quinta-feira, 10 de novembro de 2016

A (im)pertinência de caso de estudo

Diz-nos o jornalista Carlos Varela, no JN de hoje, dia 10 de novembro, que o caso da detenção do suspeito dos crimes de Aguiar da Beira no passado dia 11 de outubro, resultante da sua apresentação às autoridades policiais com cobertura em direto pela RTP, está a suscitar a atenção de especialistas forenses, considerando que é a 1.ª vez que tal acontece no nosso país.
E o psicólogo forense Carlos Poiares, professor catedrático da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias e seu vice-reitor, adiantou já ter levado o processo à Universidade e que vai voltar com o caso às aulas na próxima semana. Diz o professor:
“É uma situação única, com este contexto, e já comecei a abordá-lo nas aulas. É um verdadeiro case-study.”
Do meu ponto de vista, todos os casos concretos que possam ilustrar de modo significativo as unidades de ensino, nomeadamente do ensino superior, devem ser utilizados pelos docentes. Todavia, considerar este um caso excecional e de contornos bombásticos parece excessivo e inadequado. É este género de referências de que estes tipos gostam, marcar a opinião pública, impressionar a sociedade civil.
Pode o caso da autoapresentação às autoridades da parte do suspeito agregar uma “personalidade fria, manipuladora e sedutora” (sic), mas não é caso único. Não vejo por que motivo a cobertura televisiva e transmissão em direto haja de acrescentar mais-valia ao mérito da abordagem científica que o catedrático reivindica para o facto. Aliás, as razões invocadas pelos causídicos que patrocinam o suspeito são claras: evitar que o ato de apresentação fosse flagelado por eventual abatimento a tiro do apresentado, o que também requereu que a apresentação fosse feita perante elementos da polícia judiciária e não da GNR. Por outro lado, o ato configura uma capacidade organizativa fora do vulgar, uma sede de protagonismo, um franco oportunismo e uma disponibilidade da RTP – a nossa televisão pública. Como bem se pode recordar, a apresentação foi antecedida de uma entrevista que será transmitida no próximo programa “Sexta às nove”. Ou seja, o suspeito quis protagonismo e este foi-lhe dado. Deu-lho a polícia por interesse público; deu-lho a RTP por furo jornalístico em que se pode louvar.
Porém, o cenário em que se processou publicamente a detenção foi perfeitamente normal e nada hollywoodesco, como supõe a peça jornalística. Foi detido em Arouca, onde se apresentou por combinação prévia e foi transferido para a cidade da Guarda, comarca que abrange o local dos crimes de que é suspeito. Nada de episódios de tipo faroeste!
Nem é propriamente o primeiro caso espetacular em autoapresentação, pois, já em 2008, um homem matou a mulher de um pivô da Sport TV, em Sacavém. E foi ele quem se apresentou, em 2013, por necessidade de protagonismo, mostrando que controlou todos os passos.
Também Rui Abrunhosa Gonçalves, psicólogo forense e professor da Universidade do Minho, admite levar o caso às aulas, pois entende que o caso de Pedro Dias não é comum, dado não se lembrar de caso similar em termos comportamentais, tendo em conta que criou uma estratégia. Sim, levar o caso às aulas entende-se pelas razões acima expostas e não mais. Todavia, é verdade que tanto o suspeito de Aguiar da Beira como o de Sacavém criaram uma estratégia. Neste caso, incluiu a cobertura televisiva em direto, a entrevista, a declaração pública de inocência (como é usual nestes casos, chutando a responsabilidade para outrem), a permanência por quase duas semanas na casa onde se entregou e que estava a ser vigiada policialmente, não se percebendo porque não foi tomada a iniciativa da detenção e agora se constitui arguida a professora de História aposentada que lhe deu guarida.
Não vejo como a cobertura televisiva acrescente qualquer mais-valia ao caso em termos de cientificidade, se apenas a cobertura televisiva foi solicitada e concedida.
Recordo que Manuel Palito, no ano anterior, andou 34 dias a monte, criando o pânico na região, suspeito mais ou menos do mesmo número de crimes. E foi detido quando, aparentemente de forma inopinada, resolveu vir a casa. Ora, ninguém o considerou um case-study.
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Depois, não se percebe como uma psiquiatra forense opina que o suspeito não parece demonstrar qualquer desequilíbrio mental, parecendo antes ser um sociopata.
Um Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais refere que tanto a psicopatia como a sociopatia são consideradas como transtornos antissociais e têm muitas caraterísticas semelhantes, pelo que muitas vezes são vistas como sinónimas. Apresentam muitos traços em comum, como a desconsideração por leis, normas sociais e direitos de outras pessoas, falta de sentimento de culpa e comportamento violento. Apenas a origem será diversa.
Uma das diferenças reside no facto de frequentemente os psicopatas serem pessoas encantadoras e populares, sendo que muitas vezes exercem cargos de liderança e conseguem atrair pessoas para elas próprias.
O sociopata não é muito bom em contextos sociais e não tem apego aos valores morais, sendo muitas vezes classificado como uma pessoa antissocial. Apesar disso, o sociopata é capaz de fingir ou forçar sentimentos, para conseguir manipular outras pessoas, parecendo estar à vontade ou contente quando na realidade não está. Por sua vez, o psicopata sente-se, muitas vezes, confortável em grupos, vendo tal situação como uma oportunidade para manipular os outros em benefício de si próprio.
Na verdade, a sociopatia é um transtorno de personalidade caraterizado por um egocentrismo exacerbado, que leva à desconsideração dos sentimentos e opiniões dos outros. A sociopatia é uma psicopatologia que provoca um comportamento impulsivo, hostil e antissocial.
A incapacidade do sociopata em controlar as suas emoções negativas torna muito difícil estabelecer um relacionamento estável com outras pessoas.
A sociopatia não tem cura, podendo, no entanto, os seus efeitos ser mitigados através da psicoterapia e da prescrição de medicamentos.
A expressão “sociopata funcional” refere-se à pessoa que, apesar de sofrer de sociopatia, tem essa situação sob controlo, ou seja, os efeitos da sua sociopatia não afetam muito a sua interação com as outras pessoas.
Sendo assim, não percebo como é que se afirma que o suspeito é sociopata, mas não tem desequilíbrio mental. São escaninhos que não domino, mas que me deixam perplexo.
***
Pode efetivamente dizer-se que o suspeito foi quem controlou o “reality-show”, mas porque lho deixaram controlar, creio que não por vontade das forças policiais, mas por insuficiência de meios, bem como por apoios ao foragido no terreno. Das vítimas já nem se fala!
Case-study para quê, se dificilmente podem ser extrapoladas para fora do seu âmbito as conclusões e considerações futuras?

2016.11.10 – Louro de Carvalho 

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