Escudado num parecer dos serviços jurídicos da Caixa
Geral de Depósitos (CGD), António Domingues,
novo presidente da CGD, garantiu que não iria entregar a sua declaração de
rendimentos junto do Tribunal Constitucional (TC). O Primeiro-Ministro, na linha do que oportunamente referiu o Ministro
das Finanças, atesta que a Administração do banco público cumpriu todos os
requisitos legais perante o acionista Estado e que incumbe ao TC pronunciar-se
se os administradores devem ou não apresentar a declaração de rendimentos.
O PSD contrapõe dizendo que o decreto aprovado pelo
Governo é “inconstitucional”. E o Presidente do Tribunal Constitucional veio à
liça esclarecer que o Tribunal não toma qualquer iniciativa sobre matéria,
visto que precisa de ser estimulado.
Ora o diploma legal a que se atêm os preditos serviços
jurídicos é o Decreto-Lei n.º 39/2016, de 28 de julho, que
segundo o seu art.º 1.º, “procede à 3.ª
alteração ao estatuto do gestor público, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2007,
de 27 de março, alterado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, e pelo
Decreto-Lei n.º 8/2012, de 18 de janeiro”. E o seu art.º 2.º limita-se a acrescentar
um número ao art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 71/2007, de
27 de março, transformando o corpo do anterior em n.º 1 e redigindo o n.º 2 nos
termos seguintes:
“O presente
decreto-lei não se aplica a quem seja designado para órgão de administração de
instituições de crédito integradas no setor empresarial do Estado e
qualificadas como 'entidades supervisionadas significativas', na aceção do
ponto 16) do artigo 2.º do Regulamento (UE) n.º 468/2014, do Banco Central Europeu,
de 16 de abril de 2014”.
***
Pessoalmente, não vejo qual é o mal em os
administradores da CGD apresentarem a declaração de rendimentos ao TC, não
percebo de que é que possam ter medo. Por outro lado, pergunto-me qual a
vantagem dessa entrega desde que ela corresponda à verdade e só à verdade, mas
interrogo-me sobre as consequências da não verdade total da declaração. A falsa
declaração é punível nos termos da lei. Mas qual gestor público é que já foi
objeto de punição? Depois, a transparência é um valor, mas um valor relativo.
Talvez a eficiência e a eficácia sejam valores mais apreciáveis.
Ora, segundo a disposição legal em vigor, os
administradores da CGD não são obrigados a declarar rendimentos e património junto
do TC nem a ter os seus vencimentos condicionados pelo do Primeiro-Ministro.
Os partidos têm o direito de discordar da oportunidade
e do teor do decreto-lei referenciado. Nesse caso, poderiam e deveriam ter
suscitado a apreciação parlamentar do diploma nos termos constitucionais. Com
efeito, o art.º 169.º da CRP estipula no seu n.º 1:
“Os decretos-leis, salvo os
aprovados no exercício da competência legislativa exclusiva do Governo, podem
ser submetidos a apreciação da Assembleia da República, para efeitos de
cessação de vigência ou de alteração, a requerimento de dez deputados, nos
trinta dias subsequentes à publicação, descontados os períodos de suspensão do
funcionamento da Assembleia da República”.
Seria assim tão difícil o partido com maior
representação parlamentar encontrar dez dos seus deputados que levassem o DL a
discussão no Parlamento? Quiseram ir de férias e agora atiram-se à CGD e ao
Governo, provavelmente para ver se a Administração desiste e o processo de
capitalização do banco do Estado, tão difícil de negociar com as instâncias
europeias, periga. Talvez fosse melhor para alguns que a CGD se desfizesse e
fosse vendida ao desbarato nas sendas do BPN, do Banif e quiçá do Novo Banco!
Depois, o Estado teria de criar uma nova entidade
financeira para satisfazer as obrigações sociais da coletividade. Aliás, que é
feito do Banco de Fomento, criado e sem ação?
O decreto o Governo é uma lei feita à medida, dizem. É
verdade, mas infelizmente não é a única nem apenas uma das poucas. Digam quais
são e travem todas as leis feitas à medida. Se até a revisão constitucional de
1982 foi, em parte, em contramão em relação ao general Ramalho Eanes no
atinente à clarificação dos poderes presidenciais…
O PSD diz que o decreto aprovado pelo Governo é
“inconstitucional”. Não sei se o decreto-lei é inconstitucional ou não. Porém,
o Presidente da República não teve dúvidas sobre a sua constitucionalidade,
pelo que não o submeteu ao TC, como poderia ter feito, para apreciação
preventiva da constitucionalidade. E não teve objeção política suficiente para
lhe opor o veto político, pelo que o promulgou. É certo que Marcelo, como já
nos habituou, fez comentários justificativos aquando da promulgação, mas não
atinentes à declaração de rendimentos, mas em relação aos vencimentos. A
respeito disto, recordou que já havia no país casos em que gestores de empresas
públicas auferiam vencimento superior ao do Primeiro-Ministro e que
administradores da banca privada diminuíram os seus vencimentos enquanto, em
tempo de crise, o seu banco tinha dívida para com o Estado. Agora, vem dizer
que os administradores da CGD devem apresentar a tal declaração de rendimentos junto
do TC.
Porém, em vez da turbulência em torno da CGD e do DL
n.º 39/2016, de 28 de julho, os partidos descontentes
deveriam ter acionado o mecanismo da fiscalização sucessiva da
constitucionalidade. Na verdade, o n.º 2 do art.º 281.º, n.º 2 da CRP estabelece:
“Podem
requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade ou de
ilegalidade, com força obrigatória geral: a) O Presidente da República; b)
O Presidente da Assembleia da República; c) O Primeiro-Ministro; d)
O Provedor de Justiça; e) O Procurador-Geral da República; f) Um
décimo dos deputados à Assembleia da República; g) Os Representantes da
República, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas, os presidentes das
Assembleias Legislativas das regiões autónomas, os presidentes dos Governos
Regionais ou um décimo dos deputados à respetiva Assembleia Legislativa, quando
o pedido de declaração de inconstitucionalidade se fundar em violação dos
direitos das regiões autónomas ou o pedido de declaração de ilegalidade se
fundar em violação do respetivo estatuto.
Ora no caso vertente, pergunto como acima: O partido
com a maior representação parlamentar não conseguia, entre os seus pares, 23
deputados para dar cumprimento ao previsto na alínea f) deste número?
***
Até há pouco, nem António Domingues nem nenhum outro membro da administração
da CGD entregaram as suas declarações de rendimentos e de património ao TC. O
prazo de 60 dias para o fazerem, de acordo com o estatuto do gestor público já
expirou. Pelos vistos, as ditas declarações estão preenchidas e fechadas no cofre
do banco, apenas disponíveis para a comissão de remuneração e vencimentos da
própria CGD. O acionista Estado também pode ter acesso, mas só se apresentar um
motivo devidamente fundamentado.
Era expectável que estes documentos não chegassem ao destino, já que a sua
não apresentação foi uma das condições impostas por Domingues ao ministro das
Finanças para aceitar o cargo no banco público. No seu espaço de comentário na
SIC, Marques Mendes acusou o Governo de ter intencionalmente (sem
transparência e às escondidas) criado um
regime de exceção para estes gestores, de modo a isentá-los do dever de
apresentação das declarações de património.
Dado considerarem inconstitucional o predito regime, membros do PSD
consideram o pedido da fiscalização sucessiva do diploma. Mas esperam pelas
votações no Parlamento sobre a matéria.
Com efeito, a polémica em torno das declarações de rendimentos do
presidente da Caixa poderá vir a criar cisões dentro do Governo e/ou da maioria
que o apoia. Bloco de Esquerda e Partido Comunista querem que os administradores
do banco público apresentem as declarações, uma vez que são essas as regras que
qualquer responsável com estatuto de gestor público está obrigado a cumprir. O líder
parlamentar do BE já anunciou que o partido vai apresentar no Parlamento uma
proposta para limitar os salários dos gestores públicos ao vencimento do
Primeiro-Ministro. Jerónimo de Sousa garante que não se juntará com a direita
na questão CGD.
António Costa não fez mais do que remeter a polémica para o TC, invocando o
princípio da separação de poderes. No final duma homenagem ao antigo vereador
da Câmara de Lisboa e ex-dirigente do CDS-PP Pedro Feist, no passado dia 27 de
outubro, o Primeiro-Ministro declarou:
“Essa é uma questão a que a CGD saberá responder e que
o Tribunal Constitucional saberá apreciar. No que diz respeito às obrigações do
Conselho de Administração em relação ao acionista, o Estado, essas estão
cumpridas”.
O Presidente do TC diz que sem uma pergunta sobre os
deveres dos administradores da CGD o TC não toma posição. Costa Andrade aguarda
que recorram aos juízes, pois, se ninguém colocar ao Tribunal alguma questão
sobre se estes administradores devem ou não entregar as respetivas declarações
de rendimentos e património, os juízes não se vão pronunciar. Diz ele que “o
Tribunal tem que ser estimulado e até agora ninguém o estimulou”.
Costa Andrade elucida que o TC não tem iniciativa nesta matéria e só a terá
se a isso for instado ou pelo Ministério Público ou pela administração da
Caixa, ou por outra instância. A convicção no TC é que isso acabará por
acontecer.
A dúvida instalada e à qual eventualmente os juízes acabarão por ter que
responder é se os administradores da CGD, que o Governo socialista excecionou
do estatuto do gestor público, têm, apesar disso, de declarar no TC rendimentos
e património. Domingues, presidente da CGD, já disse que não o tenciona fazer e
que está escudado por um parecer jurídico. PS e Governo, ao contrário, defendem
que Domingues deve fazê-lo.
Ora, do meu ponto de vista, o Partido Socialista, qua tali, tem legitimidade para se pronunciar nesse sentido, mas o
Governo é incoerente: se criou o regime de exceção, deve ser claro: pede
desculpa, volta atrás e faz promulgar outro decreto-lei, ou então dá força ao
seu partido e à maioria que o apoia para no Parlamento legislar em contrário.
Eu também penso que os administradores da CGD devem apresentar a declaração
de rendimentos e de património, por uma razão de lisura, ética e transparência,
mas, como outros portugueses, não estive no processo de criação do regime de exceção.
Ontem Marcelo regressou da América Latina, mas
continuava ineditamente sem agenda para os próximos dias e ponderava reação ao
impasse na Caixa Geral de Depósitos. Com efeito, este é agora o tema que mais
preocupa Belém, pois, as iniciativas do PSD para mudar o decreto que o
Presidente promulgou e/ou para questionar a constitucionalidade do mesmo,
colocam em causa as decisões de Marcelo sobre esta matéria.
E Marcelo já se pronunciou. Em nota de 10 pontos,
constante no site da Presidência da República, o Presidente sustenta que os
gestores da CGD estão obrigados a declarar rendimentos e património no TC,
escudado na finalidade do diploma de 1983 e visto que administram fundos de
origem estatal e foram objeto de escolha pelo Estado.
Não obstante, entende que “compete, porém, ao Tribunal Constitucional decidir
sobre a questão em causa” e “caso uma sua interpretação, diversa da enunciada,
vier a prevalecer, sempre poderá a Assembleia da República clarificar o sentido
legal também por via legislativa”.
António Domingues e o resto da equipa poderão requerer ao
TC que guarde segredo em relação às suas declarações de património e
rendimento, com base no artigo 107.º da lei que regula o banco do Estado, até
ao final de 2019. Os administradores da CGD já entregaram as
suas declarações de rendimento e património nos serviços competentes do banco
público, embora não haja sinais, por parte da equipa, de que estas venham a público
em breve.
Segundo
o Jornal de Negócios, os rendimentos
e patrimónios da nova equipa de gestores da Caixa podem vir a ser conhecidos,
mas só no final do mandato, pois uma coisa é o escrutínio do Estado e outra é a
do Tribunal Constitucional.
Caso
os juízes do Palácio Ratton entendam que o presidente da Caixa e a sua equipa
têm de apresentar aqueles documentos e os notifiquem nesse sentido, esse pedido
deverá ter resposta positiva, conta o Jornal
de Negócios. Contudo, o TC ficará limitado ao nível temporal.
Marcelo, se era esse o seu entendimento,
deveria ter vetado o diploma; e não vir agora fazer emenda de mão. Também nem
ele nem Costa deveriam atirar para o TC a resolução de uma dúvida surgida na aplicação
da Lei. Devia ser o Parlamento ou o Governo a fazer a clarificação.
Marcelo entende, segundo a nota
que divulgou, que a lei de 1983 não é revogada pelo decreto de 2016. Não tinha
que o ser expressamente. Basta que lei especial retire alguém da alçada da lei
geral. Além disso, lei gravosa para os destinatários deve ser interpretada de forma
restritiva.
Por seu turno, Costa Andrade tem
razão ao referir que o TC não toma iniciativas, mas isso é no caso da apreciação
da constitucionalidade ou da legalidade. Porém, no caso de incumprimento da lei,
o Ministério Público afeto ao TC deve tomar a iniciativa.
Por fim, indigna-me que os
partidos venham agora hipocritamente sentir-se confortados com a intervenção
recente do Chefe de Estado. E pergunto-me três coisas: Que faz correr neste momento
o PSD em torno da Caixa? Para que andamos a pagar aos deputados e aos
governantes? Basta-nos o Presidente e os Tribunais?
2016.11.04
– Louro de Carvalho
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