quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Estranha forma de fazer justiça em pleno século XXI

A história conta-se em traços rápidos. Uma mulher, grávida de 5 meses, acaba de se suicidar em Gujrat (Paquistão). A criança que tinha a crescer dentro de si foi o resultado duma violação ordenada pelo conselho tribal da sua aldeia, como forma de punir o próprio pai, que terá alegadamente molestado a filha de um outro membro da comunidade.
Parece a velha pena de Talião, “olho por olho, dente por dente”, aplicada a um membro feminino da família, já que ao infrator réu de crime não pode ser aplicada a pena de ação conducente à gravidez. Qualquer castigo que lhe fosse imposto não seria proporcional. E, vai daí, sofre a punição quem não tem culpa alguma do crime perpetrado.
E este caso está longe de ser único ou mesmo raro. Ao invés, o destino desta jovem mulher – o abuso sexual – é o destino habitual da maioria das mulheres que são castigadas desta forma pelos crimes dos homens das suas famílias. Depois, ou se suicidam porque não aguentam a dor e a vergonha, ou são mortas pelos próprios familiares para que a honra da família não fique comprometida, mas sã e salva. Ou seja, uma rapariga é violada e o castigo dado ao criminoso é que a sua filha seja violada também. A seguir, ou se suicida ou a imolam em nome da honra da família. É a hipocrisia e o cinismo no seu melhor. E a consciência não lhes pesa!
Estamos perante “um tipo de lei”, como refere Paula Cosme Pinto em artigo do Expresso on line (do dia 14), “bastante comum no sistema panchayat, que por muitas voltas que a lei paquistanesa dê, continua vivo”. Impera, dum lado, a vergonha e o medo; do outro, a enviesada restituição da honorabilidade da família. E o criminoso não paga, a não ser pelo esquema de pagamento vicário: paga a filha pelo pai. Dir-se-ia entre nós: fica tudo em família.
Só que a situação é muito grave: coisifica e desfaz a mulher e a criança, a ponto de não se poder acreditar que o Paquistão conheça minimamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem ou a Declaração dos Direitos da Criança.
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O caso referido consta de alguns jornais indianos e paquistaneses, mas habitualmente a grande imprensa internacional não dá nota de casos destes, que são bastante comuns naquelas paragens.
Uma das muitas motivações dos preditos crimes de honra é o facto de as filhas terem sido violadas. Terem sido passíveis de abuso sexual pode significar que tiveram relações sexuais fora do casamento e, portanto, merecem a morte. Tão cruel e arcaico uso, em pleno século XXI!
A história individual da maioria destas mulheres fica silenciada e esquecida para sempre no momento da sua morte ditada e perpetrada ou autoinfligida.
Paula Cosme Pinto dá conta dum trabalho multimédia que partilhou sobre o tema em que refere o espetáculo que apresenta, em Karachi, Mukhtar Mai, uma vítima de violação coletiva que – devendo ter-se suicidado segundo as leis da honra familiar do clã – subiu, num desfile de moda, às passarelas pela mão da estilista Roziba Munib e foi efusivamente aplaudida.
Foram aplausos contra a vergonha que era suposto ela sentir pelo que lhe aconteceu e contra um sistema de justiça popular selvagem e obsoleto, mas que persiste em condicionar a vida e a ditar a morte de milhares de meninas e mulheres todos os anos.
Como é possível uma comunidade assumir a violação coletiva ou a violação sucessiva como forma de ministrar a justiça? Só num sistema de poder absoluto do clã e sufragado localmente, sem o controlo de uma instância técnico-legal  lúcida e competente!
Bem se vê que a justiça penal deve, nas sociedades contemporânea, ser ministrada em nome do povo, mas nunca pelo povo. A justiça penal deve ser cega e imparcial, mas não apaixonada nem desviante, muito menos praticada contra quem não tem qualquer responsabilidade pelo crime ou pela infração.
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Foi mencionada Mukthar Mai. Na verdade, trata-se de uma referência feminina na luta pelos direitos das mulheres no Paquistão por ter vencido a vergonha e o medo e exigido uma justiça consentânea com a dignidade pessoal depois de ter sofrido o pior da sua vida, em 2002, na sua aldeia, quando tinha a idade de 28 anos. Recaíam suspeitas sobre o seu irmão mais novo de que mantinha um namoro ilícito com uma mulher de um clã superior. O conselho da aldeia reuniu e proferiu a sentença: a irmã do “criminoso” seria violada por um grupo de homens do clã injuriado. E isso foi levado a cabo numa sala fechada e escura, enquanto do lado de fora mais de uma centena de outros homens assobiavam e batiam palmas. Nas horas e dias subsequentes, Mukthar Mai só queria morrer. Porém, depois do desespero e da dor veio a coragem. E, contra tudo e contra todos, reagiu exigindo justiça às autoridades acima das do conselho da sua aldeia.
O seu caso de coragem, tão raro, gerou furor na imprensa paquistanesa e depressa chegou à internacional. O crime subiu ao Supremo Tribunal de Justiça e os violadores e alguns homens do conselho da aldeia (que tinham proferido aquela sentença de violação coletiva) foram condenados, seis dos quais à pena capital. Todos recorreram e acabaram por mal cumprir as suas penas. Todavia, a coragem e determinação de Mukthar Mai fizeram história e serviram de ânimo, exemplo e motivação a milhares de mulheres do país.
Agora, aos 42 anos, Mai passou a devotada ativista dos direitos das mulheres paquistanesas. Matrimoniou-se com um homem que a estima e respeita, utilizou a indeminização a que teve direito para a construção de um abrigo para mulheres que se encontrem em situação similar da sua, recebeu diversas condecorações mundo fora, escreveu um livro com a sua história – um verdadeiro – e dá a cara recorrentemente para falar sobre a opressão feminina no seu país.
Recentemente enveredou pela moda para chamar o mundo à atenção para o sofrimento de muitas mulheres, vítimas de punições imerecidas só porque têm de pagar por crimes de outrem.
Ora, os eventos de moda podem tornar-se um poderoso meio de alerta para mostrar ao mundo os desvios da justiça, o atropelamento dos direitos humanos e a sanha malvada da parte de quem se sente com poder sobre a vida e a morte dos outros. Por outro lado, é uma forma de escalpelizar a silenciosa falta de responsabilidade pelos males sociais que acontecem a outros e que bem podiam ser evitados. Assim, a moda, sem deixar de ser “um mundo de glamour e de coisas bonitas”, é também “um palco forte para fazer chegar imagens e mensagens às massas”.
Convenhamos que “associar glamour e direitos humanos num evento tão mediático como este é simplesmente inteligente”. E Mai conseguiu fazer acontecer uma Semana da Moda do Paquistão, o que só começou a ser possível no país em 2010, e ainda sob muita controvérsia.
É mesmo necessário desfazer a ideia de que nascer mulher naquele país é uma desvantagem que se recebe logo de partida em casa e torna-se urgente combater a opressão que as mulheres vivem. E, quanto à honra da família, é preciso repetir à saciedade que não são as vítimas de crimes atrozes que têm de ter vergonha e medo. A este respeito, Mai apela a que “não percam a esperança por causa da injustiça, porque certamente acabaremos por ter justiça um dia”.
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A AP (Associated Press) fez um trabalho multimédia sob o título “Honor Killings em que dá conta de casos igualmente horrendos, de que ressaltam: a morte de Suraya à facada pelo marido sob a acusação de manter relações ilícitas; o assassínio de Shazia, a tiro pelos seus três irmãos, acusada de não aceitar um casamento arranjado; a morte de Saira, pelos próprios pais, sob a mesma acusação; o estrangulamento até à morte de Manisha, pelos sogros que não suportaram a vergonha, sob a acusação de ter sido violada (Horror!). Trata-se de apenas quatro nomes de entre as mais de três mil mulheres que entre 2013 e 1015 foram mortas no Paquistão no quadro dos chamados crimes de honra – nomes que agência Associated Press não deixará cair no olvido.
As grandes agências noticiosas, cujo enfoque diário está muito ligado à atualidade do mundo, não costumam dar guarida a notícias destes crimes de honra. De facto, eles não constituem novidade e só chegam a ser notícia quando a forma como são praticados os torna demasiado grotescos para que possam passar despercebidos. Não obstante, estas raras peças jornalísticas fazem-nos perceber que, infelizmente, estes homicídios fazem parte da atualidade e merecem a nossa atenção. Só no Paquistão, todos os dias há três pessoas assassinadas em supostos crimes de honra. No âmbito da questão patriarcal por trás desta necessidade de matar para salvar a honra da família, fica mais do que certo que os assassinos são invariavelmente familiares das vítimas. Quanto aos pretextos, podem ser tão simples como a filha ser vista a conversar com um rapaz ou esta querer ter uma palavra a dizer sobre o homem com quem se há de casar.
A Comissão para os Direitos Humanos do Paquistão revela que estes crimes têm aumentado nos últimos anos ou, pelo menos, aumentou o número de casos denunciados às autoridades. No ano de 2015, 1096 mulheres (e também 88 homens) foram mortas por familiares que acreditavam que elas tinham desonrado o nome da família. Quase 200 destas vítimas eram menores de idade. Em 2014 tinham sido à volta de 1000 e em 2013 cerca de 870.
Neste país, considerado um dos mais perigosos do mundo para uma mulher viver, a palavra feminina ainda pouco conta no que toca à escolha do seu destino. E a “pedagogia” em torno da honra da família enquanto bem maior começa muito cedo. Homens e mulheres são educados para acharem normais estes crimes, como se fossem aceitáveis e justificáveis. Assim, por exemplo, um marido farto da mulher pode simplesmente, sem ser questionado, levantar uma falta suspeita e matá-la para se ver livre do ‘empecilho’. Este estilo retrógrado e discriminatório aliou-se a uma lei que permitiu durante décadas que o perdão familiar dado ao criminoso nestes casos fosse o suficiente para que justiça não acontecesse. Ninguém era condenado.
No último ano, o tema tornou-se mediático, sobretudo depois de ter sido atribuído a Sharmeen Obaid Chinoy o Óscar pelo filme “A Girl in The River – The Price of Fogiveness. Baseado em história verídica, a realizadora paquistanesa deu voz a uma sobrevivente cujo relato chocou o mundo. A partir de então reergueram-se as vozes pela alteração da lei e foram postas marcha muitas ações de sensibilização pública. E, este mês, foi aprovado um projeto de lei que prevê 25 anos de prisão para crimes do género.
Em memória de todas aquelas que não viram feita justiça, o trabalho da AP termina de forma particularmente tocante: com um mini obituário de centenas de vítimas no ano de 2015, que perpetua os nomes de quem perdeu a vida em prol da dita honra da família. 

2016.11.17 – Louro de Carvalho

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