sábado, 12 de novembro de 2016

Em memória de Alfredo Bruto da Costa, lutador social...

Com a idade de 78 anos, vítima de cancro, faleceu ontem, dia 11 de novembro, na sua residência oficial, Alfredo Bruto da Costa, conhecido pelos seus estudos e ações de luta contra a pobreza. Era o académico e o político que entendia que não basta dar a cana ao pobre enquanto este morre de fome, mas que é preciso dar o peixe, enquanto o pobre não for capaz de utilizar a cana, e a cana para que ele possa conseguir o peixe por seus próprios meios.
Bruto da Costa nasceu em Goa e era filho de pais goeses católicos: António Anastácio Bruto da Costa, que liderou o grupo conhecido como o “Circulo de Margão”, que pretendia uma maior autonomia de Goa frente ao Portugal do Estado Novo; e sua mulher e prima Lucília Esmeralda da Costa Barbosa. Fez o ensino primário em português. Ingressou numa escola jesuíta, onde fez o ensino secundário, já em inglês. Queria ser advogado, como o pai, mas “estava convencido de que não seria capaz de falar em público”. E acabou por vir para Portugal estudar Engenharia Civil. Lia cada vez mais. Percebeu que não queria ser engenheiro, mas também não sabia bem o que deveria ser. Acabou por dedicar a vida ao combate à pobreza. 
Casado, licenciado em Engenharia Civil pelo Instituto Superior Técnico, da então Universidade Técnica de Lisboa, hoje integrada na Universidade de Lisboa (exerceu a profissão de engenheiro civil durante um ano apenas), foi Ministro da Coordenação Social e dos Assuntos Sociais no V Governo Constitucional, da então Primeira-Ministra Maria de Lourdes Pintasilgo (de 1 de agosto de 1979 a 3 de janeiro de 1980) – governo encarregado de preparar eleições intercalares para a Assembleia da República, mas que prestou relevantes serviços ao país, sobretudo em matéria social. 
Foi o 203.º provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, de 1974 a 1980 e, entre 2003 e 2009, foi presidente do CES (Conselho Económico e Social). Fez o doutoramento em Ciências Sociais pela University of Bath, no Reino Unido, com a tese “O Paradoxo da Pobreza – Portugal, 1980-1989”, o que lhe deu equivalência ao Grau de Doutor em Sociologia, pela Universidade Nova de Lisboa. Exerceu funções de docência universitária na UCP (Universidade Católica Portuguesa), Lisboa, no ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão)  e no ISCTE-IUL (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – Instituto Universitário de Lisboa) e foi professor catedrático na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – nas áreas da pobreza e exclusão social, problemas sociais e política social.
Presidiu, desde 2008 até finais de 2014, à CNJP (Comissão Nacional Justiça e Paz)organismo laical da Conferência Episcopal Portuguesa, que tem como finalidade promover e defender a Justiça e a Paz, à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja, e cujas principais funções são o estudo e divulgação da doutrina social da Igreja, apreciando e analisando problemas relativos ao desenvolvimento dos povos, aos direitos humanos, à justiça e à paz segundo o Evangelho e procurando prestar particular atenção aos grupos mais vulneráveis da sociedade.
Integrou o Conselho de Estado entre setembro de 2014 e janeiro de 2016, em substituição de António José Seguro, que renunciou ao cargo quando perdeu as eleições internas do PS.
O seu funeral realizou-se hoje, pelas 14 horas, tendo o cardeal patriarca de Lisboa, Dom Manuel Clemente, presidido às exéquias, na Igreja do Campo Grande.
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O Presidente da República referiu-se-lhe como “uma personalidade moral, cívica e social notável na coerência das suas ideias e da sua luta pela justiça, pela igualdade e pela solidariedade”. A sua luta ao “serviço dos mais pobres, dependentes e excluídos” foi testemunhada por “atos e não apenas por palavras”.
E o jornal Público recorda duma entrevista de 2007, algo de afirmações suas que dá que pensar:
“Discordo da frase ‘não dês o peixe, dá a cana’. Se só deres o peixe, ele só comerá hoje. Se, além do peixe, deres a cana, ele comerá hoje e o resto da vida. Não vale de nada dar uma cana a alguém que está com tanta fome que não pode sequer levantar-se para chegar ao rio para pescar.”
O Presidente da Assembleia da República enviou uma nota às redações a lembrar que Bruto da Costa “esteve associado aos maiores avanços nas políticas sociais das últimas décadas em Portugal”, sintetizando que “foi um grande combatente contra a pobreza e a exclusão”. E Vieira da Silva, ministro do Trabalho e da Segurança Social destacou a sua “visão assertiva” e “por vezes idealista”.
Tinha no currículo vários estudos e trabalhos sobre pobreza e exclusão social, incluindo a tese de doutoramento, a que se fez referência. E, nessa área, continuava ativo. Fazia parte de um grupo de trabalho dinamizado pela EAPN-Rede Europeia Antipobreza /Portugal, que delineou um roteiro para uma Estratégia Nacional de Erradicação da Pobreza. A Estratégia Nacional foi uma das suas últimas lutas. Na apresentação pública do predito roteiro, em setembro de 2015, disse que “nós sabemos quem são os pobres em Portugal”, mas “o problema é termos procurado combater a pobreza sobretudo de forma pontual, pontual e dispersa”. Por isso, convidava todos a “aderir a um compromisso para uma estratégia nacional de combate à pobreza”, dando consistência a uma ação que vise “não apenas reduzir o sofrimento do pobre, o que é certamente necessário, mas também ajudá-lo a libertar-se da pobreza”.
Sérgio Aires, presidente da EAPN – Europa, refere que “ainda participou numa reunião em março”, mas “depois, anunciou que estava doente” e pediu que o mantivessem informado sobre o desenrolar dos trabalhos”, pois “tinha expectativa de superar a doença”. Nesta altura da vida, refletia muito sobre a desigualdade e desafiava a aprofundar esse conceito.
E o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa refere:
“Foi um homem com importantes tarefas governativas, com intensa participação na vida da sociedade, com fecunda inserção na vida da Igreja em Portugal, em particular como presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz durante seis anos. Rezemos para que na sua plena comunhão em Deus seja nosso intercessor. Que o seu testemunho de vida como lutador pela dignidade do ser humano e pelo bem comum nos inspire a continuar a lutar por uma sociedade fundada na paz, cada vez mais justa e fraterna.”
Faleceu, por coincidência em dia de São Martinho de Tours, o militar e bispo que ficou célebre pela dedicação aos pobres, simbolizada no gesto de cortar ao meio o manto para livrar um pobre da intempérie.
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Apraz-me recordar a sua participação na IX Semana Bíblica Nacional (1986) em torno do tema “Génesis – do sonho à esperança da terra prometida”, em que apresentou uma comunicação sobre “O homem como responsável da criação”. Nela acentuou o caráter pastoral daquela Semana, na preocupação “em ligar a Bíblia à vida”, não estando “na linha dos que pensam que seremos tanto mais cristãos quanto mais fugirmos do mundo, quanto mais deixarmos nos outros a tarefa de construir a cidade terrestre, a cidade dos homens”. E, Para falar do homem como imagem e semelhança de Deus, entendeu que, tendo a Igreja várias formas de comunicar o seu pensamento, que elencou, considerou que a afirmação da importância dos pontos de doutrina se torna mais evidente quando são introduzidos “nos textos litúrgicos” ou são referidos “a algum tempo do ano litúrgico”. Por isso, partiu dum segmento da Oração Eucarística n.º IV:
“Pai Santo! Nós Vos glorificamos porque sois grande, e tudo criastes com sabedoria e amor. Formastes o homem à Vossa imagem e lhe confiastes o universo, para que, servindo-Vos unicamente a Vós, seu Criador, dominasse sobre todas as criaturas…”
Reconhecendo o segmento como originado no Génesis, sublinhou que ainda não se tiraram todas as consequências desta formulação. Primeiro, o homem não é Deus, mas sua imagem; depois, o homem não se confunde com os animais, é semelhante a Deus, por inteligência, vontade e poder, por subjetividade e por capacidade de agir racional, programática e relacional (não é bom que o homem esteja só). É intermediário e mediador, é sujeito consciente e livre, é ser social (criou-os homem e mulher), faz comunidade.
Segundo Bruto da Costa, o homem terrestre é adornado das três determinações: senhor da natureza (crescei, multiplicai-vos e dominai a terra), irmão dos homens e filho de Deus. São dimensões inter-relacionadas que suscitam ações específicas: a relação com a natureza implica a transformação, põe-na ao serviço dos homens e fá-lo glorificar a Deus; a fraternidade traduz-se em gestos de caridade interpessoal e política (esta segunda vertente é pouco assumida), de gestos construtores da fruição comum dos bens e da justiça, libertação e paz; e a filiação divina dá aos gestos transformadores da criação e aos gestos de fraternidade a referência transcendental e desemboca na oração. Como responsável pela natureza, o homem não se pode esquecer do fim último da criação – Deus – e deve assumir que lhe compete conduzir a natureza ao seu destino derradeiro, o que exige: a convicção de que o mundo vem de Deus e para Ele há de retornar; a crença na bondade intrínseca do que existe (Deus viu que era bom); a ideia-força de que o domínio sobre a natureza se insere na esfera global de que fazem parte a relação do homem com os outros homens e a relação do homem com Deus; e a consciência de que existe uma relação entre a vocação da criação e a sua ordenação ao serviço do homem.
Todos têm de ser solidários no domínio da terra. Por isso, ressalta o direito de todos à propriedade da terra (no quadro do destino universal dos bens), para que, no respeito pelo direito que a cada um se deve reconhecer e na observância do dever que a todos incumbe, a transformemos segundo o querer de Deus e a utilidade do homem. Assim, o exercício da submissão da terra não pode caber a uns poucos e, sobretudo, estes não podem submeter e oprimir os outros. E tanto a propriedade coletiva, que devia prover ao bem-estar de todos e de cada um, como a propriedade privada, que devia ser expressão da liberdade e da capacidade empreendedora do homem, devem possibilitar a realização de todos e de cada um pelo trabalho e prover às necessidades de vida condigna por parte de todos e de cada um. Neste contexto, todos devem dar o máximo das suas possibilidades em prol de si e do próximo e auferir tudo aquilo que as suas necessidades impõem, mesmo que já não possam valorizar a terra e a si próprios pelo trabalho. Nunca a Igreja deixou de censurar os excessos da coletivização dos recursos como o esquecimento da função social da propriedade, mesmo que privada. É que todos somos responsáveis perante a criação, perante os outros e perante Deus. E não vale a pena separar, no “Magnificat” de Maria, o sentido da exultação espiritual da disponibilidade para lutar pela verdade e pela justiça. O Deus de Maria é o Deus da Justiça, não se devendo, por isso, entender o Evangelho de modo apenas terreno nem apenas simbolizante: nem materialismo rude nem angelismo puro.
O Evangelho é totalizante, totalmente interpelador e garantidamente libertador.
Que Bruto da Costa, agora do lado de lá passe a observar a nossa luta contra a pobreza!

 2016.11.12 – Louro de Carvalho

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