Nos últimos dias, o centro de Itália foi acossado por vários terramotos e
subsequentes réplicas. Foi uma onda de destruição que deixou mortos, feridos e
sobretudo muitos sem haveres e desalojados. Mais recentemente ainda, foi o Chile
devastado pela revolução terráquea. Suscitam-se solidariedades, comiserações e
vontade de reconstrução. O Primeiro-Ministro italiano, ao olhar para a destruição
de Núrsia e região, prometeu: “Vamos reconstruir tudo”!
Dizem alguns observadores que se este terramoto tivesse acontecido em
Lisboa, a onda de destruição seria imensamente maior que em 1755. E, sim, já lá
vai longe no tempo aquele um de novembro de há 261 anos que legou para a
História, não só a onda de destruição e morte pela derrocada dos edifícios,
pelo fogo e pela água, como a figura de um político tão prepotente como reconstrutor.
Quando o rei timorato, que desistiu de morar em palácio e passou a morar
na barraca, perguntou que fazer, o Marquês de Alorna terá proferido a sentença que
alguns atribuem ao Conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro
Marquês de Pombal: “cuidar dos vivos,
enterrar os mortos e fechar os portos”. É lema repetido sempre que há momentos
de calamidade pública. Terá sido esta a primeira sentença que a linguagem
popular herdou do terramoto na sua realização mais simplificada, “cuidar dos
vivos, enterrar os mortos”, como a coisa mais natural a fazer em caso de catástrofe
ou em situações do quotidiano. Houve até um padre que assumiu este lema como programa
pastoral.
Aquele segmento textual “encerrar os portos” justificava-se pelo possível
oportunismo de algum recluso saído dos escombros das masmorras prisionais se
evadir por via marítima ou os amigos do ouro e valores similares, que recolhiam
o que encontraram nos escombros dos edifícios, aproveitarem ensejo para demandarem
a estranja.
Talvez por isso e para obviar à inocentação dos até agora detidos, resistir
à tentação de amnistia e perdão real e punir os que entendiam que o terramoto
era castigo dos pecados, se lançou o repto comum e recorrente: “castigo aos
criminosos”.
***
Mas as expressões populares não se ficam por aqui e aquela do “castigo
aos criminosos” tem origem duvidosa no episódio de um de novembro de 1755. Porém,
se herdamos praças fabulosas como a Praça do Comércio em Lisboa (designação que o Marquês de Pombal quis dar ao Terreiro do Paço) ou a praça em frente do
Paço em Vila Viçosa e ainda técnicas de construção assente em estacaria e pelo
sistema de engaiolamento, também herdamos várias expressões para o linguajar
popular:
- “Cai o Carmo e a Trindade” é uma expressão popular portuguesa com origem como
tantas outras na cidade de Lisboa, nomeadamente com o terramoto de 1755, e que
se espalhou de norte a sul de Portugal. Significa uma situação de escândalo, surpresa
ou descalabro ou um facto ou um acontecimento de grande impacto que provoca
incredulidade ou, por ironia, factos sem importância dos quais se receiam
consequências graves. Como exemplos, apresentam-se: “Quando ele vir a desarrumação lá em casa
cai o Carmo e a Trindade!”. “O barulho
dos trabalhadores é tal que parece que cai o Carmo e a Trindade.”
A expressão
terá tido origem segundo alguns autores, na destruição de dois conventos
importantes da cidade de Lisboa com o terramoto. Os conventos do Carmo e da
Trindade eram, antes do terramoto, dois dos mais importantes conventos do
Bairro Alto lisboeta e, por isso, duas importantes áreas que constituíam a histórica
freguesia do Sacramento. O convento da Trindade ou da Santíssima Trindade,
fundado por Dom Afonso II (1185 – 1223), em 1218, veio
a pertencer à Ordem dos Trinitários. O grandioso e monumental convento do
Carmo, fundado por Dom Nuno Álvares Pereira (1360 – 1431), o Condestável de Portugal, em 1389, foi ocupado
inicialmente por frades da Ordem dos Carmelitas da Antiga Observância.
A expressão
popular remete para o sismo de 1755, já que aquela zona da freguesia foi uma
das mais prejudicadas, tendo esses dois conventos ruído, para grande desgosto e
terror dos lisboetas ante a tragédia. Na manhã do dia 1 de novembro de 1755,
ouviu-se um enorme estrondo durante o sismo, era manhã cedo e os dois
conventos, tal como outros templos, estavam cheios de fiéis que assistiam à
missa do Dia de Todos os Santos. Quando os habitantes descobriram qual tinha
sido a causa de tal barulheira, terão gritado incrédulos: “Caiu o Carmo e a Trindade…”.
Desses dois locais simbólicos, o antigo convento do Carmo, em que a igreja,
ainda hoje se encontra praticamente como ficou depois do terramoto, tendo sido reconstruída
uma ala do convento, mas interrompidos os trabalhos em 1834 aquando da extinção
das ordens religiosas em Portugal. Na parte habitável do convento foi
instalado, em 1836, um quartel militar (atualmente ocupado pela GNR) e, em 1863, o Museu Arqueológico do Carmo, no
restante espaço, onde se mantém até hoje. O convento da Trindade ainda foi reconstruído,
tendo durado mais umas décadas, mas acabou por ser parcialmente destruído mais
tarde, em 1835, para a abertura da rua Nova da Trindade, tendo a Câmara
Municipal de Lisboa dividido o espaço em lotes. No que restou do edifício e
espaços contíguos, incluindo o antigo refeitório do convento, foi lá instalada,
desde 1836, a Fábrica de Cerveja da Trindade e, mais tarde, a famosa Cervejaria
Trindade, ainda hoje existente. A fachada e parte do interior do edifício estão
revestidas com alguns azulejos retirados das ruínas do mesmo convento assim
como muita da cantaria antiga que aí foi reutilizada.
- “Nem
disse água vai nem água vem”. É uma das expressões que entrou na boca
dos portugueses depois do terramoto,
como explica Andreia Vale. Quando Sebastião José de Carvalho e Melo – o Marquês
de Pombal – ficou responsável pela reconstrução da capital após o abalo,
decidiu que ia implementar um sistema de esgotos. Na altura foi uma revolução e
uma esperança para a higiene da cidade. É que, até aquele momento, a água suja
de casa (que inclui até
mesmo as da casa de banho)
era atirada pela janela para a rua. Diziam as empregadas “Água vai!” e toda a gente sabia que o melhor era arredar-se das
proximidades. A expressão “Nem disse água
vai, nem água vem” surgia sempre que alguém fazia algum desses
despejos sem avisar. E ficou para exemplificar exatamente a ideia de que alguém
não fez o devido alerta ou aviso do que devia. Obviamente que o terramoto de
elevada magnitude, seguido de um poderoso tsunami ou maremoto surgiu tão repentinamente
que ninguém teve tempo para lançar qualquer alerta.
- “Resvés
Campo de Ourique” resulta do facto de as águas do tsunami gigantesco
haverem entrado por Lisboa adentro e chegado, galgando a terra, bem perto do
Campo de Ourique, então um dos pontos mais altos da cidade. Foi resvés. Isto quer
dizer que essa parte exterior de Lisboa não foi atingida e a expressão quer
dizer que alguém não foi afetado por um triz. No entanto, há quem diga que o Campo
de Ourique era o limite da cidade oitocentista e, nesse caso, não se era de
Lisboa por um triz, como agora não se recebe um benefício por um triz. Seja como
for, a expressão é
utilizada quando surge a necessidade de expressar alguma proximidade, por
exemplo “a água chegou resvés a Campo de Ourique”, que foi o que de facto
aconteceu na manhã do primeiro de Novembro de 1755.
Não obstante,
alguns falam de especulação, pois sustentam que a única fonte física é a linha
marcada no Convento de Santa Engrácia, vestígio da altura que a água atingira.
- “A
real barraca”. Como se referiu acima, Dom José, depois do terramoto,
deixou de viver no palácio e passou a viver numa tenda ou barraca na Ajuda. Agora,
quando se vêm um complexo de tendas ou um desaire grave em resultado de medidas
tomadas supostamente no interesse da coletividade, fala-se em “real barraca” ou
“grande barraca”.
- “Um tostãozinho
por Santo António”. As crianças de Lisboa pediam assim nas vésperas da
festa do Santo a 13 de junho. Tal costume e expressão surgiram pelo facto de,
por efeito do terramoto, ter sido necessário reconstruir muitos edifícios
religiosos mediante peditório. Santo António como padroeiro popular de Lisboa (canonicamente o padroeiro era São Crispim,
que cedeu o lugar a São Vicente) era o elemento unificador de tais esforços.
Depois, passou o peditório com base nesta expressão popular a servir para
levantar altares ao popular santinho nos bairros populares de Lisboa, aquando
das festas e marchas.
- “Ir
fazer tijolo”. Significa morrer. Isto, porque existiu um antigo cemitério
mouro ou almocávar na Rua do Forno do Tijolo. Após o terramoto, os populares
aproveitaram os materiais do dito cemitério para as obras de reconstrução da
cidade. Com as pedras e a terra iam, muitas vezes, misturadas ossadas humanas. Tudo
servia para fazer tijolo.
- “Ser
um manteigueiro”. Ser boçal ou adulador. Como conta António Mendes
Nunes, olisipógrafo, Domingos Mendes Dias, do concelho de Montalegre, após o terramoto,
ganhou fama como vendedor de manteiga por grosso na capital. Enriqueceu e, em 1787,
mandou edificar um palacete na Rua da Horta Seca n.º 18 (hoje ocupado pelo Ministério da
Economia), tornando-se
avarento ao envelhecer, vivendo miserável por mera sovinice. Vítima de um
assalto em que foi ferido à navalhada, proibiu os médicos de lhe ministrarem remédios
caros, pelo que morreu de gangrena.
***
Para além de milhares de mortos e cerca
de dez mil casas particulares, o terramoto atingiu inúmeros edifícios, entre
eles, o Palácio Real da Ribeira; a Corte Real; o Palácio Real das Alcáçovas; o
Castelo de São Jorge; a Casa da Relação e o Arquivo da Torre do Tombo (então situados no Castelo); os Conventos de São Francisco, do
Carmo, da Trindade; os Conventos de freiras da Anunciada, de Sant'Ana, de Santa
Mónica; as igrejas dos Mártires, do Sacramento, das Chagas, de Santo André de
Alfama, de S. Bartolomeu, de Santo António da Sé, de São Julião, de São Nicolau,
de São Vicente de Fora, entre muitos outros. Soterradas ou reduzidas a cinzas
ficaram ainda inúmeras preciosidades artísticas e literárias, como a Biblioteca
do Paço da Ribeira, que Dom João V enriquecera consideravelmente com livros
estrangeiros e manuscritos.
Em Portugal, a Estremadura foi
particularmente atingida numa área que cobriu a zona da costa até Peniche,
Leiria, Alcobaça e Ourém. Santarém e Benavente e a foz do Sado, num espaço
situado entre Setúbal e Sines, foram também afetadas. Torres Novas, Alenquer,
Cascais, Alcácer do Sal e Grândola chegaram a registar os graus de intensidade
X e IX. Também o Algarve e o Alentejo foram atingidos pelo megassismo, que
nesta última região registou um grau de intensidade VIII. No Centro e no Norte
do país, em locais como Coimbra, Cantanhede ou Aveiro, as consequências do
terramoto foram pouco relevantes, havendo inclusivamente terras que não foram
afetadas. Apesar de tudo isto, tão violento foi o terramoto em Lisboa, que a
sua lembrança quase apaga os efeitos da destruição causada noutras áreas do
país. Não se confinaram, porém, ao Reino os efeitos do megassismo, que se fez sentir
também em Marrocos. A Andaluzia, nomeadamente Cádis, Sevilha, Huelva e Córdova,
assim como Olivença, Cória, Madrid e o Escorial foram também atingidos.
Tanto a Gazeta de Lisboa, como os
correios expressos, a via diplomática e a via comercial se encarregaram de
difundir a notícia pelas cortes europeias. No estrangeiro, a notícia da
catástrofe causou profunda impressão. A literatura da época reflete o horror
inspirado pelo terramoto e as manifestações de simpatia e piedade humana que
este despertou. A capital passou a ser vista como um teatro de ruínas, o que suscitava a compaixão e o auxílio dos outros
povos.
Os efeitos
do terramoto suscitaram, por outro lado, uma intensificação da
caridade pública, que se manifestou através da dádiva de joias, roupas e
mantimentos que a Fazenda Real, os nobres e os religiosos dispensaram às
vítimas. Os mercadores dispuseram-se, por seu turno, a oferecer um donativo de
4% sobre os direitos aduaneiros que eram cobrados nas importações, o que
duraria os anos necessários para reedificar as alfândegas do Reino. Para que
Lisboa voltasse à normalidade, Carvalho e Melo logo deu ordem ao capitão
Eugénio dos Santos e ao mestre pedreiro Patrício da Silva para visitarem as
igrejas atingidas, a fim de que a reconstrução da cidade pudesse ser concretizada no mais breve
espaço de tempo possível.
Cf: Carvalho, Sérgio Luís
(2010), Nas bocas do mundo – Uma viagem pelas histórias das
expressões portuguesas, Lisboa:
Edições Planeta; DIAS, Marina Tavares (1994), Lisboa Desaparecida, vol. 4,
Lisboa: Quimera Editores L.da, 1994; NEVES, Orlando (1992), Dicionário das Origens das Frases Feitas,
Porto: Lello & Irmãos Editores; SANTOS, António Nogueira (2000), Novos
Dicionários de Expressões Idiomáticas, Lisboa: Edições João Sá da Costa.
2016.11.04 – Louro
de Carvalho
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