça, paz e reconciliação”,
levantam hoje, de modo particular, as suas vozes a “pedir o fim da violência e
do extremismo que ferem tantos países e comunidades e inumeráveis irmãos e
irmãs em Cristo”; e exortam “luteranos e católicos a trabalharem juntos para
acolher o estrangeiro, prestar auxílio a quantos são forçados a fugir por causa
da guerra e da perseguição e defender os direitos dos refugiados e de quantos
procuram asilo”. Mais do que nunca, hoje dão-se conta de que o serviço comum no
mundo “deve estender-se à criação inteira, que sofre a exploração e os efeitos
duma ganância insaciável”; reconhecem o direito das gerações futuras a gozar do
mundo, obra de Deus, em todo o seu potencial e beleza; e rezam “por uma mudança
dos corações e das mentes” conducente a “um cuidado amoroso e responsável da
criação”.
Um
só em Cristo. Ao renovar o compromisso de passar do conflito à
comunhão, fazem-no como “membros do único Corpo de Cristo, em que “estamos
incorporados pelo Batismo”. Convidam os “companheiros de estrada no caminho
ecuménico a lembrar-nos dos nossos compromissos e a encorajar-nos”, a “rezar
por nós, caminhar connosco, apoiar-nos na observância dos compromissos de
religião”.
Apelam
aos católicos e luteranos do mundo inteiro, nomeadamente
às paróquias
e comunidades luteranas e católicas “para que sejam corajosas e criativas,
alegres e cheias de esperança no seu compromisso de prosseguir na grande
aventura que nos espera”. Importa que seja “o dom divino da unidade” a guiar a
colaboração e a aprofundar a solidariedade. E, “estreitando-nos a Cristo na fé,
rezando juntos, ouvindo-nos mutuamente, vivendo o amor de Cristo nas nossas
relações”, abrimo-nos “ao poder de Deus Uno e Trino”, e, “radicados em Cristo e
testemunhando-O”, renovam a determinação de ser “fiéis arautos do amor infinito
de Deus por toda a humanidade”.
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No Encontro com Delegações Ecuménicas na Arena Malmö,
Francisco agradeceu a Deus esta comemoração conjunta
dos 500 anos da Reforma, vivida com espírito renovado e na convicção de que a
unidade dos cristãos é uma prioridade, pois reconhecemos ser “muito mais o que
nos une do que aquilo que nos separa”. Confessando que o “caminho empreendido
para a alcançar é um grande dom de Deus” há que dirigir “o olhar ao único
Senhor, Jesus Cristo”.
Sente que “o diálogo entre nós permitiu aprofundar a compreensão mútua,
gerar confiança recíproca e confirmar o desejo de caminhar para a plena
comunhão”. Nesta ótica, selecionou como fruto deste diálogo “a colaboração
entre distintas organizações da Federação Luterana Mundial e da Igreja Católica”.
Assim, a Caritas Internationalis e a Lutheran World
Federation World Service assinarão “uma declaração comum de acordos
com vista a desenvolver e consolidar a cultura de colaboração para a promoção
da dignidade humana e da justiça social”. São duas entidades que, “num mundo
dividido por guerras e conflitos, foram e são um exemplo luminoso de dedicação
e serviço ao próximo”.
Depois, referiu-se aos testemunhos que ouviu de “como, no meio de tantos
desafios, dia após dia” muitos “dedicam a vida a construir um mundo que
corresponda cada vez mais aos desígnios de Deus, nosso Pai”.
Um deles referiu-se à criação. Com efeito, sendo toda a criação “uma
manifestação do amor imenso de Deus para connosco”, podemos “contemplar a Deus
por meio dos dons da natureza. Neste sentido, o Papa compartilha a “consternação
pelos abusos que danificam o nosso planeta, a nossa casa comum, com graves
consequências também sobre o clima”, sendo que “os maiores impactos recaem
frequentemente sobre as pessoas mais vulneráveis e com menos recursos, que se
veem forçadas a emigrar para se salvarem dos efeitos das mudanças climáticas”. Ora,
como todos e, em especial os cristãos, “somos responsáveis pela salvaguarda da
criação”, temos de adotar um estilo de vida e uns comportamentos “coerentes com
a nossa fé”. Na verdade, “somos chamados a cultivar uma harmonia com nós mesmos
e com os outros, mas também com Deus e com a obra das suas mãos”.
Mons. Héctor Fabio informou sobre o trabalho conjunto de católicos e luteranos
na Colômbia. Enquanto recebe como boa notícia “saber que os cristãos se unem
para dar vida a processos comunitários e sociais de interesse comum”, o
Pontífice pede “uma oração especial por aquela terra maravilhosa para que, com
a colaboração de todos, se possa chegar finalmente à paz, tão desejada e
necessária para uma digna convivência humana” e uma oração que “abrace também a
todos os países onde perduram graves situações de conflito”.
Um outro testemunho evidenciou “o trabalho em prol das crianças vítimas de
tantas atrocidades e para o compromisso a favor da paz”. É um trabalho admirável
e um “apelo para tomar a sério inúmeras situações de vulnerabilidade que
padecem tantas pessoas indefesas, que não têm voz”. Aquela missão, segundo
Francisco, foi “uma semente que produziu frutos abundantes, e hoje, graças a
esta semente, milhares de crianças podem estudar, crescer e recuperar a saúde”.
É “a loucura do amor a Deus e ao próximo”.
Foi ainda oferecido um testemunho comovente de alguém que “soube tirar
proveito do talento que Deus lhe deu através do desporto”. É o de uma jovem que,
na convicção de que todos somos filhos de Deus, queridos e amados por Ele,
animou muitas meninas “a regressar à escola” e reza “todos os dias pela paz no
jovem Estado do Sudão do Sul”.
Depois, aproveitou o ensejo para agradecer aos governos que prestam assistência
aos refugiados, aos governos que prestam assistência aos deslocados e àqueles
que pedem asilo, porque “cada ação em favor destas pessoas que precisam de
proteção constitui um grande gesto de solidariedade e reconhecimento da sua
dignidade”. E porfiou para os cristãos a prioridade de “sair ao encontro dos descartados
– porque são descartados pela sua pátria – e marginalizados do nosso mundo,
tornando palpável a ternura e o amor misericordioso de Deus, que não descarta
ninguém, mas acolhe a todos”. É a revolução da ternura que hoje se pede aos
cristãos.
E anunciou o testemunho do Bispo D. Antoine, que vive em Alepo, cidade
exausta pela guerra, onde se desprezam e espezinham os direitos mais
fundamentais no contexto do conflito sírio, que dura há mais de 5 anos. No meio
de tanta devastação, diz o Papa, “é verdadeiramente heroica a permanência lá de
homens e mulheres para prestar assistência material e espiritual aos
necessitados”. E é imperioso implorar a graça da conversão dos corações de
quantos têm a responsabilidade dos destinos do mundo.
Finalmente, Francisco pretende que os testemunhos que ouviu estimulem a um
trabalho conjunto e ao “compromisso de realizar diariamente um gesto de paz e
reconciliação” como “testemunhas corajosas e fiéis de esperança cristã”.
2016.11.01 – Louro de Carvalho
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