domingo, 6 de novembro de 2016

Estamos na varanda sobre as eleições norte-americanas

As coisas são como são e não como deveriam ser. Em termos normais, estas eleições deveriam interessar apenas aos americanos e os demais povos deviam poder olhar para elas com sentido de aceitação, de crítica ou mesmo de solidariedade cívico-política. Porém, dado que os EUA são uma grande potência mundial e se armam em polícias do mundo, as eleições interessam a todos e é pena que não possamos todos votar nelas.
A campanha eleitoral que os candidatos estão a corporizar é, a todos títulos, lamentável e exprime à saciedade aquilo que qualquer manual de ciência política devia escrever que não pode ser feito.
Creio que é a primeira vez que um candidato coloca em dúvida a aceitação dos resultados ou que declara aceitá-los apenas se ganhar. Se é normal solicitar a recontagem de votos nalgumas assembleias de voto por dúvidas surgidas a respeito de putativas irregularidades, não se afigura lícita a rejeição de resultados ou a dúvida sobre a sua aceitação anunciada por antecipação e profetizando a fraude do sistema. Parece ser a postura de quem julga os outros por si próprio. 
Ora, que fique bem claro: o mais importante para o mundo – e necessariamente para os EUA – é que todos aceitem o resultado das eleições independentemente de quem ganhe e que possam continuem a funcionar com normalidade democrática as sólidas instituições do país.
***
Na verdade, Donald Trump ganhou, quase contra todas as expectativas iniciais, as eleições primárias republicanas e tornou-se o mais heterodoxo candidato presidencial dos EUA desde há muitos anos. Foram excessivos e fortes os insultos, insolentes as afirmações feitas a propósito do Estado, dos cidadãos e, em especial, das mulheres. Falou contra os emigrados, as etnias mais desfavorecidas, promete fazer com que a América torne a ser grande, dando a ideia de que pretende a purificação da raça como se houvesse uma raça americana. Afinal, quem são e donde provêm os americanos? Todavia, não creio estar a reavivar-se a teoria hitleriana da raça pura!  
Por seu turno, Hillary Clinton parece ter subestimado o adversário e parece ter superacreditado no sentido das expectativas e previsões que apontavam quase em uníssono para um passeio fácil da candidata democrata rumo a uma apoteose eleitoral a 8 de novembro. Porém, a opinião pública – e a máquina eleitoral do concorrente avivou-lhe a memória – não esqueceu a sua prestação como Secretária de Estado durante o primeiro mandato de Barack Obama, sobretudo no atinente ao uso do e-mail pessoal para correspondência e tratamento de assuntos de Estado e das relações internacionais, com o que isso significa de falta de transparência e de segurança. Contudo, veio agora o FBI revelar que os novos e-mails não revelam quaisquer indícios de crime. Ora, o correto era investigarem primeiro e divulgar depois, não?!
Por outro lado, a candidata respondeu de forma pouco assertiva a alguns ataques de Trump nos debates televisivos; e agora o sistema judiciário ressuscitou a questão dos e-mails pessoais de Hillary.
Também aqueles que gostam de brincar às eleições ou que estão descontentes com o panorama e a prestação das candidaturas principais têm produzido declarações que não ajudam, incluindo a distribuição maciça de cartazes com o slogan “Everybody sucgks” (todos sugam, ou nenhum deles presta). E o estribilho replicou-se em autocolantes, pins e T-shirts, que rapidamente se espargiram pelo país.
Assim, em vésperas das eleições presidenciais nos EUA e contra quase todas as expectativas iniciais, Trump tem pelo menos algumas hipóteses de ser o próximo Presidente dos EUA. É verdadeiramente extraordinário que este candidato, tão unanimemente denunciado e desprezado pelo establishment político-mediático (e mesmo segmentos importantes e influentes do Partido Republicano), tenha conseguido chegar a esta situação. É certo que o crasso egocentrismo de Donald Trump não lhe permitirá apreciar assim os factos em caso de derrota, que esperamos seja real, mas chegar a este ponto é já uma vitória independentemente do resultado das eleições. Em Portugal, um candidato deste jaez que almejasse uma posição similar desta cantaria vitória mesmo durante e depois da contagem dos votos contra si e apesar de si.
Trata-se de uma situação vitoriosa de Trump que, por muito que se não goste dele, importa mais compreender do que censurar ou condenar. No seu percurso para o ato eleitoral a sua dinâmica de campanha alimentou-se, desde início, do ódio dirigido contra o candidato. E Trump, não tendo nada a perder, foi extremamente hábil em converter a atenção mediática que lhe foi dada pelos seus múltiplos e diversos atacantes em dois ativos preciosos: imenso tempo de antena grátis; e a construção duma imagem de outsider, atacado por todos os lados por desdizer do sistema vigente.
Essa imagem, por mais que ele queira exibir em contrário, é irreal em muitos aspetos. Com efeito, ainda há poucos anos atrás, Trump elogiava publicamente Bill e Hillary Clinton e integrava o respetivo círculo de amizades e influências. E, pela sua própria atividade empresarial, Trump tem sido muito mais um insider e um fã do sistema do que um outsider clássico que se rebela contra o sistema, que denuncia. Mais: tem usado a seu favor ao longo dos anos os vícios do sistema vigente, que agora descarta tão fácil e despudoradamente.
***
O clima político adensou-se de tal modo que a maioria dos americanos que, a 8 de novembro, vão eleger o 45.º Presidente dos Estados Unidos acha que nenhum dos candidatos presta. Uma sondagem recente da Gallup, empresa americana de estudos de opinião, revela que 65% dos eleitores tem uma opinião desfavorável sobre Trump e 55% não veem com bons olhos a possibilidade de Hillary vir a ser presidente. E somente metade dos eleitores que têm uma opinião positiva dos candidatos se mostra “muito favorável” à sua candidatura – diz o mesmo estudo. Depois, se a imagem dos candidatos não se alterou até à convenção e de julho passado se tem vindo a degradar, dificilmente se terá alterado para melhor nos últimos dias da campanha.
Por seu turno, um estudo da Pew Research Center refere ser esta a primeira vez que menos de 50% dos eleitores estão satisfeitos com as possibilidades de escolha do Presidente, escolha que, segundo o sistema eleitoral americano, não é feita direta e correspondencialmente com o voto dos eleitores – os eleitores escolhem os grandes eleitores, sendo que estes escolhem o Presidente, pelo que pode o número de votos totais num candidato não ser decisivo para que ele seja o Presidente. O valor mais baixo de eleitores satisfeitos com as candidaturas ocorreu em 1992, com 53% de norte-americanos a sentirem-se satisfeitos ou muito satisfeitos com os candidatos. Agora esse valor fica-se nos 33%. E é a primeira vez que esse valor percentual desce após as convenções partidárias. Em junho passado cifrava-se nos 40%.
De facto, a popularidade dos candidatos está em mínimos históricos.
Neste contexto geral de insatisfação, percebe-se que os eleitores votem no candidato que entendem ser o menor de dois males. E, contra todas as expectativas, será difícil prever quem sairá vencedor desta eleição presidencial. Segundo a sondagem do The Washington Post e do ABC News, a uma semana das eleições, Hillary terá 46% das intenções de voto e Trump 45% (mas sondagens anteriores davam justamente posição inversa). E longe, mas com desempenho que pode influenciar o resultado final, estão os candidatos Gary Johnson e Jill Stein, com 4% e 2%, respetivamente. Numa corrida só a dois, a vantagem da candidata democrata aumentaria para mais 3%, mas sempre dentro da margem de erro.
***
Segundo os padrões normais das eleições americanas, o que ele disse e o que ele fez ou outros fizeram por ele ou contra ele – ainda há pouco um grupo prometeu fazer guerra se Trump não ganhar as eleições e Trump teve de ser retirado do palco num comício devido a um burburinho que eclodiu na plateia – todas as polémicas que o candidato republicano originou ou acalentou seriam mais do que suficientes para retirar a Trump qualquer esperança de vencer a corrida à Casa Branca. Porém, esta está longe de ser uma eleição normal.
Esta imagem, habilidade tática e inimputabilidade de Trump de nada valeriam se não houvesse uma base popular de apoio recetiva à sua mensagem. O livro de Charles Murray, Coming Apart: The State of White America, 1960-2010, publicado antes do fenómeno Trump, de alguma forma antecipa a sua base sociológica. A candidatura de Trump e o movimento popular e populista a ela associado acabam por veicular as múltiplas frustrações e revoltas duma grande porção populacional. Desde vastos segmentos blue-collar que sentem ter sido ostracizados com a globalização até pequenas faixas mais ideológicas como a nova direita revolucionária agregada na alt-right ou elementos associados ao paleoconservadorismo que veem no candidato um indisfarçável némesis na sua longa cruzada contra o neoconservadorismo, Trump significa coisas diferentes para grupos muito diferentes, sendo mais sintoma do que causa. Encarando o candidato republicano como pragmático (numa leitura otimista) ou como oportunista (numa leitura razoavelmente demolidora), a sua postura é associada à retórica protecionista e moralizante. Dada a importância da globalização para o desenvolvimento, a erradicação da pobreza e a melhoria da vida de centenas de milhões de pessoas, a deriva protecionista nos EUA é um enorme risco para a economia do mundo.
Já Bernie Sanders quase ganhava as primárias democratas em nome do protecionismo e Hillary inverteu posições anteriores denunciando a NAFTA e declarando oposição ao TPP. Isto, ao mesmo tempo que os chavões da antiglobalização capitalizam também na Europa e unem sob a mesma bandeira, por exemplo, Marine Le Pen e as demais extremas-esquerdas.
Assim, ao invés do que os analistas previam reiteradamente (e não raro arrogantemente), não espero que Hillary tenha vitória esmagadora. Ao contrário: tudo está em aberto, embora com vantagem para Clinton. E o mais importante para os EUA – e para o mundo – é que os resultados sejam aceites por todos e o eleito ou a eleita disponha de condições para cumprir o mandato sem percalços; e não como Obama, que teve sérias dificuldade no segundo mandato – e que decidiu intervir na campanha para salvar a honra do convento democrata (o que em Portugal seria mal visto).
E a América é assim e não como queríamos que fosse!

2016.11-06 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário