Jorge Sampaio, em artigo ensaísta que o Público deu à estampa a 14 de novembro, lançou o apelo à travagem da “corrida para o abismo”
potenciada pelo Brexit e pela vitória de Trump nas presidenciais
norte-americanas, avisando que não haverá paz duradoura se a desconfiança
persistir. Referindo-se ao resultado das presidenciais nos Estados Unidos, que
deram a vitória ao magnata republicano, adverte que é “impossível não olhar já
para as eleições de 2017 em França e na Alemanha como próximas etapas prováveis
desta corrida para o abismo”.
De facto,
torna-se iminente e perigosa a eventual vitória do partido de Le Pen ou a da extrema-direita
alemã, como a dos populistas italianos. E não se pode esquecer que em países do
norte europeu, em que a socialdemocracia parecia ser a solução, partidos de direita
quase extrema integram governos de coligação ou integram maiorias parlamentares
que sustentam governos.
Neste sentido, o ex-presidente manifesta-se preocupado com o rumo do projeto europeu, cujas feridas têm
contribuído para a “emergência dos populismos”. E contra os que pensam que foi
com o Brexit ou com Trump que surgiu
a insatisfação, o ensaísta (são 5 as páginas que o seu
artigo ocupa no aludido diário) reconhece que o problema não é de agora, mas a resposta aos sintomas que
têm surgido revelaram-se insuficientes e até inadequadas. Começaram com o “não”
da França e dos Países Baixos ao Tratado Constitucional Europeu e culminaram
mais recentemente na decisão do Reino Unido em deixar a UE (União Europeia).
E podia ter referido o que se passou nas Filipinas em maio passado, quando
os eleitores entregaram o voto presidencial a um candidato que fez o mesmo tipo
de discurso insultuoso, perseguidor e vindicativo, xenófobo, misógino,
homofóbico e pró pena capital, nomeadamente para traficantes – Rodrigo Duterte.
Agora, dum lado do Pacífico está Duterte; do outro, Trump.
Um e outro falaram àqueles e àquelas que estão desiludidos como o sistema,
que não encontram situação económica favorável, apoio social sustentável,
emprego duradouro, segurança de pessoas e de bens. E são figuras que se
alimentaram do sistema que passaram a combater, arvorando-se em Messias do
povo. Olham os sintomas e originam a mudança no seu pior.
É óbvio que Donald Trump tem consideravelmente mais influência no mundo que
Rodrigo Duterte, mas este leu primeiro os sintomas e percebeu o caminho da
subida ao poder.
Cingindo-se ao continente Europeu, Sampaio coloca a origem das clivagens na
falta de soluções para os problemas económicos e financeiros com que a UE se
confronta. E aponta como exemplos “o baixo crescimento”, as “altas taxas de
desemprego” e a “elevada dívida pública e privada”, esta apenas disfarçada pela
intervenção do Banco Central Europeu que mantém o problema “em suspenso”. Além disso, considera que “ninguém parece acreditar
que Bruxelas (ou Berlim) tenha
qualquer iniciativa para responder à crise da ‘eurozona’, para alterar a
ortodoxia financeira dos credores ou para criar as condições institucionais e
orçamentais que tornem possíveis programas de reforma nas economias mais
frágeis”. É o egotismo em peso.
No capítulo da dívida, o articulista poderia ter frisado a sujeição a que
foram votados os países periféricos a sul, mormente os que foram sujeitos a
programas de resgate nacional e bancário, que pagam juros exorbitantes sobre o
valor monetário do resgate a favor dos bancos centrais alemão e francês. Por outro
lado, em diversos países, ganharam corpo – e estão prestes a ganhar eleições – movimentos
e partidos de extrema-direita, preferencialmente preocupados com a defesa e
segurança, eivados dum nacionalismo xenófobo e protecionista, alguns deles a
querer alimentar a homofobia, purificar os costumes, preservar a dita raça e reabilitar
a pena de morte.
Depois, aflorou a incapacidade da UE para lidar com a recente vaga
migratória ou de prófugos e para se organizar equilibradamente na preservação
das liberdades e na luta contra o terrorismo, ora de caraterísticas singulares (sobretudo o do Ísis) – o que abriu caminho para os discursos radicalizados que têm encontrado
eco em muitos setores da sociedade.
A adicionar-se a esta problemática, surgiu o “Brexit”, que, para Sampaio, representa “um ponto de não retorno” e,
no meu entender, pouco pior que uma eventual permanência na UE nos termos
excecionais em que o anterior primeiro-ministro britânico conseguiu negociar.
Porém, como assegura o ex-presidente, nada ficará como dantes e está aberta a
porta para que outros países lhe sigam o caminho.
O antigo Chefe de Estado sustenta que “a confiança está hoje abalada de
forma sistémica e sistemática” e pergunta se esta “desconfiança está já
demasiado cimentada para ser reversível e evitar os populismos de toda a sorte”. Defendendo que, no atual contexto europeu e
internacional, “reconstruir a confiança” constitui “um desafio grande, moroso,
complexo, mas incontornável”, deixa o alerta:
“Não há economia, nem mercado, nem política, nem democracia sem esse
cimento de base, a confiança. Não há paz duradoura se a desconfiança minar as
relações entre comunidades, povos e nações, se o pacto social for rompido.”.
Não obstante, advoga que, para evitar o trilho do “abismo”, incumbe “à
Europa contribuir para reinventar a democracia para a nossa era da globalização”, até porque “a Europa não é só parte dos problemas,
mas é também da solução, dando aos países mais controlo sobre políticas que se
tornaram globais”; e entende que a Portugal
o momento merece “um balanço rigoroso e exaustivo da nossa participação
europeia na dupla vertente do que a Europa tem feito por nós e do que podemos
fazer por ela”.
O ex-presidente
Jorge Sampaio sublinha que é mesmo preciso proceder à “recapacitação” das
democracias ocidentais ao nível nacional, central e local, o que passa pelo
"resgate da democracia representativa na Europa”. E, no atinente a Portugal, deixa mesmo algumas pistas; como: maior sentido
de rigor “em relação à Europa que queremos”; e recusa de todo o tipo de
iniciativas restritivas que se baseiem em critérios passadistas e obsoletos,
como as que “recorrem à figura dos membros fundadores”.
No quadro dos novos equilíbrios intraeuropeus resultantes da saída do Reino
Unido da UE, que devem merecer a atenção de Portugal, está aberto o caminho
para que a Alemanha passe a ser o principal interlocutor dos EUA no seio da UE.
Assim, Portugal deve, segundo Sampaio, “concentrar-se sobre as suas relações
com a Alemanha e com a Espanha, que é o principal parceiro de Berlim (e de Washington) na Península Ibérica”.
A este respeito, interrogo-me se não deveria reforçar-se o peso da UE como
um todo, valorizando a diplomacia comum, coordenada pela Alta Representante da UE
responsável pelas relações exteriores e segurança e tutelada pelo Presidente do
Conselho Europeu. De outra forma, estaremos a legitimar a hegemonia insistente e
ilegítima da Alemanha e até as intervenções do superministro Wolfgang Schäuble
ou a pretensão de Hollande de negociar secretamente a martelação das contas
francesas de modo a exceder o défice, porque “a França é a França”.
***
O Presidente da República considerou que Sampaio escreveu “um artigo
lucidíssimo” sobre a situação internacional, tendo razão quanto ao risco de
divisão da Europa. A este respeito, declarou:
“O
presidente Sampaio tem razão quando diz que, depois de tantos anos a construir
a Europa, haver o risco da sua fraqueza, da sua divisão, do seu esvaziamento
por guerras entre países, por movimentos populistas, por situações de
xenofobia, de demagogia, de fechamento, a Europa fechar-se, isso é muito grave”.
No seu
entender, contudo, entende Marcelo que “em Portugal não há essa situação, há
uma grande estabilidade no sistema de partidos”, o que apontou como “situação
única relativamente a muitos outros países europeus”.
Na
intervenção que fez durante a inauguração da sede da associação empresarial GS1
Portugal, em Lisboa, o Presidente desviou-se do tema do seu discurso para falar
do predito ensaio do ex-Chefe de Estado e partilhar “uma nota” que disse
ter-lhe ocorrido, de manhã, sobre os desafios atuais. Segundo o Chefe de
Estado, no atual contexto “o primeiro grande desafio é não só não deixar morrer
a Europa, mas dar força à Europa”. E prosseguiu:
“Esse é um
grande desafio para todos nós. Não é que não haja a vocação para o mundo, uma
vocação universal, mas é diferente uma vocação universal com uma Europa
partida, dividida, despedaçada, ou com uma Europa unida”.
Marcelo referiu-se,
em seguida, aos desafios nacionais, que defendeu serem pensar a médio prazo,
combinar investimento com inovação e promover o diálogo social. No entanto,
reforçou a sua mensagem sobre o estado da Europa: “É neste momento importante na vida do mundo manter viva a Europa e melhorá-la
e projetá-la no futuro”.
***
Também, em
conferência de imprensa após várias reuniões de trabalho, incluindo uma sessão
conjunta entre os chefes de diplomacia e os ministros da Defesa da União
Europeia, Augusto Santos Silva e Azeredo Lopes afirmaram que o risco de divisão
da Europa apontado pelo antigo Chefe de Estado e corroborado pelo Presidente da
República é real e deve ser enfrentado.
Santos Silva
admitiu que “se a questão é saber se nós hoje corremos riscos e se o projeto de
construção europeia corre riscos, a resposta é ‘sim’ e riscos sérios”. E apontou
entre os “principais riscos”: risco de desintegração resultante da “tendência
para renacionalizar políticas que já hoje são e devem ser políticas europeias”
e “europeizar os falhanços”; maior influência que se sente hoje nos sistemas
políticos e opiniões públicas por parte forças ou ideias populistas; e “o de se
cavar ainda mais a distância entre cidadania e quadro institucional europeu”,
por incapacidade deste de responder às necessidades que os cidadãos vivem. Porém,
convicto de que “não há nenhuma alternativa à integração europeia para
responder melhor aos problemas que afligem as economias e sociedades
europeias”, afirmou:
“A Europa tem todas as possibilidades e tem todas as capacidades para
reagir a estes riscos, contrariá-los e vencê-los, consolidando o projeto de
integração europeia e consolidando e melhorando as políticas, os instrumentos
de que dispõe”.
Já Azeredo
Lopes comentou que politicamente a Europa tem hesitado entre uma ‘realpolitik’ algo despida de valores e
um pragmatismo por vezes estranho, por excessivo”. E declarou:
“A UE não poderá com toda a certeza escapar à crise que é anunciada e
descrita pelo Dr. Jorge Sampaio (…), não poderá com certeza sobreviver bem à
crise que hoje enfrenta, se aceitar negociar valores fundamentais, que era a sua
matriz definidora”.
***
É o alerta
de quem sabe e a esperança de quem deve! Um sintoma que se torna contágio.
2016.11.15 – Louro de Carvalho
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