Fui
à missa da solenidade de Todos os Santos, ao meio dia de hoje, à igreja dos
Passionistas. Presidiu, com a apresentação do padre Silva, o padre José
Gregório, ordenado anteontem, 30 de outubro, que num singular à vontade e
sentido de ser e estar explicou o sentido da solenidade que leva a Igreja a
honrar a memória de todos aqueles e aquelas que tentaram seguir os passos de
Jesus. E dizia o sacerdote que talvez se contem entre esses muitos os nossos
familiares que passaram uma vida inteira a aturar-nos e a enfrentar as
dificuldades da vida com o sentido da fé e da esperança cristã.
Referiu
que historicamente esta solenidade surgiu nos fins do século II quando os
cristãos verificavam que muitos dos seus foram martirizados nas perseguições
por terem a coragem de contra tudo e contra todos professarem a sua fé com a
heroicidade dos discípulos de Cristo. Resolveram assim honrar a memória destes
irmãos e irmãs, que já estavam com Cristo no Céu, prestando-lhes o culto
merecido e rogando a sua intercessão junto de Deus para que pudessem os vivos
manter o dinamismo de mostrar aos outros as razões da esperança e estar no mundo
sem ser do mundo.
A comemoração
regular começou quando, em 13 de maio de 609 ou 610, o Papa Bonifácio IV dedicou o Panteão (o templo romano em honra de todos os
deuses e deusas do paganismo) a Santa Maria Mãe de Deus e a todos os mártires. Depois, o Papa Gregório
III (731-741) dedicou uma capela em Roma a Todos
os Santos e ordenou que eles fossem homenageados a 1 de novembro. E, em 835, o
Papa Gregório IV declarou o dia de Todos os Santos como festa universal da
Igreja.
***
Porém,
na ótica do novel sacerdote, mais importante que o percurso histórico é o da
Palavra de Deus que se faz e História e faz a História da Salvação e que hoje se
proclama na Liturgia. Assim, comentando o trecho do livro do Apocalipse (Ap
7,2-4.9-14), que foi
tomado como 1.ª leitura da Liturgia da Palavra, acentuou que Deus nos marcou a
cada um de modo que na multidão imensa de que fala o livro santo, Deus
reconhece cada um de nós pelo nosso nome, nossas ânsias e debilidades; e a marca
que infundiu em nossos corações é a do salmo responsorial sintetizada na
procura da face do Senhor, para n’ Ele sermos purificados.
Passando
à segunda leitura, da 1.ª carta de São João (1Jo 3,1-3), salientou a nossa qualidade de
filhos de Deus, bem amados, como seu dom gratuito em nosso favor, mas que nós
devemos tentar merecer pelo esforço do exercício de santidade. Com efeito, esta
filiação divina e a santidade a que somos chamados estão longe de atingir a
perfeição, que será atingida aquando da plena revelação dos filhos de Deus, de que
fala o Apocalipse. Porém, todo aquele que tem em Deus esta esperança e deixou
branquear a sua túnica no sangue de Cristo torna-se puro como Deus é puro.
E
o Evangelho do discurso da Montanha apresenta-nos as bem-aventuranças (Mt
5,1-12a) que, no
dizer do padre José Gregório, são a carta magna da vida cristã, mas representam
o maior desconcerto com que Deus nos desafia. Na verdade, o mundo coloca a
felicidade na riqueza, no poder, na satisfação e gozo da vida, na luta, na
ambição e no prestígio. E o Senhor, de forma contrastante, apregoa a
bem-aventurança do pobre, do indigente, daquele que quer depender de Deus e do próximo,
do que chora, do que é puro de coração, do misericordioso, do humilde, do que
faz a paz e do que luta pela justiça.
Ora,
é na certeza de que somos filhos de Deus e no propósito de vivermos as
bem-aventuranças na vida de cada dia que sentiremos a marca que Deus nos
colocou no ser e na vida: a procura e a contemplação da face de Deus. E esta
face de Deus vê-se nas igrejas e na celebração dos divinos mistérios, mas
sobretudo no Deus presente no próximo, mormente nos mais necessitados e
descartados.
E
Cristo deixa-nos um apelo e uma garantia: “alegrai-vos e exultai, porque é
grande nos Céus a vossa recompensa”. Por isso, a festa de Todos os Santos é a
nossa festa, a festa de toda a Igreja: dos santos no Céu e realidade e ato; e
dos que peregrinamos neste mundo em perspetiva e em esperança, com
imperfeições, é certo, mas na certeza de que não há santo sem passado nem
pecador sem futuro, como refere o Papa.
***
Assim,
agora em jeito de complementaridade se conclui que a Solenidade de Todos os Santos é a festa da Vida, que
celebra a plenitude da Vida cristã e a Santidade de Deus expressa nos seus
filhos, todos os santos da Igreja – canonizados, beatificados, veneráveis e
anónimos. É a celebração, por antecipação e em comunhão com a liturgia celeste,
da vitória daqueles nossos irmãos e irmãs – marcados com o selo do Deus vivo – que
vieram da “grande tribulação” e entre os quais se encontram os nossos entes
queridos que já faleceram e que emolduramos de flores que secam, de lágrimas que
se evaporam e orações que penetram o Céu – nos cemitérios nestes dias.
Pela nossa
fé e culto à Vida, adoramos o nosso Deus, que é um Deus de vivos e nos dá,
pelo Espírito, a Vida em Cristo Jesus ressuscitado de entre os mortos. À luz
desta certeza adorante, a solenidade de hoje compagina o convite à alegria total
e à esperança, que nascem das profundezas da Vida, da plataforma do combate da
fé, da aspiração à felicidade sem ocaso.
Deus, enquanto
fonte da santidade cristã, derrama a sua graça nos corações de modo que em Si toda
a santidade tenha seu início, crescimento e consumação. É o amor gratuito do
Senhor que derrama o seu Espírito nos nossos corações para que possamos
chamá-lo “Pai”. A santidade é não o apanágio de uns poucos, mas o convite e a urgência
de Deus a todos os seus filhos e filhas. E, como tal, é dom de Deus e não um
mero produto do esforço humano que procura alcançar Deus com as suas forças.
Todavia, não é também o resultado automático da graça, mas efeito da ação de
Deus em nós, que nós pedimos, acolhemos e secundamos. A santidade é, pois,
bidimensional: é ação de Deus em nós pelo dom do Espírito Santo; e é resposta
do cristão a esse dom e presença de Deus. Porém, não é lícito esquecer que a santidade
cristã é iniciativa de Deus – que chama, insiste e espera, porque ama – e se
manifesta como participação na vida de Deus, se realiza com os meios que a Igreja
nos disponibiliza, nomeadamente os sacramentos e sacramentais e se consegue com
o esforço de vida diária nas pequenas coisas feitas com os olhos postos em Deus
e atentos aos irmãos.
O Céu, de que
nós somos caminheiros e cidadãos, será a Morada dos Santos. Mas esta não é propriamente
um lugar, mas o estado de felicidade na presença e companhia de Deus, dos anjos
e dos santos, que é maior que a nossa imaginação e o nosso entendimento, como
atesta o Apóstolo, quando exclama: “Nem os
olhos viram, nem os ouvidos escutaram nem o homem pode imaginar o que Deus
preparou para aqueles que O amam” (1Cor 2,9). Ou quando explica: “Agora vemos como num espelho, mas depois veremos face a face” (1Cor 13,12). De facto, a Eternidade não um “eterno descanso”, entendido
à maneira humana, mas vida ativa e intensa com Deus, que se torna eterno repouso
porque é a satisfação das ânsias e aspirações do homem.
“Santo”
significa que não tem nada de imperfeito ou precário. Neste sentido, só Deus é
Santo. Não obstante, por graça e vontade misericordiosa de Deus, participamos
da sua Santidade divina, imitamo-Lo seguindo os seus passos e unimo-nos a todos
os irmãos, partilhando com eles os nossos bens espirituais e materiais, procurando
que todos beneficiem da nossas boas ações e evitando que os nossos pecados os
prejudiquem (não os cometendo ou reparando-os contritamente). É esta formulação doutrinal tão viva nos primeiros
séculos que deu origem a que os membros da Igreja não hesitassem em chamar-se “Santos”
e à própria Igreja “Comunhão dos Santos”.
A expressão “Comunhão
dos Santos”, contida no símbolo dos apóstolos e no credo batismal e crismal, indica,
antes de mais, a comum participação de todos os membros da Igreja nas “coisas
santas” (sancta): “a fé, os Sacramentos, em especial a Eucaristia, os
Carismas e outros dons espirituais”. Na sua
raiz, “está a caridade que ‘não procura o próprio interesse’ (1Cor 13,5),
mas move o fiel ‘a colocar tudo em comum’ (At 4,32), mesmo os próprios bens materiais ao serviço dos
pobres”. (cf CCIC – compêndio
do Catecismo da Igreja Católica, 194; cf CIC 946-953; 960). E “designa ainda a comunhão entre as pessoas santas (Sancti), ou seja,
entre as que pela graça estão unidas a Cristo morto e ressuscitado. Alguns são
peregrinos na terra; outros, tendo deixado esta vida mortal e terrena, estão a purificar-se
ajudados também pelas nossas orações; outros enfim já gozam da glória de Deus e
intercedem por nós. Todos juntos formamos em Cristo uma só família, a Igreja,
para a glória da Trindade.” (CCIC 195; cf CIC, 954-959; 961-962).
E os “santos” não são
apenas aqueles que estão nos altares, declarados santos pela Igreja. São todas
aquelas pessoas que vivem unidas a Deus, construindo o bem. São pessoas
normais, que no passado e no presente dão testemunho de fidelidade a Cristo.
“Todos os fiéis são chamados à
santidade. Esta é a plenitude da vida cristã e a perfeição da caridade, que se
obtém mediante a íntima união com Cristo e, n’Ele, com a Santíssima Trindade. O
caminho de santificação do cristão, depois de ter passado pela cruz, terá o seu
acabamento na ressurreição final dos justos, na qual Deus será tudo em todas as
coisas.” (CCIC 428; cf
CIC 2012-2016; 2028-2029).
Portanto, “santos”
podemos e devemos ser também nós. Para isso temos de acolher o apelo de Deus à
Santidade e eleger os Santos como nossos modelos e intercessores, nesta
caminhada.
A solenidade
de Todos os Santos pretende homenagear, assim, todos os santos e santas e
apresentar o ideal da santidade como possível hoje e desejado por Deus para
todos. Oxalá que também venhamos nós a ser homenageados nestes dia. Somos pecadores?
Pois sim, mas, como diz o Papa Francisco, não há santos sem passado (pecado) nem pecador sem futuro!
2016.11.01 – Louro de Carvalho
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