As coisas
são como são e não como deveriam ser. Em termos normais, estas eleições
deveriam interessar apenas aos americanos e os demais povos deviam poder olhar
para elas com sentido de aceitação, de crítica ou mesmo de solidariedade
cívico-política. Porém, dado que os EUA são uma grande potência mundial e se
armam em polícias do mundo, as eleições interessam a todos e é pena que não
possamos todos votar nelas.
A campanha
eleitoral que os candidatos estão a corporizar é, a todos títulos, lamentável e
exprime à saciedade aquilo que qualquer manual de ciência política devia
escrever que não pode ser feito.
Creio que é
a primeira vez que um candidato coloca em dúvida a aceitação dos resultados ou
que declara aceitá-los apenas se ganhar. Se é normal solicitar a recontagem de
votos nalgumas assembleias de voto por dúvidas surgidas a respeito de putativas
irregularidades, não se afigura lícita a rejeição de resultados ou a dúvida
sobre a sua aceitação anunciada por antecipação e profetizando a fraude do
sistema. Parece ser a postura de quem julga os outros por si próprio.
Ora, que
fique bem claro: o mais importante para o mundo – e necessariamente para os EUA
– é que todos aceitem o resultado das eleições independentemente de quem ganhe
e que possam continuem a funcionar com normalidade democrática as sólidas
instituições do país.
***
Na verdade, Donald
Trump ganhou, quase contra todas as expectativas iniciais, as eleições primárias
republicanas e tornou-se o mais heterodoxo candidato presidencial dos EUA desde
há muitos anos. Foram excessivos e fortes os insultos, insolentes as afirmações
feitas a propósito do Estado, dos cidadãos e, em especial, das mulheres. Falou
contra os emigrados, as etnias mais desfavorecidas, promete fazer com que a
América torne a ser grande, dando a ideia de que pretende a purificação da raça
como se houvesse uma raça americana. Afinal, quem são e donde provêm os
americanos? Todavia, não creio estar a reavivar-se a teoria hitleriana da raça
pura!
Por seu
turno, Hillary Clinton parece ter subestimado o adversário e parece ter
superacreditado no sentido das expectativas e previsões que apontavam quase em
uníssono para um passeio fácil da candidata democrata rumo a uma apoteose
eleitoral a 8 de novembro. Porém, a opinião pública – e a máquina eleitoral do
concorrente avivou-lhe a memória – não esqueceu a sua prestação como Secretária
de Estado durante o primeiro mandato de Barack Obama, sobretudo no atinente ao
uso do e-mail pessoal para correspondência e tratamento de assuntos de Estado e
das relações internacionais, com o que isso significa de falta de transparência
e de segurança. Contudo, veio agora o FBI revelar que os novos e-mails não revelam
quaisquer indícios de crime. Ora, o correto era investigarem primeiro e divulgar
depois, não?!
Por outro
lado, a candidata respondeu de forma pouco assertiva a alguns ataques de Trump
nos debates televisivos; e agora o sistema judiciário ressuscitou a questão dos
e-mails pessoais de Hillary.
Também
aqueles que gostam de brincar às eleições ou que estão descontentes com o
panorama e a prestação das candidaturas principais têm produzido declarações
que não ajudam, incluindo a distribuição maciça de cartazes com o slogan
“Everybody sucgks” (todos sugam, ou nenhum deles presta). E o estribilho replicou-se em autocolantes, pins e T-shirts, que rapidamente se espargiram pelo país.
Assim, em
vésperas das eleições presidenciais nos EUA e contra quase todas as expectativas
iniciais, Trump tem pelo menos algumas hipóteses de ser o próximo Presidente
dos EUA. É verdadeiramente extraordinário que este candidato, tão unanimemente
denunciado e desprezado pelo establishment político-mediático
(e mesmo
segmentos importantes e influentes do Partido Republicano), tenha conseguido chegar a esta situação. É certo
que o crasso egocentrismo de Donald Trump não lhe permitirá apreciar assim os
factos em caso de derrota, que esperamos seja real, mas chegar a este ponto é
já uma vitória independentemente do resultado das eleições. Em Portugal, um
candidato deste jaez que almejasse uma posição similar desta cantaria vitória
mesmo durante e depois da contagem dos votos contra si e apesar de si.
Trata-se de
uma situação vitoriosa de Trump que, por muito que se não goste dele, importa
mais compreender do que censurar ou condenar. No seu percurso para o ato
eleitoral a sua dinâmica de campanha alimentou-se, desde início, do ódio dirigido
contra o candidato. E Trump, não tendo nada a perder, foi extremamente hábil em
converter a atenção mediática que lhe foi dada pelos seus múltiplos e diversos atacantes
em dois ativos preciosos: imenso tempo de antena grátis; e a construção duma
imagem de outsider, atacado por todos
os lados por desdizer do sistema vigente.
Essa imagem,
por mais que ele queira exibir em contrário, é irreal em muitos aspetos. Com
efeito, ainda há poucos anos atrás, Trump elogiava publicamente Bill e Hillary
Clinton e integrava o respetivo círculo de amizades e influências. E, pela sua
própria atividade empresarial, Trump tem sido muito mais um insider e um fã do sistema do que um outsider clássico que se rebela contra o
sistema, que denuncia. Mais: tem usado a seu favor ao longo dos anos os vícios
do sistema vigente, que agora descarta tão fácil e despudoradamente.
***
O clima político
adensou-se de tal modo que a maioria dos americanos que, a 8 de novembro, vão eleger
o 45.º Presidente dos Estados Unidos acha que nenhum dos candidatos presta. Uma
sondagem recente da Gallup, empresa americana
de estudos de opinião, revela que 65% dos eleitores tem uma opinião desfavorável
sobre Trump e 55% não veem com bons olhos a possibilidade de Hillary vir a ser presidente.
E somente metade dos eleitores que têm uma opinião positiva dos candidatos se mostra
“muito favorável” à sua candidatura – diz o mesmo estudo. Depois, se a imagem
dos candidatos não se alterou até à convenção e de julho passado se tem vindo a
degradar, dificilmente se terá alterado para melhor nos últimos dias da campanha.
Por seu
turno, um estudo da Pew Research Center
refere ser esta a primeira vez que menos de 50% dos eleitores estão satisfeitos
com as possibilidades de escolha do Presidente, escolha que, segundo o sistema
eleitoral americano, não é feita direta e correspondencialmente com o voto dos
eleitores – os eleitores escolhem os grandes eleitores, sendo que estes escolhem
o Presidente, pelo que pode o número de votos totais num candidato não ser
decisivo para que ele seja o Presidente. O valor mais baixo de eleitores satisfeitos
com as candidaturas ocorreu em 1992, com 53% de norte-americanos a sentirem-se
satisfeitos ou muito satisfeitos com os candidatos. Agora esse valor fica-se nos
33%. E é a primeira vez que esse valor percentual desce após as convenções partidárias.
Em junho passado cifrava-se nos 40%.
De facto, a popularidade
dos candidatos está em mínimos históricos.
Neste contexto
geral de insatisfação, percebe-se que os eleitores votem no candidato que entendem
ser o menor de dois males. E, contra todas as expectativas, será difícil prever
quem sairá vencedor desta eleição presidencial. Segundo a sondagem do The Washington Post e do ABC News, a uma semana das eleições,
Hillary terá 46% das intenções de voto e Trump 45% (mas
sondagens anteriores davam justamente posição inversa). E longe, mas com desempenho que pode influenciar o
resultado final, estão os candidatos Gary Johnson e Jill Stein, com 4% e 2%,
respetivamente. Numa corrida só a dois, a vantagem da candidata democrata aumentaria
para mais 3%, mas sempre dentro da margem de erro.
***
Segundo os
padrões normais das eleições americanas, o que ele disse e o que ele fez ou outros
fizeram por ele ou contra ele – ainda há pouco um grupo prometeu fazer guerra
se Trump não ganhar as eleições e Trump teve de ser retirado do palco num
comício devido a um burburinho que eclodiu na plateia – todas as polémicas que
o candidato republicano originou ou acalentou seriam mais do que suficientes
para retirar a Trump qualquer esperança de vencer a corrida à Casa Branca.
Porém, esta está longe de ser uma eleição normal.
Esta imagem,
habilidade tática e inimputabilidade de Trump de nada valeriam se não houvesse
uma base popular de apoio recetiva à sua mensagem. O livro de Charles
Murray, Coming Apart: The State of White America, 1960-2010,
publicado antes do fenómeno Trump, de alguma forma antecipa a sua base
sociológica. A candidatura de Trump e o movimento popular e populista a ela
associado acabam por veicular as múltiplas frustrações e revoltas duma grande
porção populacional. Desde vastos segmentos blue-collar que
sentem ter sido ostracizados com a globalização até pequenas faixas mais
ideológicas como a nova direita revolucionária agregada na alt-right ou
elementos associados ao paleoconservadorismo que veem no candidato um indisfarçável
némesis na sua longa cruzada contra o neoconservadorismo, Trump significa coisas
diferentes para grupos muito diferentes, sendo mais sintoma do que causa. Encarando
o candidato republicano como pragmático (numa leitura otimista) ou como oportunista (numa leitura razoavelmente demolidora), a sua postura é associada à retórica protecionista
e moralizante. Dada a importância da globalização para o desenvolvimento, a erradicação
da pobreza e a melhoria da vida de centenas de milhões de pessoas, a deriva protecionista
nos EUA é um enorme risco para a economia do mundo.
Já Bernie
Sanders quase ganhava as primárias democratas em nome do protecionismo e
Hillary inverteu posições anteriores denunciando a NAFTA e declarando oposição
ao TPP. Isto, ao mesmo tempo que os chavões da antiglobalização capitalizam
também na Europa e unem sob a mesma bandeira, por exemplo, Marine Le Pen e as
demais extremas-esquerdas.
Assim, ao invés
do que os analistas previam reiteradamente (e não raro arrogantemente), não espero que Hillary tenha vitória esmagadora. Ao
contrário: tudo está em aberto, embora com vantagem para Clinton. E o mais
importante para os EUA – e para o mundo – é que os resultados sejam aceites por
todos e o eleito ou a eleita disponha de condições para cumprir o mandato sem percalços;
e não como Obama, que teve sérias dificuldade no segundo mandato – e que
decidiu intervir na campanha para salvar a honra do convento democrata (o que em
Portugal seria mal visto).
E a América
é assim e não como queríamos que fosse!
2016.11-06 – Louro de Carvalho
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