Com a
idade de 78 anos, vítima de cancro, faleceu ontem, dia 11 de novembro, na sua
residência oficial, Alfredo Bruto da Costa, conhecido
pelos seus estudos e ações de luta contra a pobreza. Era o académico e o
político que entendia que não basta dar a cana ao pobre enquanto este morre de
fome, mas que é preciso dar o peixe, enquanto o pobre não for capaz de utilizar
a cana, e a cana para que ele possa conseguir o peixe por seus próprios meios.
Bruto da Costa nasceu em Goa e era filho de pais goeses católicos:
António Anastácio Bruto da Costa, que liderou o grupo conhecido como o “Circulo
de Margão”, que pretendia uma maior autonomia de Goa frente ao Portugal do Estado
Novo; e sua mulher e prima Lucília Esmeralda da Costa Barbosa. Fez o ensino primário em português. Ingressou numa
escola jesuíta, onde fez o ensino secundário, já em inglês. Queria ser
advogado, como o pai, mas “estava convencido de que não seria capaz de falar em
público”. E acabou por vir para Portugal estudar Engenharia Civil. Lia cada vez
mais. Percebeu que não queria ser engenheiro, mas também não sabia bem o que
deveria ser. Acabou por dedicar a vida ao combate à pobreza.
Casado, licenciado em Engenharia Civil pelo Instituto
Superior Técnico, da então Universidade Técnica de Lisboa, hoje integrada na
Universidade de Lisboa (exerceu a profissão de engenheiro
civil durante um ano apenas), foi Ministro da
Coordenação Social e dos Assuntos Sociais no V Governo Constitucional, da então
Primeira-Ministra Maria de Lourdes Pintasilgo (de 1 de agosto de 1979 a 3 de janeiro de 1980) – governo encarregado de preparar
eleições intercalares para a Assembleia da República, mas que prestou
relevantes serviços ao país, sobretudo em matéria social.
Foi
o 203.º provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, de 1974 a 1980 e, entre 2003 e 2009, foi presidente do CES
(Conselho Económico e Social). Fez o
doutoramento em Ciências Sociais pela University
of Bath, no Reino Unido, com a tese “O
Paradoxo da Pobreza – Portugal, 1980-1989”, o que lhe deu equivalência ao
Grau de Doutor em Sociologia, pela Universidade Nova de Lisboa. Exerceu funções
de docência universitária na UCP (Universidade Católica Portuguesa), Lisboa, no ISEG (Instituto
Superior de Economia e Gestão) e no ISCTE-IUL (Instituto
Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – Instituto Universitário de
Lisboa) e foi professor catedrático na Faculdade de Direito da Universidade
Nova de Lisboa – nas áreas da pobreza e exclusão social, problemas sociais e
política social.
Presidiu, desde
2008 até finais de 2014, à CNJP (Comissão Nacional Justiça e Paz) – organismo laical da Conferência Episcopal Portuguesa,
que tem como finalidade promover e defender a Justiça e a Paz, à luz do
Evangelho e da Doutrina Social da Igreja, e cujas principais funções são o estudo e divulgação da doutrina social da
Igreja, apreciando e analisando problemas relativos ao desenvolvimento dos
povos, aos direitos humanos, à justiça e à paz segundo o Evangelho e
procurando prestar particular atenção aos grupos mais vulneráveis da sociedade.
Integrou o
Conselho de Estado entre setembro
de 2014 e janeiro de 2016, em substituição de António
José Seguro, que renunciou ao cargo quando perdeu as eleições internas
do PS.
O seu funeral realizou-se hoje, pelas 14 horas, tendo o cardeal patriarca
de Lisboa, Dom Manuel Clemente, presidido às exéquias, na Igreja do Campo
Grande.
***
O Presidente da República referiu-se-lhe como “uma personalidade moral,
cívica e social notável na coerência das suas ideias e da sua luta pela
justiça, pela igualdade e pela solidariedade”. A sua luta ao “serviço dos mais
pobres, dependentes e excluídos” foi testemunhada por “atos e não apenas por
palavras”.
E o jornal Público recorda duma entrevista de 2007,
algo de afirmações suas que dá que pensar:
“Discordo da
frase ‘não dês o peixe, dá a cana’. Se só deres o peixe, ele só comerá hoje.
Se, além do peixe, deres a cana, ele comerá hoje e o resto da vida. Não vale de
nada dar uma cana a alguém que está com tanta fome que não pode sequer
levantar-se para chegar ao rio para pescar.”
O Presidente da Assembleia da República enviou uma
nota às redações a lembrar que Bruto da Costa “esteve associado aos maiores
avanços nas políticas sociais das últimas décadas em Portugal”, sintetizando
que “foi um grande combatente contra a pobreza e a exclusão”. E Vieira da
Silva, ministro do Trabalho e da Segurança Social destacou a sua “visão
assertiva” e “por vezes idealista”.
Tinha no currículo vários estudos e trabalhos sobre
pobreza e exclusão social, incluindo a tese de doutoramento, a que se fez
referência. E, nessa área, continuava ativo. Fazia parte de um grupo de
trabalho dinamizado pela EAPN-Rede Europeia Antipobreza /Portugal, que delineou
um roteiro para uma Estratégia Nacional de Erradicação da Pobreza. A
Estratégia Nacional foi uma das suas últimas lutas. Na apresentação pública do
predito roteiro, em setembro de 2015, disse que “nós sabemos quem são os pobres
em Portugal”, mas “o problema é termos procurado combater a pobreza sobretudo de
forma pontual, pontual e dispersa”. Por isso, convidava todos a “aderir a um
compromisso para uma estratégia nacional de combate à pobreza”, dando
consistência a uma ação que vise “não apenas reduzir o sofrimento do pobre, o
que é certamente necessário, mas também ajudá-lo a libertar-se da pobreza”.
Sérgio Aires, presidente da EAPN – Europa, refere que “ainda
participou numa reunião em março”, mas “depois, anunciou que estava doente” e
pediu que o mantivessem informado sobre o desenrolar dos trabalhos”, pois “tinha
expectativa de superar a doença”. Nesta altura da vida, refletia muito sobre a
desigualdade e desafiava a aprofundar esse conceito.
E o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa
refere:
“Foi um homem
com importantes tarefas governativas, com intensa participação na vida da
sociedade, com fecunda inserção na vida da Igreja em Portugal, em particular
como presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz durante seis anos. Rezemos para que na sua plena comunhão em Deus seja nosso
intercessor. Que o seu testemunho de vida como lutador pela dignidade do ser
humano e pelo bem comum nos inspire a continuar a lutar por uma sociedade
fundada na paz, cada vez mais justa e fraterna.”
Faleceu, por coincidência em dia de São Martinho de
Tours, o militar e bispo que ficou célebre pela dedicação aos pobres,
simbolizada no gesto de cortar ao meio o manto para livrar um pobre da
intempérie.
***
Apraz-me recordar a sua participação na IX Semana
Bíblica Nacional (1986) em torno
do tema “Génesis – do sonho à esperança
da terra prometida”, em que apresentou uma comunicação sobre “O homem como responsável
da criação”. Nela acentuou o caráter pastoral daquela Semana, na preocupação “em
ligar a Bíblia à vida”, não estando “na linha dos que pensam que seremos tanto
mais cristãos quanto mais fugirmos do mundo, quanto mais deixarmos nos outros a
tarefa de construir a cidade terrestre, a cidade dos homens”. E, Para falar do
homem como imagem e semelhança de Deus, entendeu que, tendo a Igreja várias
formas de comunicar o seu pensamento, que elencou, considerou que a afirmação
da importância dos pontos de doutrina se torna mais evidente quando são
introduzidos “nos textos litúrgicos” ou são referidos “a algum tempo do ano
litúrgico”. Por isso, partiu dum segmento da Oração Eucarística n.º IV:
“Pai Santo! Nós Vos glorificamos
porque sois grande, e tudo criastes com sabedoria e amor. Formastes o homem à Vossa imagem e lhe confiastes o universo, para
que, servindo-Vos unicamente a Vós,
seu Criador, dominasse sobre todas as
criaturas…”
Reconhecendo o segmento como originado no Génesis, sublinhou que ainda não se
tiraram todas as consequências desta formulação. Primeiro, o homem não é Deus,
mas sua imagem; depois, o homem não se confunde com os animais, é semelhante a
Deus, por inteligência, vontade e poder, por subjetividade e por capacidade de
agir racional, programática e relacional (não é bom que o homem esteja só). É intermediário e mediador, é sujeito consciente e
livre, é ser social (criou-os homem e mulher), faz comunidade.
Segundo Bruto da Costa, o homem terrestre é adornado
das três determinações: senhor da natureza (crescei, multiplicai-vos e dominai a
terra), irmão dos homens e filho de Deus.
São dimensões inter-relacionadas que suscitam ações específicas: a relação com
a natureza implica a transformação, põe-na ao serviço dos homens e fá-lo
glorificar a Deus; a fraternidade traduz-se em gestos de caridade interpessoal
e política (esta segunda vertente é pouco assumida), de gestos
construtores da fruição comum dos bens e da justiça, libertação e paz; e a
filiação divina dá aos gestos transformadores da criação e aos gestos de
fraternidade a referência transcendental e desemboca na oração. Como responsável
pela natureza, o homem não se pode esquecer do fim último da criação – Deus – e
deve assumir que lhe compete conduzir a natureza ao seu destino derradeiro, o
que exige: a convicção de que o mundo vem de Deus e para Ele há de retornar; a
crença na bondade intrínseca do que existe (Deus viu que era bom); a ideia-força de que o domínio sobre a natureza se
insere na esfera global de que fazem parte a relação do homem com os outros homens
e a relação do homem com Deus; e a consciência de que existe uma relação entre a
vocação da criação e a sua ordenação ao serviço do homem.
Todos têm de ser solidários no domínio da terra. Por
isso, ressalta o direito de todos à propriedade da terra (no quadro do
destino universal dos bens), para que,
no respeito pelo direito que a cada um se deve reconhecer e na observância do
dever que a todos incumbe, a transformemos segundo o querer de Deus e a utilidade
do homem. Assim, o exercício da submissão da terra não pode caber a uns poucos
e, sobretudo, estes não podem submeter e oprimir os outros. E tanto a
propriedade coletiva, que devia prover ao bem-estar de todos e de cada um, como
a propriedade privada, que devia ser expressão da liberdade e da capacidade empreendedora
do homem, devem possibilitar a realização de todos e de cada um pelo trabalho e
prover às necessidades de vida condigna por parte de todos e de cada um. Neste contexto,
todos devem dar o máximo das suas possibilidades em prol de si e do próximo e
auferir tudo aquilo que as suas necessidades impõem, mesmo que já não possam valorizar
a terra e a si próprios pelo trabalho. Nunca a Igreja deixou de censurar os
excessos da coletivização dos recursos como o esquecimento da função social da
propriedade, mesmo que privada. É que todos somos responsáveis perante a
criação, perante os outros e perante Deus. E não vale a pena separar, no “Magnificat” de Maria, o sentido da
exultação espiritual da disponibilidade para lutar pela verdade e pela justiça.
O Deus de Maria é o Deus da Justiça, não se devendo, por isso, entender o Evangelho
de modo apenas terreno nem apenas simbolizante: nem materialismo rude nem
angelismo puro.
O Evangelho é totalizante, totalmente interpelador e garantidamente
libertador.
Que Bruto da Costa, agora do lado de lá passe a observar
a nossa luta contra a pobreza!
2016.11.12 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário