A história conta-se em traços rápidos. Uma mulher, grávida de 5 meses, acaba de se suicidar
em Gujrat (Paquistão). A criança que tinha a crescer dentro de si foi o resultado duma violação
ordenada pelo conselho tribal da sua aldeia, como forma de punir o próprio pai,
que terá alegadamente molestado a filha de um outro membro da comunidade.
Parece a velha pena de Talião, “olho
por olho, dente por dente”, aplicada a um membro feminino da família, já
que ao infrator réu de crime não pode ser aplicada a pena de ação conducente à
gravidez. Qualquer castigo que lhe fosse imposto não seria proporcional. E, vai
daí, sofre a punição quem não tem culpa alguma do crime perpetrado.
E este caso está longe de ser único ou mesmo raro. Ao invés, o destino desta jovem mulher – o abuso
sexual – é o destino habitual da maioria das mulheres que são castigadas desta
forma pelos crimes dos homens das suas famílias. Depois, ou se suicidam porque
não aguentam a dor e a vergonha, ou são mortas pelos próprios familiares para
que a honra da família não fique comprometida, mas sã e salva. Ou seja, uma
rapariga é violada e o castigo dado ao criminoso é que a sua filha seja violada
também. A seguir, ou se suicida ou a imolam em nome da honra da família. É a
hipocrisia e o cinismo no seu melhor. E a consciência não lhes pesa!
Estamos perante “um tipo de lei”, como refere Paula
Cosme Pinto em artigo do Expresso on line
(do dia 14), “bastante comum no sistema panchayat,
que por muitas voltas que a lei paquistanesa dê, continua vivo”. Impera, dum
lado, a vergonha e o medo; do outro, a enviesada restituição da honorabilidade
da família. E o criminoso não paga, a não ser pelo esquema de pagamento
vicário: paga a filha pelo pai. Dir-se-ia entre nós: fica tudo em família.
Só que a situação é muito grave: coisifica e desfaz a
mulher e a criança, a ponto de não se poder acreditar que o Paquistão conheça minimamente
a Declaração Universal dos Direitos do
Homem ou a Declaração dos Direitos da Criança.
***
O
caso referido consta de alguns jornais indianos e paquistaneses, mas habitualmente a grande imprensa
internacional não dá nota de casos destes, que são bastante comuns naquelas
paragens.
Uma das muitas motivações dos preditos crimes de honra
é o facto de as filhas terem sido violadas. Terem sido passíveis de abuso
sexual pode significar que tiveram relações sexuais fora do casamento e,
portanto, merecem a morte. Tão cruel e arcaico uso, em pleno século XXI!
A história individual da maioria destas
mulheres fica silenciada e esquecida para sempre no momento da sua morte ditada
e perpetrada ou autoinfligida.
Paula Cosme Pinto dá conta dum trabalho multimédia que
partilhou sobre o tema em que refere o espetáculo que apresenta, em Karachi, Mukhtar
Mai, uma vítima de violação coletiva que – devendo ter-se suicidado segundo as
leis da honra familiar do clã – subiu, num desfile de moda, às passarelas pela
mão da estilista Roziba Munib e foi efusivamente aplaudida.
Foram aplausos contra a vergonha que era suposto ela sentir
pelo que lhe aconteceu e contra um sistema de justiça popular selvagem e
obsoleto, mas que persiste em condicionar a vida e a ditar a morte de milhares
de meninas e mulheres todos os anos.
Como é possível uma comunidade assumir a violação
coletiva ou a violação sucessiva como forma de ministrar a justiça? Só num
sistema de poder absoluto do clã e sufragado localmente, sem o controlo de uma
instância técnico-legal lúcida e
competente!
Bem se vê que a justiça penal deve, nas sociedades
contemporânea, ser ministrada em nome do povo, mas nunca pelo povo. A justiça
penal deve ser cega e imparcial, mas não apaixonada nem desviante, muito menos
praticada contra quem não tem qualquer responsabilidade pelo crime ou pela
infração.
***
Foi mencionada Mukthar Mai. Na verdade, trata-se de uma referência feminina na luta pelos
direitos das mulheres no Paquistão por ter vencido a vergonha e o medo e
exigido uma justiça consentânea com a dignidade pessoal depois de ter sofrido o
pior da sua vida, em 2002, na sua aldeia, quando tinha a idade de 28 anos.
Recaíam suspeitas sobre o seu irmão mais novo de que mantinha um namoro ilícito
com uma mulher de um clã superior. O conselho da aldeia reuniu e proferiu a
sentença: a irmã do “criminoso” seria violada por um grupo de homens do clã
injuriado. E isso foi levado a cabo numa sala fechada e escura, enquanto do
lado de fora mais de uma centena de outros homens assobiavam e batiam palmas. Nas
horas e dias subsequentes, Mukthar Mai só queria morrer. Porém, depois do
desespero e da dor veio a coragem. E, contra tudo e contra todos, reagiu
exigindo justiça às autoridades acima das do conselho da sua aldeia.
O seu caso de coragem, tão raro, gerou furor na imprensa
paquistanesa e depressa chegou à internacional. O crime subiu ao Supremo
Tribunal de Justiça e os violadores e alguns homens do conselho da aldeia (que tinham proferido aquela sentença de violação coletiva) foram condenados, seis dos quais à pena
capital. Todos recorreram e acabaram por mal cumprir as suas penas. Todavia, a coragem
e determinação de Mukthar Mai fizeram história e serviram de ânimo, exemplo e
motivação a milhares de mulheres do país.
Agora, aos 42 anos, Mai passou a devotada ativista dos
direitos das mulheres paquistanesas. Matrimoniou-se com um homem que a estima e
respeita, utilizou a indeminização a que teve direito para a construção de um
abrigo para mulheres que se encontrem em situação similar da sua, recebeu
diversas condecorações mundo fora, escreveu um livro com a sua história – um
verdadeiro – e dá a cara recorrentemente para falar sobre a opressão feminina
no seu país.
Recentemente enveredou pela moda para chamar o mundo à
atenção para o sofrimento de muitas mulheres, vítimas de punições imerecidas só
porque têm de pagar por crimes de outrem.
Ora, os eventos de moda podem tornar-se um poderoso
meio de alerta para mostrar ao mundo os desvios da justiça, o atropelamento dos
direitos humanos e a sanha malvada da parte de quem se sente com poder sobre a
vida e a morte dos outros. Por outro lado, é uma forma de escalpelizar a
silenciosa falta de responsabilidade pelos males sociais que acontecem a outros
e que bem podiam ser evitados. Assim, a moda, sem deixar de ser “um mundo de glamour e de coisas bonitas”, é também “um
palco forte para fazer chegar imagens e mensagens às massas”.
Convenhamos que “associar glamour e direitos humanos num evento tão mediático como este é
simplesmente inteligente”. E Mai conseguiu fazer acontecer uma Semana da Moda
do Paquistão, o que só começou a ser possível no país em 2010, e ainda sob
muita controvérsia.
É mesmo necessário desfazer a ideia de que nascer
mulher naquele país é uma desvantagem que se recebe logo de partida em casa e
torna-se urgente combater a opressão que as mulheres vivem. E, quanto à honra
da família, é preciso repetir à saciedade que não são as vítimas de crimes
atrozes que têm de ter vergonha e medo. A este respeito, Mai apela a que “não
percam a esperança por causa da injustiça, porque certamente acabaremos por ter
justiça um dia”.
***
A AP (Associated
Press)
fez um trabalho multimédia sob o título “Honor
Killings” em que dá conta de casos
igualmente horrendos, de que ressaltam: a morte de Suraya à facada pelo marido
sob a acusação de manter relações ilícitas; o assassínio de Shazia, a
tiro pelos seus três irmãos, acusada de não aceitar um casamento arranjado; a
morte de Saira, pelos próprios pais, sob a mesma acusação; o estrangulamento
até à morte de Manisha, pelos sogros que não suportaram a vergonha, sob a
acusação de ter sido violada (Horror!). Trata-se de apenas
quatro nomes de entre as mais de três mil mulheres que entre 2013 e 1015 foram
mortas no Paquistão no quadro dos chamados crimes de honra – nomes que agência Associated Press não deixará cair no
olvido.
As grandes agências noticiosas, cujo enfoque diário está muito
ligado à atualidade do mundo, não costumam dar guarida a notícias destes crimes
de honra. De facto, eles não constituem novidade e só chegam a ser notícia
quando a forma como são praticados os torna demasiado grotescos para que possam
passar despercebidos. Não obstante, estas raras peças jornalísticas fazem-nos
perceber que, infelizmente, estes homicídios fazem parte da atualidade e
merecem a nossa atenção. Só no Paquistão, todos os dias há três pessoas
assassinadas em supostos crimes de honra. No âmbito da questão patriarcal por
trás desta necessidade de matar para salvar a honra da família, fica mais do
que certo que os assassinos são invariavelmente familiares das vítimas. Quanto
aos pretextos, podem ser tão simples como a filha ser vista a conversar com um
rapaz ou esta querer ter uma palavra a dizer sobre o homem com quem se há de
casar.
A Comissão para os Direitos Humanos do Paquistão revela que estes
crimes têm aumentado nos últimos anos ou, pelo menos, aumentou o número de
casos denunciados às autoridades. No ano de 2015, 1096 mulheres (e também 88 homens) foram mortas por familiares
que acreditavam que elas tinham desonrado o nome da família. Quase 200 destas
vítimas eram menores de idade. Em 2014 tinham sido à volta de 1000 e em 2013
cerca de 870.
Neste país, considerado um dos mais perigosos do mundo para uma
mulher viver, a palavra feminina ainda pouco conta no que toca à escolha do seu
destino. E a “pedagogia” em torno da honra da família enquanto bem maior começa
muito cedo. Homens e mulheres são educados para acharem normais estes crimes,
como se fossem aceitáveis e justificáveis. Assim, por exemplo, um marido farto
da mulher pode simplesmente, sem ser questionado, levantar uma falta suspeita e
matá-la para se ver livre do ‘empecilho’. Este estilo retrógrado e
discriminatório aliou-se a uma lei que permitiu durante décadas que o perdão
familiar dado ao criminoso nestes casos fosse o suficiente para que justiça não
acontecesse. Ninguém era condenado.
No último ano, o tema tornou-se mediático, sobretudo depois de ter
sido atribuído a Sharmeen Obaid Chinoy o Óscar pelo filme “A Girl in The River – The Price of Fogiveness”. Baseado em história verídica, a realizadora paquistanesa deu voz
a uma sobrevivente cujo relato chocou o mundo. A partir de então reergueram-se
as vozes pela alteração da lei e foram postas marcha muitas ações de sensibilização
pública. E, este mês, foi aprovado um projeto de
lei que prevê 25 anos de prisão para crimes do género.
Em memória de todas aquelas que não viram feita justiça, o
trabalho da AP termina de forma particularmente tocante: com um mini obituário
de centenas de vítimas no ano de 2015, que perpetua os nomes de quem perdeu a
vida em prol da dita honra da família.
2016.11.17 – Louro de
Carvalho
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